O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 3
Capítulo 3




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Primeiro deixou-se cair lentamente curvando o corpo e estendendo a mão para dentro da embalagem, mas ao invés de tocar, desviou a mão e pegou um pequeno livreto e pôs-se a lê-lo inteiro. Ao final, voltou o seu olhar para o chão próximo a sua cama e viu a revista caída e aberta na página. Levantou-se com pesar, ainda entorpecido, e segurou a revista em suas mãos. Olhou fixamente para a foto descolorida pelo tempo e por restos de esperma seco e admirou-a como se fosse a primeira vez. Cabelos louros lisos escorrendo em cascata pelas costas nuas, olhos de um azul profundo somente visto no céu em dias muito raros, uma boca carnuda esculpida num rosto longilíneo e perfeito. Seios fartos de uma rainha nórdica e pernas tão compridas e torneadas como dois alicerces de mármore fincados na areia de uma praia deserta. E ali no meio, bem no encontro das vigas travertinas com o seu tronco, repousava a floresta de fios de ouro, tão densa e misteriosa quanto qualquer coisa nessa mulher.

 

Deu alguns passos de volta para a grande caixa levando a revista aberta, segurou-a sobre o seu conteúdo e olhou seguidamente da foto para dentro da caixa até se dar conta de que não era delírio. Ali, deitada, chegara às suas mãos, a sua Desirée, uma boneca real, artefato de prazer masculino caro, sob encomenda, e que lhe fora dado pela sua Mãe morta como uma espécie de redenção, um pedido de desculpas por tomar tantos anos da vida do seu filho sem deixar espaço para que ele pudesse se relacionar. Difícil saber da verdade sem perguntar a ela própria. Mas isso era impossível.

 

Mesmo com receio de tocá-la, como se ela fosse abrir os olhos e reclamar de assédio, e basbaque com a perfeição de Desirée, Diolindo, tirou-a com todo o cuidado da caixa e a carregou nua para o seu quarto. Pensou melhor e levou-a para o quarto da Mãe onde a cama era de casal. Deitou-a, e cheio de pudores por ela estar desnuda, cobriu-a com os lençois novos que havia trocado quando voltou do cemitério. Teria que comprar algo para vestí-la. Admirado com a maciez da pele sintética e aveludada quase humana, do cabelo, das unhas, tendo tempo para olhar de soslaio para a perfeição dos seios de mamilos firmes e maleáveis e para a floresta de fios de ouro. Não conseguia crer no que a tecnologia podia fazer. Ele realmente estava velho e desinformado. Era como estar congelado por trinta anos e ser cuspido pelo tempo para cair na terra hoje. De espantado passou a exultante, feliz e agradecido pelo presente.

 

— Obrigado Dona Dirce. Acho que hoje eu não saberia mais fazer a corte a alguém de carne e osso.

 

Não trocaria Desirée por nenhum camélia do centro da cidade. Ainda lembra o quanto doeu as injeções que tomara nos glúteos para curar uma gonorréia. Doía mais ter que esconder essa passagem da sua Mãe. Mas a velha ficaria furiosa se soubesse que ele tinha forjado o assalto quando ia pagar a prestação do colchão novo para comprar o remédio.

 

Não sabia muito que primeira providencia tomar, apesar de haver muitas. Era carnaval, tinha que festejar, mesmo que nu e sem qualquer fantasia junto a Desirée. Não tinha como ir ao banco antes de quarta de cinzas para abrir o cofre e quase já havia deixado de lado a idéia de comprar o seu remédio. Mas estava se sentindo bem, bem até demais. Até teve vontade de comprar umas cervejas. Era isso que ele ia fazer. O Almeida não fechava o boteco nunca. Nem quando a mãe dele morreu com o crânio esmagado por uma jaca que caiu de madura no próprio quintal. A pinga de jaca que ele inventou até hoje atrai turistas pra comunidade.

 

Ele vestiu uma camisa velha e olhou pelo espelho do guarda-roupa para ver o reflexo dela e ficou encucado. Tinha certeza que a tinha deitado com a cabeça olhando pro teto, e agora ela olhava fixamente para ele. Devia ter se enganado. Virou-se e deu-lhe um beijo delicado na face perfumada e sentiu com nos seus lábios uma textura que não havia como dizer que não era pele.

 

— Descanse um pouco princesa, já volto. Vamos brindar a sua chegada, o nosso nascimento como casal.

 

E saiu sorrindo como uma criança que vê motivo de alegria em qualquer coisa. Respirou o ar da rua, e o cheiro do esgoto já não lhe incomodava, assim como o fato de sua Mãe saber das suas revistas impróprias. Os rostos que se viravam quando ele passava já não significava nada e até os homens travestidos na rua lhe arrancavam um sorriso. O espírito do carnaval parecia ao seu ver mais bondoso que o natalino. As pessoas se reuniam nas ruas ao invés de se trancarem em casa. Não havia presentes caros a serem dados, apenas distribuir alegria era o suficiente para que todos se sentissem gratos por essa contaminação do bem. Isso sim eram motivos. E seguiu a passos largos para comprar a sua primeira bebida alcóolica em tres décadas.

 

— Diolindo, têm certeza? – Perguntou Selma, a mulata balconista do bar. Hoje vestida com uma calça de lurex verde limão.

— Absoluta – Retrucou com uma firmeza até então desconhecida para ele.

— Não é porque sua mãe morreu que você têm que beber pra lamentar.

— Não se trata disso. É carnaval. Quero festejar. Minha mãe já está em um bom lugar. A propósito Selma, você sabe de algum lugar onde eu possa comprar roupas aqui na comunidade?

— Pra você?

— Não. É, herr, é que, seria pra uma moça mais ou menos da sua altura – Disse meio envergonhado enquanto Selma embrulhava as tres garrafas para ele.

— A Dona Benê têm uma boutique dentro de casa mesmo. Você pode levar a moça lá. É aqui perto, logo depois do Mercadinho do Sêo Tobias, na Rua das Flores. Hoje é sábado, ela deve estar por lá.

— Sei onde é. Mas é presente, vou sozinho.

— Eu já tô saindo do meu turno. Se você quiser posso te ajudar – Se ofereceu a mulata sem qualquer interesse.

— Pôxa, seria ótimo. Eu nunca fiz isso. Acho que vou pegar as cervejas na volta então. Melhor ainda, vou tomar uma dessas agora com você, como forma de te agradecer.

— Negócio fechado.

 

Diolindo fez caretas bem feias nos tres primeiros copos. No quarto já se percebia uma certa desibinição e os seus pensamentos voavam como passarinhos recém-libertos de gaiolas. Resolveu que ficaria nesse último copo para evitar vexames públicos. O resto beberia em casa ao lado da sua mulher para que à noite fosse coroada com os louros do amor. Selma ia ajudá-lo a comprar algumas peças que pudesse deixar Desirée ainda mais linda.

 

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Não era uma profissão fácil. Havia bajulação por todos os lados. E a parte difícil era atuar como um afeminado para se ver rodeado de beldades. Aquilo era um castelo de areia prestes a esfarelar-se. Algo tinha que ser feito para apressar seus planos. Com apenas uma que fosse, uma só!

— Monsieur Lindaux! Monsieur Lindaux! – Chamava o seu mordomo, estalando os dedos delicadamente e acordando o seu chefe de algum devaneio criativo, ele achava.

— Hã! O que foi Charlie? Que escândalo é esse?

— O Senhor está atrasado para o grande dia das provas. As meninas já estão esperando pelo sacerdote da estética.

— Quanta frescura Charlie! Saia daqui agora! – E espantou a criatura que dispensava todos os santos para pedir milagres diretamente ao seu próprio Deus.

 

Ah! O dia em teria para si doze jovens mulheres nuas que ele poderia fazer de gato e sapato com cada uma delas que não reclamariam nem por um instante de uma espetada de alfinete ali, uma mãozinha boba para ajeitar as pregas de um vestido, ou ainda pior...

Seu motorista seguia pelos grandes boulevares enquanto Lindeaux, sozinho no banco de trás da limusine, enxergava uma antevisão das devassidões que estaria prestes a cometer. Olhou para si pelo imenso espelho que possuia no enorme veículo e percebeu espantado que estava nu. Nu! ? Não seria possível aquilo. Saira de sua mansão vestido. A certeza veio com o grito que o motorista deu ao olhar pelo retrovisor e se deparar com o velho como veio ao mundo.

 

###

 

— Dona Benê, me perdoe. Diolindo perdeu a Mãe há dois dias e ainda está em choque – Desculpou-se Selma com a amiga ao deparar-se com o homem sem roupas dentro do seu provador – Pra completar bebeu uma cerveja lá no bar comigo. Ele toma remédios, sabe? – A mulata disse baixinho apontando para a própria cabeça e girando o dedo indicador.

— Não se preocupe milha filha, sei como são essas coisas. Meu marido também depois que levou um tombo parece que o juízo ficou no chão junto com os únicos dois dentes que ele tinha na boca. Deixe o pobre rapaz se recuperar um pouco no banheiro, e afinal ele me fez uma boa compra numa época em que todo mundo só compra confete e serpentina.

— A senhora têm razão. Ele é um homem bom, solitário, cuidava da mãe, nunca saia de casa pra se divertir. A cabeça da pessoa dá um nó, né?

— Tomara que no caso dele, esse nó não seja cego minha filha.

 

Depois de se desculpar pelo surto, Diolindo se foi envergonhado. Agradeceu as duas mulheres pelo apoio e seguiu seu caminho segurando as sacolas. Mesmo sabendo que o seu psicológico estava abalado pelo álcool e a falta da medicação que cada vez mais queria extinguir da sua vida, passou pra pegar as cervejas que deixara pago e levar pra casa. Achou que tudo isso se devia a falta de conjunção carnal e depois que possuísse Desirée as coisas voltariam pro eixo. Sim, claro que sim.

 

Já próximo de casa topou com alguém que não queria ver.

— Sr Franco! – Levantou a mão por educação ao homem bêbado sentado na beira de uma calçada cheia de sacos de lixo abertos por cachorros esfaimados.

— Diolindo, eu queria mesmo falar com você – Retrucou o homem com voz pastoso e levantando da calçada após a terceira tentativa. – Não pense que estou brincando com a sua pessoa, mas esqueci algo de vital importância – Mesmo a cinco metros de distância já se sentia o hálito forte da criatura que um dia serviu e decepcionou a Deus.

— Do que o senhor está falando?

— Das confissões de sua Mãe

— Não vai me dizer que há algo com que eu deva me preocupar?

— Sim. Vamos ali no Almeida que te conto tudo por mais uma garrafa – E já se encaminhando em direção ao boteco.

— Não estou com vontade de ouvir – Sibilou entre dentes sem sair do lugar para demonstrar o seu descontentamento.

— Acho que você vai querer saber. Mesmo. É sobre um presente que a sua Mãe disse que ia lhe dar quando morresse. Essa parte não compreendi, mas sei o que deve ser feito para o tal presente ser quitado. Parece que ela ia dar uma entrada e o resto seria em parcelas. Era algo caro. Perguntei a ela se era um carro ou coisa parecida mas ela se calou. Disse que o dinheiro que ela ia te deixar não daria para isso. Falar nisso, você já recebeu o tal presente?

 

Diolindo segurou a mandíbula para não cair. Como aquele homem sabia dessas coisas? Sua Mãe tinha planejado tudo com tanta antecedência assim? De qualquer maneira ele teria que saber o que ele tinha pra dizer sob pena de perder Desirée. Isso não podia acontecer jamais, nunca.

 

E lá se foi Diolindo novamente pro bar, carregando além das compras, um velho pedófilo confesso, embriagado até o córtex, para te orientar sobre o que fazer para não perder a mulher da sua vida.

 

Diolindo sentou numa mesa de canto mais discreta, enquanto o ex-padre foi tirar a água do joelho. Pediu uma garrafa de uísque para o homem e uma água para si, prometendo que só tomaria as cervejas em casa, quando estivesse em segurança.

— Pois é meu bom homem – Disse Franco ainda subindo o écler da calça puída e suja e sentando com espalhafato na cadeira de plástico. – Peço perdão por não ter lembrado desse colóquio de alta importância que tive com a senhora sua Mãe. Esse não foi no confessionário, afinal ela não tinha cometido pecado algum. Mas não dei muita importância até ontem à noite quando vi a burrice que eu tinha cometido. Meu Deus, se é que você existe, eu sinto muito, muito mesmo.

— Me diga logo por favor, tenho um pouco de pressa. Seu uísque já está na mesa, só preciso que me diga o que sabe e eu me vou.

— Claro, claro. Mas você promete não me surrar depois.

— O que me faria surrar uma pessoa na sua idade?

— O que vou te dizer agora.Você sabe que o seu pai trabalhou em garimpo muitos anos e aquela casa que você mora foi comprado com as gramas de ouro que ele conseguiu bamburrar.

— Sim, eu sei.

— Pois é. O que você não sabe é que o seu pai encontrou um diamante raro, minúsculo, mas muito raro por ser tão perfeito e de cor e pureza excepcionais. Teve que fugir do garimpo, pois tentaram matá-lo mais de uma vez por causa dessa pedra. Pensou em como esconder aquele tesouro e não conseguia achar um lugar apropriado. Até que sua Mãe deu uma idéia brilhante a ele. Porque ela não escondia a pedra dentro de um dos dentes falsos da sua dentadura? Ele achou fantástico. E como não confiava em ninguém, ele mesmo acondicionou o pequeno tesouro no terceiro molar inferior do lado esquerdo da prótese. E estou em cólicas pra te fazer uma pergunta. A sua Mãe foi enterrada com a dentadura?

 

Diolindo começou a suar frio com o que o ex-padre lhe tinha dito. Quer dizer então que manter a sua Desirée ao seu lado dependia de ter que desenterrar o cadáver da sua Mãe uma segunda vez?

 

O ex-padre ficou supreso com a reação do homem que pegou a garrafa de uísque da mesa, virou-a de cabeça para baixo e deixou o líquido escorrer suave no chão. Franco instintivamente se jogou no chão e se pôs embaixo do pequeno chuveiro posicionando a boca aberta para não perder o seu sacrossanto anestésico.

 

— Perdão Diolindo! Perdão Diolindo! – Balbuciava o velho entre soluços e engasgos com o líquido.

— Se Deus não te perdoou, quem seria eu então para tal feito? – E levantou-se com as suas sacolas e saiu do bar com a missão mais ingrata da sua vida entediante. Uma vez era heresia, duas era o cúmulo da infâmia. Mas se o que foi dito também fosse verdade, não havia opção. Teria que fazer uma visita a sua Mãe mais uma vez. Era como se ela tivesse partido mas sentisse saudades todo dia. Mas ao invés de visitá-la no seu quarto com os seus remédios e um chá quente, ele teria que ir ao cemitério, desenterrá-la, encarar os seus restos decompostos e resolver mais um problema vital para a sua vida futura. Aquilo não podia estar acontecendo, não mesmo. O mundo cantando marchinhas carnavalescas e ele assoviando a marcha fúnebre todos os dias. Quando teria paz? Quando a sua Mãe o deixaria em paz?

 

Sem ninguém para responder suas dúvidas, rumou para casa afim de esperar anoitecer e buscar a pá. Ele tinha certeza que Desirée entenderia o que estava se passando.


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