O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 1
Capítulo 1




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Não havia viva alma no cemitério, exceto pela presença do coveiro e Diolindo que, há muito custo e mostrando uma nota de alto valor convenceu o homem a cavar a sepultura de sua mãe debaixo daquele aguaceiro. A cada dois minutos ia olhar para ver se o caixão caríssimo estava mesmo lacrado e iria resistir a tromba d´água que caia com gosto. Não por medo dela se afogar, já não havia esse risco, isso era fato, pela palidez da face plastificada e a rigidez cadavérica em estado adiantado. Mesmo assim custava a acreditar que a única pessoa que tinha na vida se fora e iria desaparecer para sempre naquele buraco que estava sendo providenciado. Cuidara da sua Mãe por toda a vida e prometera que enquanto ela fosse viva não se casaria, nem teria ninguém que pudesse desviar a sua atenção para cuidar de sua genitora enferma. E ela viveu bastante. O bastante para ver ele completar cinquenta anos e sem saber que rumo tomar na sua vida a essa altura.

O coveiro mesmo praguejando concluiu a abertura da cova e pediu que o ajudasse a levar o caixão até próximo a vala para amarrar as cordas que desceriam a urna até o seu repouso final. Como não sabia rezar, fez o sinal da cruz, olhou para o céu cinzento, fechou os olhos, deixou as gotas de chuva banhar-lhe o rosto com vontade e imaginou um bom lugar lá em cima que pudesse acolhê-la. Quando o pensamento começou a divagar e ele se imaginou saindo pé ante pé do paraíso para entrar num prostíbulo, decidiu que era hora de pedir ao homem que fechasse o buraco.

Sua Mãe não lhe deixara riqueza alguma. Havia a casinha de dois quartos em que moravam na comunidade e um seguro de vida que dava para sobreviver pelo resto da sua vida sem trabalhar se gastasse apenas com o básico. Precisava de uma mulher com certa urgência, ao menos para saciar uma vontade acumulada de tres décadas sem fornicar. Se virava com as sua mãos, mas sabia que não era a mesma coisa. Pensou em dar uma passada na Rua das Camélias, perto do centro, mas decidiu que era melhor ir pra casa, tomar um banho e deixar ao menos o cadáver da Mãe esfriar. Amanhã. Sim, amanhã. Tantos anos se passaram que não seria mais um dia que atrapalharia seus planos.

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Tinham deixado ele sentado ali esperando com um frasco vazio na mão. Não havia movimento naquele ambiente asséptico e alvo. A cada meia hora uma porta se abria e saia um homem sempre acompanhado de uma mulher vestida de branco. Ouviu chamarem o seu nome na mesma porta que saiu o último. A moça o esperava no corredor com um sorriso angelical e o acompanhou até um quarto pequeno com uma grande banheira vazia onde pediu que ele entrasse despido. Com certo pudor ele ficou nu retirando vagarosamente as poucas peças e pisou no material frio da banheira onde sentou-se envergonhado com as mãos cruzadas no peito. A moça continuou com o mesmo sorriso de propaganda de creme dental e apontou para o frasco vazio nas suas mãos e saiu do quarto.

Havia pôsteres de pin ups seminuas nas paredes e uma televisão ligada num canal adulto onde uma mulher que de tão pequena parecia anã, ou talvez o homem que estava com ela é que fosse grande demais. Bom, o que importa é o que estavam fazendo. O homem realmente sabia usar o que tinha na mão. E pelas pupilas giratórias da moça, ela dava a entender que estava valendo a pena toda aquela acrobacia circense.

Olhou para baixo e viu a reação do seu membro instusmecido. Sim, ele concordava com o chefe. Mas meia hora depois começou a pedir socorro em altos brados. Debatia-se com intensidade nas bordas da banheira quando a moça de branco entrou no quarto e o ajudou a sair do lago de esperma em que estava se afogando, e mesmo assim continuava a expelir sêmen pelo chão até se sentir fraco o suficiente e desmaiar.

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Acordou assustado segurando as partes pudendas para checar a real situação. Sim, ele havia tido uma polução noturna mas nada que lhe fizesse morrer desidratado. Já conhecia o remédio pr´aquilo. Abriu a gaveta e tirou uma velha revista embolorada que escondia da sua Mãe, abriu na página de Desirée, velha conhecida das suas fantasias e começou a trabalhar. Percebeu que não estava funcionando porque do nada imaginou como estaria Desirée hoje aos sessenta e tantos anos. Pele tão flácida que poderia guardar duas dela dentro, pés de galinha para cozinhar uma canja para os sem teto da cidade inteira, complexo sistema viário de estrias e grandes e viçosos pomares de celulite em plena produção. O companheiro preferiu voltar pra toca e prontamente ele obedeceu prometendo um presente para logo.

Investiu a parte da manhã para arrumar as coisas de sua Mãe para doação conforme fora orientado por ela antes do suplício no hospital, onde passara dois dias antes de entrar em coma e morrer. Curioso que ninguém lhe disse do que ela morrera, já que parecia saudável. Quando perguntava a algum membro da equipe médica ou enfermeiros, sempre desconversavam ou fingiam não escutar. Havia algo ali que sua cabeça não alcançava, mas não sei se teria forças para obrigar alguém a dizer-lhe a verdade. No atestado de óbito havia escrito causas naturais. Então teria sido isso e pronto.

Abriu o velho guarda roupa de jacarandá, herança da sua avó, e arrumou cada peça de roupa numa caixa de papelão como se fosse para uma longa viagem. Acrescentou os perfumes, calçados e guardou para si apenas algumas fotos em preto e branco do homem que ela dizia ser seu pai e a pequena caixa de jóias que ela guardava como um tesouro. Abriu o feixe da tampa de madeira e viu um papel de aparência recente. Leu e percebeu que era um recibo de compra num valor alto para os padrões dos dois e cuja entrega estava prometida para o dia seguinte. Não conseguia ler o nome do produto no recibo, o que havia sido comprado, tampouco o nome da empresa que parecia ser estrangeira. O que significava aquilo? Só lhe restava esperar para ver que tipo de surpresa sua Mãe morta ainda podia lhe fazer.

 

Olhou no relógio e viu que estava na hora de tomar o remédio. Desde pequeno tinha crises pontuais de esquizofrenia e, sabia desde muito cedo o quão doloroso era passar por isso caso evitasse a medicação. Teria que passar na farmácia, pois lembrou que tomara o último no dia anterior antes de ir ao cemitério. Colocou a caixa no ombro e saiu de casa em direção ao asilo onde Dona Dirce tinha suas únicas amigas e que frequentava avidamente quando ainda tinha forças. O sol havia finalmente surgido e parece que com vontade de mostrar toda a sua força sobre a comunidade. Com o calor, o fiapo de rio que se transformara em esgoto a céu aberto agora fedia violentamente fazendo muitos andarem com a gola da camisa levantada até a altura do nariz. Algumas poucas cabeças se levantavam e cumprimentavam Diolindo que não era muito popular no bairro. Muitos o tinham como esquisito demais para ser amigo. Um homem estranho que vivera a vida para cuidar de sua Mãe e nunca saia de casa a não ser para comprar algo. Apesar das notícias correrem rápido por ali, ninguém veio em sua direção expressar seus sentimentos pelo falecimento de Dona Dirce. Como era de se esperar, ele não deu importância aos narizes torcidos e seguia até o asilo quando um homem maltrapilho veio ao seu encontro.

 

— Diolindo, Diolindo – Disse o homem como se estivesse chamando a sua atenção por algo que fizera de errado.

— Padre Santinho! É o senhor? – Perguntou Diolindo ao homem esfarrapado ao mesmo tempo em que arriava a caixa no chão e procurava a mão do homem para beijar.

O homem prontamente tirou a mão do seu alcance e prosseguiu.

— Não me chame mais de padre. Tampouco de Santinho, um apelido estúpido que o meu pai me deu na infância. Não mereço o seu respeito. Desde que fui expulso da igreja não sou mais nada digno de respeito. Esqueceu o que saiu nos jornais? Eu como criancinhas. E não é com a boca como você deve saber. Antes canibal fosse. No frigir dos ovos foi justo do ponto de vista daquele lá de cima – disse apontando pro céu. – Mas as acusações que pesaram sobre mim foram falsas e caluniosas. Nunca cheguei ao ponto que eles me acusaram. Mas não adianta me explicar. É a palavra deles contra a minha. Você frequentava a igreja com a sua Mãe. Eu já te molestei alguma vez?

— Claro que não, Padre, quer dizer, Santinho, quer dizer...eu não sei o seu nome

— Me chame de Franco. Sou só um velho alquebrado de quase oitenta anos tentando entender o sentido da vida e me penitenciar. Êi, tenho uma proposta pra você – Disse mudando o semblante de pesaroso para cativante.

— Pra mim? – Perguntou Diolindo assustado com a possibilidade de concordar com algo vindo daquele homem ébrio.

— Sim, sim, sim. Como já estou nadando na merda divina mesmo, você me paga uns tragos e eu conto em detalhes todas as confissões da sua Mãe. Acho que você vai precisar mesmo que eu te conte. Soube que ela morreu e agora você é um homem só. A gente ouve essas coisas por aí.

— Não tenho interesse – Retrucou com uma indignação automática a proposta daquele homem pérfido. Ao mesmo tempo ficou tentado em saber de coisas que a sua Mãe nunca lhe contaria.

— Temo que essas revelações possam ser de muita valia para a sua pessoa – Disse Franco pausadamente e com malícia na voz.

— Tudo bem. Onde? – Hoje às 8 da noite ali no Boteco do Almeida – Disse apontando pra esquina. - O antro é bem frequentado à noite não se preocupe. Vou pedir que ele ponha uma garrafa de caninha na sua conta, sei que você compra mantimentos por lá. Acho que o Almeida é o único que ainda acredita em mim por aqui – Disse gargalhando e virando tropegamente os calcanhares para ir embora.

 

Diolindo repôs a caixa no ombro e retomou a caminhada não sem pensar no que o homem havia dito. O que havia nas confissões de sua Mãe que poderia lhe interessar? Aquele era um homem desvairado querendo levar vantagem a troco de uma garrafa. Só isso. Mas agendou na sua cabeça o horário.

 

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O asilo aparentava ter a idade de todas as suas moradoras somadas. Decrépito por fora e fantasmagórico por dentro. O pomposo nome de Casa de Saúde da Terceira Idade não lhe fazia jus. Lâmpadas queimadas e não repostas deixavam suas dependências escuras como que envergonhadas de exporem o verdadeiro depósito de gente velha que havia se transformado por falta de verba da prefeitura. Não havia como interditá-lo sem ter para onde mandar os idosos. E esse lugar não havia. A solução foi não aceitar nenhuma nova admissão e esperar que todos fossem morrendo um a um até que não restasse nenhum para então demolir aquele circo de horrores. Ainda assim, havia doze idosos dos cinquenta de até dois anos atrás. Destes, quatro eram grandes amigas de D. Dirce e ainda estavam lúcidas o suficiente para marejarem os olhos quando Diolindo cruzou as dependências da sala de carteado com a tinta óleo descascando das paredes cor de cocô. Sentou-se perto das quatro senhoras com idades que variava dos setenta e dois aos noventa e um. Como já não andavam sem amparo, ele beijou-as uma a uma, meio sem jeito, mantendo-as sentadas no sofá coberto por uma manta de retalhos para cobrir o estado real do móvel.

 

— Diolindo Querido – Disse ternamente com uma voz rouca de fumante, uma senhora carcomida pelo tempo e alquebrada pelo sofrimento.

— Sou eu. Como sabem? – Perguntou ainda confuso com o reconhecimento já que nunca havia estado ali e só ouvira falar do lugar pela sua Mãe e pelas fotos que ela levava das amigas.

— Retratos. Sua Mãe trazia muitos de quando você era jovem. Não mudou muita coisa,mudou Geruza? Mudou Geruza? – Teve que repetir mais alto para que a mais velha da turma conseguisse escutar.

—Quem vai se mudar? – Perguntou a velha sem fazer sentido algum ao que ocorria ali entre eles.

— Deixa pra lá. Geruza e uma pedra escutam igual, ou seja, nada – E riu-se amargamente depois da própria piada.

— Minha Mãe pediu expressamente para que eu trouxesse as coisas dela e lhes dessem para que fosse dividido entre vocês. – Disse abrindo a caixa no chão em frente as senhoras que fizeram cara de quem abria um baú com tesouros.

Incomodado com o calor, Diolindo havia pedido a uma cuidadora um copo de água que nunca chegou. As feições das senhoras estavam distorcidas como se elas estivessem paralisadas, não, melhor, em câmera lenta. Agora percebia que elas estavam com maquiagem demais para suas idades. Aquilo no pescoço da D. Carmosina era uma tatuagem? Não podia ser. Acho que era uma mancha senil, coisas da idade. Mas espere um pouco! Elas subiram no sofá com muita agilidade. Aquilo não parecia senil! A sala inteira ganhou cores, as velhas ganharam roupas de vedetes e agoram dançavam cancan! Aquilo era um cabaré?!

 

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A música retumbava nos seus ouvidos. Espetáculo de vaudeville da melhor qualidade. Anões em fraques brancos serviam a sua mesa enquanto uma cocotte lhe fazia a corte a meia distância. Olhava pra sua piteira entre os dedos da mão direita com estranheza já que nunca fumara, mas o cigarro estava aceso e a fumaça subia ao teto rebuscado do salão do pequeno e luxuoso teatro. Resolveu pô-lo na boca e aspirar. Espantado, percebeu que sabia manejar bem o fumo e olhou outra vez para a morena em espartilhos caros e chamou-a à mesa. O show no palco contava com quatro coristas de grande experiência e uma orquestra de músicos hábeis.

— Oi Senhor Santos! – Disse a esfuziante mulher com um coque enorme na cabeça e poucas, mas brilhantes vestes.

— Sente-se e me explique – Ordenou ele dando outra tragada.

— Não há o que explicar, apenas o que sentir e perceber que o tempo é inexorável. É raro encontrar umas brechas onde possamos ludibriá-lo.

— Mas e essas habilidades que não possuo. As estou usando hoje.

— Ainda há mais uma que utilizaremos mais tarde lá em cima – Disse a cocotte apontando para os quartos no andar superior.

— Por essa em específico eu temo, já que estou congelado há trinta anos em trajes maltrapilhos e corpo de sapo.

A moça rapidamente tascou-lhe um beijo e ele sentiu um forte baque na sua nuca.

 

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—Porque rapaz? Porque você fez isso? – Perguntou com voz de choro e medo a senhora de nome Benta que até então não tinha se pronunciado.

O único médico do local fora chamado às pressas para atender D. Geruza com princípio de enfarto depois de ser beijada na boca apaixonadamente e Diolindo golpeado na cabeça por um velho com ciúmes de Carmosina que tossia com a fumaça que saia do rolo de papel aceso e ainda na boca do homem que tinha ido até ali com boas intenções.

Diolindo recuperado do golpe, levantou-se e saiu à francesa do local ainda em polvorosa e sem entender o que havia ocorrido, apesar de algumas desconfianças. Iria passar na farmácia do bairro, descansar um pouco e depois saber o que o Padre Franco queria te dizer a respeito da sua Mãe.


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