O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 2
Capítulo 2




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Pôs a mão na barriga que aquela altura reclamava e lembrou que não havia comido nada pela manhã no afã de cumprir o último desejo de sua Mãe. Parou numa lanchonete mambembe, pediu um suco de laranja e uma coxinha, que pela aparência, ornava a vitrine do balcão há algum tempo. Sentou numa mesa de plástico na calçada e viu algumas pessoas fantasiadas passarem na rua em frente. Lembrou que o carnaval havia começado. Não era muito atento a datas festivas, já que o seu mundo era o seu quarto e a casinha onde vivia. No máximo ligava o rádio ou lia revistas velhas descartadas pelos vizinhos que ele pegava sorrateiramente do lixo alheio. Sua Mãe não gostava de televisão e passava o dia rezando e dormindo. De vez em quando ela abria a janela da frente para ver o movimento da rua, mas logo se recolhia aborrecida com alguma coisa que teria visto ou ouvido. Uma vez por mês ela ia ao asilo, e só. Normalmente nesse dia o seu humor melhorava, mas já no dia seguinte amarrava a cara e a tristeza voltava a se abater no seu rosto alquebrado.

Diolindo observava divertido a alegria das pessoas. Que magia possuia o carnaval que transformava as preocupações do dia a dia em algo abstrato? Não fazia idéia da resposta, mas por um momento ficou curioso em saber mais a respeito. Olhando mais atentamente ele constatou que o pequeno grupo em festa eram de homens travestidos de mulheres. Com olhar de espanto notou que jogavam beijos para ele. Um pedaço da coxinha parou no meio da sua garganta e ele entalou e tossiu com vontade.

 

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Não acreditava na corte que tantas mulheres lindas faziam a ele. Era como uma dança do acasalamento em grupo. Se via no meio da roda e o grupo entoava cânticos e dançava lindamente. Emanava delas um cheiro de alfazema e pétalas caiam do céu como a coroar o momento em que ele finalmente saciaria sua sanha de sexo por atacado. Os corpos se contorciam a medida que se aproximavam e ele suava profusamente enquanto se despia com vagar. Sua vontade era transformá-las em escravas sexuais para sempre. Prendê-las em celas separadas e tê-las cada uma num dia da semana.Açoitá-las quando lhe desse vontade e ensaiar o grupo para tornaram-se coadjuvantes de suas fantasias, como num teatro grego, porém sem tragédias. Eram anjos que já lhe chegavam com as asas cortadas, um presente, um mimo de alguém. Quando o círculo estava quase fechado, ele já estava nu em pelo esperando que elas começassem a se despir. Foi então que viu os primeiros pêlos púbicos aparecerem lentamente e depois dos pêlos púbicos esperava pelos pêssegos viçosos que surgiriam. Para o seu espanto, várias bananas de côres e tamanhos variados se desembainharam das saias e o céu se fechou numa escuridão repentina.

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Pela segunda vez em poucas horas alguém espancava as suas costas. O dono do estabelecimento conseguiu fazer com que Diolindo regurgitasse o pedaço de coxinha que quase o matara engasgado.

— Está tudo bem? – Perguntou o homem assistindo-o arfar dobrado sobre o corpo ainda sentado na cadeira.

— Si..Sim.

Pagou a conta e caminhou até a farmácia. Estava fechada. Talvez o dono fosse um dos travestidos. Vai saber. Voltou pra casa e fez uma faxina geral jogando no lixo tralhas velhas que sua Mãe acumulou durante tantos anos. Quando finalmente se deu por satisfeito já era noite e lembrou do seu compromisso. Tomou um banho, fez a barba rala e grisalha, salpicou um pouco de lavanda e saiu. Havia anos que não saía de casa à noite e era como se a comunidade se transformasse em um lugar completamente diferente, um esfuziante quadro vivo de pintura naïf.

 

Caminhou por uma ruela estreita para cortar caminho até o Boteco do Almeida e logo estava de frente ao bar. Olhou ao redor e viu o Padre Franco pensativo sentado com uma garrafa de uísque na mesa girando uma caixa de fósforo entre os dedos. Quando avistou Diolindo, levantou o braço e deu um arremedo de sorriso. Se aquilo tivesse cor, seria amarelo. Sentaram frente a frente e o ex-padre perguntou o que ele queria beber. Pediu água.

 

— Sabe bom homem, às vezes se conhece a vitória um pouco tarde demais. Mas sempre haverá tempo para saboreá-la. Melhor assim do que vencer cedo demais e ter que carregar o pesado troféu até enferrujar, ou até a vida virar o jogo e tomá-lo das suas mãos – Disse Franco em tom de confidência.

— Do que esta falando exatamente? – Perguntou Diolindo coçando a cabeça imaginando vagamente que o homem falava de si próprio.

— Nada que tenha importância nesse momento, afinal estamos aqui com outro propósito – Afirmou dando um longo gole no copo. – Ah! Apenas para constar. Essa garrafa tá na sua conta.

— Tudo bem, mas vamos ao que interessa.

— Gosto do seu estilo, direto ao ponto – Retrucou Franco enquanto alisava a barba desbotada e limpava uns pingos da bebida ao redor do espesso bigode.

— Acho que você não está quebrando nenhum voto me revelando confissões.

— Já quebrei todos eles. Inclusive o de castidade foi com a Selminha ali do balcão – Disse apontando para uma mulata que servia os fregueses com uma calça de lycra laranja que comprimia suas coxas grossas até o limite do suportável.

— Mas vamos aos fatos. Sua Mãe se confessava na minha igreja, quer dizer ex-igreja, quando eu ainda era o pároco. Em princípio eram coisas corriqueiras sobre não ter ido a missa porque era o último capítulo da novela, de ter sido desatenta com você quando levou esses pontos aí na sobrancelha, essas coisas. Depois de um tempo percebi que suas confissões foram ficando um pouco....digamos...esquisita, fora dos padrões. Um dia ela me disse que tinha pensado na morte, em morrer, em tirar a própria vida e daí comecei a me preocupar, não só como padre, pois as suas palavras eram carregadas de uma tristeza genuína como não se vê nem entre seres depressivos agudos. Ainda me arrepio com a convicção das suas palavras. Era como se ela fosse sair dali e se jogar debaixo de um carro, compreende?

— Não imagino a minha Mãe cometendo esse ato, nem por um segundo. Ela não era a pessoa mais alegre do mundo, mas acreditava em Deus e tinha fé.

— A fé meu caro é um sentimento vago que pode ser facilmente confundido com um fiapo de esperança.

— O que mais? Era só isso?

— Claro que não. Mas vou dizer o que realmente importa pra você. Sua Mãe tinha muita confiança em mim e não somente como Padre. Conversávamos depois das missas e muitas vezes ela ajudava na preparação de batismos, eucaristia e até nos mutirões. O que vou te dizer não foi dito no confessionário e pode parecer estranho a primeira vista, mas agora que ela se foi tenho que lhe dizer – Franco deu outro longo gole na bebida e repetiu o ritual de limpeza do rosto.

— Dirce, sua Mãe, pediu que eu lhe dissesse após a sua morte que ela guarda uma pequena chave costurada na parte interna do busto de um vestido branco guardado numa caixa grande em cima do guarda-roupa. Essa chave abrirá um pequeno cofre no banco que ela tinha conta contendo objetos e documentos que serão importantes para você.

— Um vestido branco? Ela só tinha um nessa cor e foi com o que ele que eu a enterrei. O que ela queria vestir estava sendo comido pelas traças.

— Então você sabe o que fazer. E têm que ser logo. Lamento em não poder ajudá-lo, profanar sepultura é crime, mas em se tratando da sua Mãe e da importância do caso.....- Proferiu Franco levantando-se para ir embora, deixando Diolindo arrasado com as mãos cobrindo os olhos. – Se eu fosse você tomava um trago! – Gritou o ex-padre já do lado de fora do bar sem se virar, sumindo na noite trôpego e rindo em altos brados.

 

Vontade ele tinha e muita. De beber algo forte. Mas não havia bebida que fizesse passar aquilo. Pagou a garrafa de uísque e a água e saiu. E se fosse mentira do ex-padre bêbado? E se fosse verdade, que importância essa chave teria na sua vida? Poderia deixar tudo como está, mas nesse caso estaria contrariando a vontade da sua Mãe. Seria uma missão muito difícil e teria que fazer tudo sozinho. O cadáver ainda estaria no início da decomposição. Ainda assim seria difícil não ficar chocado com a situação. Deus me ajude! Fez o sinal da cruz tres vezes e foi pra casa buscar uma pá.

 

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Esgueirou-se pelas vielas menos movimentadas para que ninguém o visse a caminho do cemitério com uma pá no ombro. Depois de uma caminhada de pouco mais de quinze minutos chegou em frente ao portão da casa dos mortos. Trancado. Deu a volta pela lateral e subiu na parte mais baixa do muro depois de ter jogado a pá pro outro lado. Orientando-se com a ajuda da luz da lua cheia em todo o seu esplendor, chegou na sepultura de sua Mãe depois de tropeçar em algumas cruzes e se desvencilhar de um buquê de flores murchas jogadas na passagem. Ajoelhou-se por um momento e pediu desculpa a Deus pela heresia que estava prestes a cometer, invocando um bem maior. Começou a cavar juntando forças no seu coração para não desistir. Convencia-se de que o que estava dentro do caixão já não era a sua Mãe, apenas matéria se decompondo. Mas sabia no seu íntimo que teria que levar a imagem chocante que estava prestes a ver pro resto da sua vida. Tentou lembrar os bons momentos que tiveram juntos pra fazer o tempo passar enquanto trabalhava e não pensar nas cenas dos poucos filmes de terror que havia assistido com os amigos de escola.

 

Sua mente foi longe levando a memória olfativa a lembrar dos quitutes que ela preparava e punha na merendeira que levava pra escola. Tinha tanto orgulho da boa cozinheira que sua Mãe era que muitas vezes ficava com fome no intervalo das aulas apenas para ver a cara de felicidade dos colegas que alimentava com prazer enorme e ouvir os elogios que guardava no seu coração. Apesar dos poucos recursos Dona Dirce nunca deixou de fazer um bolo no seu aniversário para que ele compartilhasse com os amigos. Isso foi até os dezesseis anos quando tentou apresentar a sua primeira namoradinha a ela e o tempo fechou de vez. Nada de bolo, de comidas gostosas, guloseimas, nada de nada, nunca mais. Aproveitava-se os restos de comida por tres dias seguidos e os doces eram racionados.

 

Diolindo sorriu dos ciúmes da Mãe justamente quando a pá tocou em algo sólido. Pulou no buraco e concluiu o trabalho com as mãos limpando o barro já duro de cima da tampa da urna. Desparafusou as laterais e saiu do buraco para abrir o caixão com a ponta da pá. Fez uma força enorme até conseguir o seu intento. A escuridão permitia ver apenas parte da cabeça da Mãe enquanto um odor insuportável de carne podre lhe subia as narinas. Tinha que acabar com aquilo rápido. Tirou a camisa e fez uma máscara ao redor da cabeça cobrindo principalmente o nariz. Desceu no buraco com cuidado para não pisar no corpo e tentando fechar os olhos para não ter que ver os bichos devorando a carne de Dona Dirce, abriu os dois primeiros botões da parte de cima do vestido e começou a apalpá-lo nos seios em busca da chave. Havia buracos em seu peito e a pele estava solta e mole como um patê. Teve a impressão de tocar em algum osso da costela exposta e segurando as lágrimas que já inundavam o seu rosto achou o que procurava. Com uma força calculada deu um solavanco para arrancar a chave da costura do vestido e a guardou no bolso da calça. Abotoou novamente o vestido da Mãe e com o rosto banhado de suor e lágrimas deu uma ajeitada nos cabelos grisalhos da velha senhora que ele assanhara sem querer. Os olhos fechados ainda nas suas órbitas mas sendo comidos por dentro por vermes, estavam fundos e deslocados e o corpo estava inchado pelos gases corporais. Aquilo não era a mulher que o havia parido.

 

Refez a sepultura e repôs as flores murchas por cima, ajeitando a cruz torta. Vestiu novamente a camisa, pôs a pá no ombro e buscava uma torneira para lavar as mãos fétidas de terra e carne em decomposição. Algo fazia cócegas por entre os pelos da sua mão. Viu um verme branco rastejando na sua pele. Colocou-o entre os dedos polegar e indicador da mão direita e o esmagou com força maior que o necessário, como se quisesse vingar-se por todos os outros que estavam se banqueteando com a carne da sua carne naquele buraco.

 

Depois de vomitar até a bílis subir à boca, ele lavou as mãos com todos os produtos de limpeza que encontrou nos armários de casa. Tomou um banho, jogou a camisa suja no lixo e deitou na cama para um sono entrecortado por pesadelos com sua Mãe aos berros, uma vara de marmelo na mão, perguntando porque ele tinha apalpado os seios dela enquanto dormia.

— Você estava buscando leite Lindinho ? Você estava querendo mamar nas tetas velhas da sua Mãe ? Você sabe que já não tenho mais pra te dar, não sabe ? – Dizia enquanto sacudia a vara no ar e dava uma risada fantasmagórica. – Vá mamar nos peitos das suas raparigas. Você queria trocar a sua Mãe pela primeira que aparecesse, lembra ? Vai ficar sem bolo, vai ficar sem bolo!

 

Estava tão agitado na cama que rolou e caiu no chão, com a cara em cima da página que estampava uma foto de Desirée e o seu úbere protuberante descoberto. Como o dia já não tardava em amanhecer, ele foi fazer café e ligar o rádio. Sorriu com a ironia da música ao ouvir Dila cantando "Refém da Solidão " :

 

E o ser humano incapaz de prosseguir,

Sem ter pra onde ir

Infelizmente eu nada fiz

Não fui feliz nem infeliz

Eu fui somente o aprendiz

Daquilo que eu não quis

 

Assoviou acompanhando a canção enquanto lavava a louça do café e quase deixou a xícara cair no chão quando ouviu alguém batendo à sua porta. Quem seria logo cedo em pleno sábado de carnaval ? As únicas pessoas que batiam naquela porta eram os devotos da sua Mãe pra pedir restos de comida e o carteiro. A encomenda! Enxugou apressadamente as mãos e foi ver quem era.

— Já vai, já vai!

 

Abriu a porta e um rapaz, funcionário de uma empresa de entregas expressas pedia pra ele assinar o recebimento de uma caixa com um metro e setenta de altura, com formato parecido de uma urna funerária e aproximadamente 50 kg de peso. Ele assinou, agradeceu e arrastou a caixa para dentro da sala. Como era um caixote de madeira, buscou um martelo para extrair os pregos das bordas da tampa e ter acesso ao seu conteúdo. Não fazia idéia do que iria encontrar ali dentro, mas estava desesperado por saber a resposta com urgência. Arrancou a tampa com impaciência sem tirar o último prego e foi tirando apressadamente papéis, espumas que pareciam proteger o que quer que estivesse ali dentro.

 

Quando viu do que se tratava, Diolindo entrou em estado de choque. Não conseguia mover um músculo da face e respirava entrecortado. Ficou olhando aquilo como que sem acreditar nos seu próprios olhos. Não era possível que a sua mãe tivesse feito aquilo com ele, não! E assim permaneceu por uma hora inteira sem ter coragem de tocar ou de desviar os olhos daquilo.


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