Diário de Josh escrita por Eu-Pamy


Capítulo 6
Meu tio e meus primos malucos.




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Abri o portão e caminhamos por uma curta trilha de pedregulhos no quintal, não bati na porta e simplesmente entrei. A casa do meu tio era grande e confortável, mas bastante humilde e bonita. Tinha um bom quintal, uma sala de estar enorme, cozinha, quatro quartos e dois banheiros, além de uma pequena sala de jogos, que era o xodó do meu tio, com sinuca, pebolim, mesa de tênis, TV de tela plana, DVD e um Xbox. É o que meu tio definia de seu pequeno paraíso na Terra. No quintal da frente havia uma cesta de basquete que nunca era usada, e no dos fundos uma modesta piscina, que vivia coberta por uma lona.    

Meu tio era viúvo e morava com seus três filhos, duas meninas e um menino. Minha prima mais velha se chama Vanessa, e a coisa que ela mais gosta é da cultura japonesa e implicar com as pessoas. Ela tem um estilo de se vestir bem alternativo, incluindo pijamas com orelhas, blusas com estampas bem coloridas, calças rasgadas e tênis florescentes. Sem falar nos bilhões de acessórios que ela usa, ela mais parece uma alegoria de carnaval ou uma barraquinha da 25 de Março, do que uma garota de quinze anos. Seu cabelo é cor de rosa bem vivo desde os onze anos, quando isso nem moda era. Adora anime e J-rock, e sempre vai a festivais da cultura japonesa e show do tipo – o que se tornou um pesadelo para o meu tio, já que ela é menor de idade e precisa de acompanhante para esse tipo de show –. Vanessa também é a rainha da chatice, sempre revoltada por nada e arrumando confusão à toa. Às vezes eu acho, mas só às vezes, que ela não gosta muito de mim, mas prefiro acreditar que esse é o jeito dela e que isso um dia vai mudar.

A minha prima do meio se chama Samanta, e ela é um doce, totalmente o oposto da irmã. Não sei muita coisa sobre ela, além que tem treze anos e gosta de bandas como Cine e Fresno, e filmes românticos com finais felizes. Eu sei, deu até vontade de vomitar, né? A Sam tem esse jeito sonhador e inocente adorável, mas por incrível que pareça é a mais mimada dos filhos do meu tio, e de vez em quando consegue ser bem irritante por causa disso.

O filho mais novo se chama Caio, e ele é um tormento na vida de todos nós. Não estou sendo dramático. O moleque é daqueles hiperativos que parecem que passam vinte e quatro horas por dia ligados no duzentos e vinte. Seu passatempo preferido é fazer peripécias com os outros, do tipo colocar tinta vermelha nas cadeiras quando as irmãs vão sentar, para sujar as calças e fazer parecer outra coisa; colocar pimenta e sal no suco; desenhar nos rostos das pessoas que dormem na casa dele com uma caneta cuja tinta é difícil de tirar, fazendo os rostos de todo mundo ficarem todo vermelho nas primeiras tentativas de tanto esfregar; e etc, essas coisas que crianças e alguns adultos idiotas fazem para atazanar e deixar a vida dos outros mais difíceis.

Meu primo também não é a pessoa mais esperta do mundo, e com o tempo aprendi a usar isso contra ele, sendo esse o modo que eu encontrei para me vingar.

Logo que entrei na casa, a primeira coisa que me atingiu foi um forró rastapé soando bem alto nos meus ouvidos. Não sei como esse som havia passado despercebido por mim antes. A música parecia vir da cozinha e foi para lá que nós fomos. Quando entrei, encontrei meu tio Marcos, de avental cor de rosa, o rosto sujo de massa de alguma coisa, dançando com o cachorro. Isso mesmo, com o cachorro, ou melhor, cachorra. Uma dálmata linda, e enorme, que se chamava Lisa. A dálmata estava apenas com as patas traseira no chão, sendo que as da frente estavam na cintura do meu tio, que estava de costas para a entrada da cozinha, enquanto dançavam uma coreografia que se resumia em dois passinhos para trás, e dois passinhos para frente, meu tio cantando a letra da música fora do ritmo, mudando a letra algumas vezes. Uma cena muito hilária, principalmente por causa da forma espontânea e descontraída com que meu tio dançava com sua bela acompanhante.

Olhei para o Kevin e ele me olhou, ambos segurando para não rir daquilo tudo. Ficamos observando até que a música acabou e junto também a apresentação. Meu tio se virou e nos olhou de forma assustada, levando a mão ao coração.

“Minha nossa! Que susto vocês me deram garotos!” Ele disse, dando uns passos para frente.

“Oi tio, vim devolver o vídeo game do Caio. Bela performance, está cada vez melhor. Lisa também evoluiu bastante desde o último show na festa de aniversário da Sam.” Zombei, sorrindo.

Ele me olhou sério.

“E vocês por acaso compraram ingressos?” E deu uma piscadela para a gente, sorrindo maroto logo depois. Caminhou até o rádio e o desligou. A dálmata veio na nossa direção, e o Kevin ficou todo babão, acariciando e brincando com ela “Bom te ver, pequenino. Sim, a Lisa está se tornando quase uma profissional, logo mais irá querer trocar de parceiro, alegando que eu não dou mais conta do recado. Quem é o seu segurança?” Perguntou, limpando as mãos sujas de massa no avental.

“Ah, desculpe, esse é o Ke... Eduardo” Apresentei-o.

Kevin se aprumou e estendeu a mão para o meu tio.

“Prazer em conhecê-lo, senhor” Disse ele, todo educado.

“Prazer em conhecê-lo também senhor ‘Kê-Eduardo’” Ele falou com humor, estendendo a mão também para aceitar o cumprimento. 

“É que o primeiro nome dele é Kevin” Eu expliquei.

“Hum, dois nomes, interessante. Dizem que o nome de uma pessoa influencia em sua personalidade. E veja só, você tem logo dois. Pode até mesmo escolher a sua personalidade. E então, qual você prefere, Kevin ou Eduardo?” Indagou meu tio, daquele jeito intrometido que só os mais velhos conseguem ter.

Os olhos do Kevin passaram do meu tio para mim de maneira incerta, e eu entendi o que aquilo queria dizer. Ele estava achando meu tio maluco, eu tinha certeza.

“Eu prefiro só Edu, senhor” Respondeu ele de uma vez, meio tímido, mas ainda simpático.

“Ora, só Edu. Bem, parece que você é um rapaz simples, de alma pacifica” Ok, agora meu tio já estava sendo bizarro. Kevin soltou uma risadinha.

“Acho que sou sim” Respondeu confiante.

“Mas a modéstia não é seu forte” Marcos alfinetou, com um grande sorriso brincalhão. “E então... Quer dizer que você é colega da escola do Will?” Apontou para o brasão do uniforme que ele vestia.

“Sim, sou sim.”

A expressão do meu tio mudou, tornando um misto de incredulidade e surpresa.

“Jura? A última vez que eu conheci um amigo de escola do Will foi... Bem, eu não me lembro. Deve ter sido há muito tempo. Esse pequenino ai é mais difícil de lidar do que o Batman, sem falar que ele também vive em sua Batcaverna distante de todos. Então quer dizer que alguém finalmente conseguiu se aproximar? Já não estava sem tempo, não é mesmo Will?”

Sorri sem graça. Sério, a última coisa que eu queria era meu tio tagarelando de como minha vida é triste e solitária para o meu único amigo. Aquilo era mais do que vergonhoso, era humilhante. 

“Tio... Mudando de assunto, eu só vim mesmo para entregar isso” Mostrei a sacola “Tudo bem se eu deixar na sala e você entregar para o Caio depois? Diz que eu agradeci, e que me diverti bastante com o vídeo game”

A expressão do meu tio murchou e ele colocou as mãos na cintura, como minha mãe faria no seu lugar.

“Mas vocês já estão indo? Não vão ficar para comer meus biscoitos borrachudos? Juro que dessa vez eu acertarei no ponto.”

“Se borrachudos é a propaganda, eu acho melhor não” Olhando com atenção para o estado da cozinha eu quase engasguei. As coisas por lá não estavam indo muito bem, pois a cozinha parecia mais o cenário de uma guerra entre gangues, com direito a massa de biscoito na lâmpada e paredes, panelas sujas na pia e balcão, potes de chocolate abertos e derrubados e tudo o mais que pessoas atrapalhadas conseguem fazer cozinhando. Eu que não iria ficar para experimentar aquela aberração da culinária, e acabar sendo escolhido para ajudar na reconstrução daquele lugar depois “Acabamos de almoçar” Eu justifiquei.      

Marcos cruzou os braços, parecendo desapontado.

“Hum, tudo bem, vou perdoa-los dessa vez por curtir o show e não pagar a prenda. Mas dá próxima vez vocês não me escapam, ok? E sobre o vídeo game, não precisava devolver hoje, foi um favor que você me fez levando isso dessa casa, por um momento pude ouvir meus pensamentos sem ser atrapalhado pelos barulhos desse troço. Sei que foi eu quem comprou, mas eu realmente deveria ter exagerado no whisky nesse dia, só pode”

Kevin e eu nos entreolhamos e sorrimos.

“Eu prometi que ia devolver hoje, então se não tiver problema vou deixar na sala e ir embora, nós combinamos de ir a um outro lugar” Expliquei.

“O Caio está no quarto dele, vão lá. Assim você diz oi e agradece você mesmo”

Tios... Sempre tornando nossas vidas mais complicadas.

“Ok” Eu falei.

“Até mais garotos”

“Até” Dissemos juntos, já saindo.

Caminhamos para o corredor, e como eu não lembrava qual era o quarto do meu primo, abri a primeira porta e entrei.

“O que você está fazendo aqui?!” Falou minha prima mais velha, sentada no chão, de frente para a TV, onde estava passando um filme com áudio em japonês. Sério, essa família é muito estranha, pensei comigo mesmo.   

Por engano, acabamos entrando no quarto dela e da irmã dela, e ela não parecia nada feliz com isso. O cômodo era grande e espaçoso, da cor verde com vários pôsteres pendurados nas paredes. Os móveis eram simples, mas bem bonitos. Tudo muito feminino e delicado. 

“Oi para você também Vanessa” Eu tentei ser simpático “Esse é o-...”

“Não me importo” Ela me cortou, os lábios distorcidos, claramente de mau humor. “Não tá vendo que eu estou ocupada? Tudo que eu peço é um segundo de paz nessa casa, e nem isso eu consigo! Cai fora vocês dois, antes que eu esgane alguém e eu não estou brincando.”

Vi os olhos do Kevin se arregalarem um pouquinho e ele parecer um pouco assustado. Ele repirou fundo e sorriu.

“Gostei do cabelo” Ele disse da maneira mais gentil que conseguiu. Qualquer outra pessoa teria gostado do elogio, mas não Vanessa, ao invés disso ela o fuzilou com os olhos amendoados, deu pause no filme – o que visivelmente ela odiou fazer – e soltou de uma maneira venenosa:

“E eu gostei do seu silêncio, por favor, exercite-o fora do meu quarto.”

Acho que a boca de Kevin se abriu um tantinho depois disso. Eu balancei a cabeça de leve, incrédulo. Porque ela tinha que ser desse jeito? Mas afinal, que bicho a picou? Deve ter sido um bem venenoso, porque até hoje tem resquícios do veneno nela.

“Tudo bem, já estamos saindo.” Eu disse rapidamente.

Ela forçou um sorriso.

“Domo arigatou, bakas.” Respondeu, voltando a iniciar o filme, indiferente com a nossa presença.

Kevin me encarou com dúvida, provavelmente querendo saber o que aquilo queria dizer. Dei de ombros.

Saímos do quarto e fechamos a porta.

“Essa garota não bate bem” Eu sussurrei, e Kevin assentiu com uma risadasinha.

“Porque ela estava fantasiada?” Ele me perguntou, enquanto caminhávamos para o quarto seguinte.

“Aquilo não era fantasia, era o pijama dela”

“Ah... Nossa.”

“Você viu as orelhas? Acho que era pijama de coelho.”

Nós rimos daquilo. Paramos de frente para a segunda porta do corredor, eu enchi os pulmões de ar, procurando pela minha coragem – porque em relação a minha família, podia se esperar qualquer coisa. Não seria surpresa se quando eu desse um passo para dentro caísse numa areia movediça, ou desse de cara com um guepardo tocando acordeom – e entrei, Kevin logo atrás de mim. Aquele era obviamente o quarto de um garoto, com roupas jogadas pelo chão, pratos em cima da cômoda, e bagunça por toda a parte. Havia um cheiro diferente no ar, de alguma coisa vencida. Olhei para o chão e descobri do que se tratava. Uma caixa de pizza aberta, com dois pedaços dentro que pareciam mofados. Não entendia porque alguém manteria aquilo jogado daquele jeito, mas torcia para que não fosse para ser consumido mais tarde. Esse pensamento embrulhou meu estomago, e como não tinha ninguém no quarto, decidi sair logo dali.

Mas assim que saí do cômodo fui atingido por um jato de água bem no rosto, que molhou meus óculos – e por isso tive que tira-los para secado-los – e parte da minha camisa. Olhei para o lado e vi que Kevin também tinha sido molhado. Escutei uma risadinha sem-vergonha.

Há alguns metros de nós encontrei meu primo agachado segurando uma arminha de brinquedo, que evidentemente tinha como função espirrar um jato de água. 

“Caio!” Exclamei alto, limpando meu rosto e recolocando os óculos, e ele riu mais “Você não está muito crescidinho para esse tipo de brincadeira?”

“Calado Cabeção! Você e seu capanga estão encurralados, mãos para o alto se não eu atiro!” Ok, aquilo já estava beirando o ridículo.

“Cabeção? Eu não tenho um cabeção! Não me chama assim!” Falei indignado.

Ele me olhou com ironia.

“Não... Sua cabeça representa 50% do seu corpo, e você não é cabeçudo? Eu sei que seu nome não é esse, mas esse é seu nome de vilão! Você é o assustador Cabeção, o pirata mais maligno dos sete mares. E eu sou Caio o Corajoso, militar das forças especiais e delegado nas horas vagas” Eu tinha que admitir, ele realmente tinha muita imaginação, apesar de eu achar o momento inapropriado. Para minha surpresa, Kevin não achou nada demais e até acabou entrando na brincadeira.

“Ah é pequeno soldado? Então me diga uma coisa, quem sou eu afinal?” Ele indagou, curioso.

Caio permaneceu sério, concentrado em sua atuação.

“Você não sabe? Deve estar sendo mais uma vítima da crise de esquecimento que está afetando o povo da nossa vila. Deixe-me esclarecer então.” Pensou por um instante “Você é o grande ladrão Alemão, saqueador de vilas e inimigo da realeza. Meu dever aqui é prendê-los e leva-los para as autoridades”

“Mas eu pensei que você fosse uma autoridade” Tentei confundi-lo.

Ele vacilou por um instante, se levantando e coçando a cabeça.

“Bom... Eu sou, mas vou leva-los para a Rainha, ela sim saberá o que fazer com vocês. E tenho certeza que não será nada agradável” Proferiu a última frase de uma maneira lenta e pausada, que o tornou assustador mesmo para um garotinho de nove anos. “Agora, mãos ao alto e sigam em frente pelo corredor da morte” Ordenou nada educado. 

Olhei dele para a sacola em minhas mãos, tendo uma ideia.

“Mas antes de nos acompanhar para ter com a Rainha o derradeiro pagamento trágico para estas duas pobres almas que te falam, Sr. Delegado, tenho algo a mostrar-lhe que deve ser de seu interesse” Eu disse, todo pomposo, com um sotaque forçado que achei adequado a personagem. Caio me olhou aturdido, sem conhecimento do significado daquele estranho linguajar, até que eu levantei a sacola e então sua atenção voltou-se completamente para o conteúdo da mesma, os olhos brilhando de entendimento. “Um tesouro, há veras tirado dos vossos cuidados, e que agora poderá ser teu novamente, caso deixe-nos ir em paz. O que me diz? Temos um trato?”

Vi Kevin sorrir de lado e fitar meu primo com atenção. Mas o nadado estava decidido a dificultar as coisas.

“Arrã, sei. E você acha que eu vou abandonar minha honra e quebrar meu juramento de fidelidade a Rainha por tão pouco? Você é mesmo escorregadio, pirata Cabeção, mas eu não caio no seu papo-furado. Mãos ao alto, esse é meu último aviso” Apontou a arminha para nós, totalmente afundado no seu faz de conta.

“Bom, pelo menos eu tentei.” Falei desanimado para o Kevin, que me pareceu bem entretido com aquilo tudo.         

Caminhamos pelo corredor, Caio logo atrás, quando ouvi Kevin sussurrar:

“Alemão?”

“É por causa do cabelo.” Sussurrei de volta, a sua fisionomia se iluminou de compreensão e ele riu baixinho.

“Silêncio vocês dois!” Repreendeu todo autoritário, cutucando minhas costas com a ponta da arma de brinquedo. Aquilo estava começando a me irritar...


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