Premonição Chronicles 3 escrita por PW, VinnieCamargo, Felipe Chemim, MV, superieronic, Jamie PineTree, PornScooby


Capítulo 23
Capítulo 23: Era Uma Vez


Notas iniciais do capítulo

Escrito por Jamie PineTree.



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Era Uma Vez

 

Parte I - Passado

"Cada um tem o seu passado fechado em si, tal como um livro que se conhece de cor, livro de que os amigos apenas levam o título." - Virginia Woolf.

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Janeiro de 2000

O sinal da Escola Fundamental de Cabo da Praga tocara no horário de sempre, logo uma multidão de crianças barulhentas emergiam dos portões, em direção aos seus pais ou para a grande praça que ficava na frente da escola. Donatella estava sentada num dos bancos da praça, procurando por sua criança.

Seus cabelos chegavam na metade de suas costas, as feições ainda jovens de seu rosto eram apaixonantes para qualquer um que a visse e seus olhos castanhos contrastavam em sua pele branca como a neve. Com apenas dezesseis anos, Donatella abandonara sua vida antiga para se tornar babá de dois garotos, numa cidade que ainda era desconhecida para ela.

Sua saída brusca de casa lhe obrigara a procurar um emprego em outra cidade. Donatella amava seu pai, mas não aguentava mais viver com uma mãe agressiva e problemática, que só pensava em dinheiro e torturava seu marido por não tê-lo. Mama criara Donatella como uma interesseira, ela queria que a filha usasse sua beleza para fisgar homens ricos e não tinha limites para isso.

Mesmo distraída com a beleza de Cabo da Praga, Donatella acompanhava o garotinho que corria desajeitadamente com a mochila nas costas. Ela acenou e esperou que ele chegasse.

Um pouco mais distante, uma mulher carregava um bebê em suas mãos. A criança chorava muito e a mulher parecia perdida, sem saber o que fazer para resolver o problema. A mulher, mesmo parecendo ser rica, não tinha nenhuma delicadeza com o recém-nascido em seus braços, ela chacoalhava o bebê e gritava com ele, pedindo que o choro cessasse.

Aquilo doía na babá, que imaginava o dia em que teria seu próprio filho. Donatella ainda era uma adolescente, mas já tinha um grande instinto maternal dentro de si. Ela gostava de trabalhar como babá e cuidar de pessoas lhe fazia feliz.

O garoto a abraçou e seus pensamentos se dispersaram.

Ele tinha o cabelo vermelho-alaranjado e a pele pálida, que brilhava com o suor. Os pequenos olhos do garoto eram azuis, que se tornariam verdes com o passar do tempo. E na forma como ele mexia o cabelo e de como brincava com um helicóptero de brinquedo, existia uma inocência e ingenuidade que Donatella amava.

Mas também havia dor.

A mulher e o bebê já tinham ido embora, então ela voltou a atenção para o seu protegido, Maurício. Donatella examinou a ferida do ruivo, ainda no início do processo de cicatrização, que ocupava toda a extensão do antebraço do garoto. Uma grave queimadura de terceiro grau, viscosa e com bolhas amareladas, resultado de um incêndio mal explicado.

— Não se preocupe querido, vamos refazer o curativo quando chegarmos em casa.

Maurício olhou para ela, de uma forma estranha, mas sorridente.

— A sua aura.... Tem um aura prateada, mas ela está tão fraca. - Disse ele, como se estivesse em transe. - Sempre tentando se esconder o canal da cura no meio de outras cores, mas não sei por que tenta se proteger de si mesma.

— Obrigada... Eu acho. - Ela ficara impressionada. - Como pode saber disso?

— Tem uma luz colorida ao seu redor, eu aprendi na Internet que isso se chama aura. Todo mundo tem uma, até a minha irmã, só que a dela é muito preta. Dá medo.

Ela não soube dizer se acreditava, mas acariciou o rosto do garoto e preferiu seguir em frente. Já estava tarde, Donatella precisava cumprir seu trabalho e levar Maurício para casa. Ela caminhou de mãos dadas com o garoto, tentando não pensar nos dois assuntos, mas durante o percurso, a babá escutou algo que fez seu coração parar.

O choro de um bebê, vindo de um lugar próximo à ela.

Donatella se aproximou rapidamente por instinto, depois de pedir que aquilo não fosse verdade. Dentro de uma lixeira, ao lado de embalagens vazias, papel amassado e restos de cigarros, havia algo enrolado num lençol de boa qualidade. Era o mesmo bebê visto anteriormente, deixado ali como se fosse lixo de verdade, pela mulher rica, mas nem um pouco amorosa e visivelmente desequilibrada, que se afastava sem a menor pressa ou remorso.

— Que tipo de monstro pode fazer isso? Abandonar um bebê assim, sem qualquer respeito ou consideração?

— Aquela bruxa lá. - Maurício respondeu. - Ela é esse tipo.

Donatella tomou o bebê nos braços e os olhos da cor do mar dele se acalmaram, o bebê parou de chorar ao sentir o toque e ouvir a voz da babá.

— Não posso deixá-lo aqui... Mas também não posso devolvê-lo para aquela louca.

— Talvez seja seu destino cuidar dele, assim como cuida de mim.

Maurício se afastou, deixando Donatella com um dilema em suas mãos. Ela sabia que deveria procurar a polícia e entregá-lo, mas sentiu uma empatia especial pelo bebê. Ela queria cuidar dele, ser sua guardiã e amá-lo, como um filho de verdade.

— Vou cuidar de você, querido. - Ela beijou a testa do bebê, deixando-lhe uma grande marca de batom vermelho. - E não se preocupe, gente dá um jeito na louca da sua mãe depois.

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Janeiro de 2016

Fred observava a cidade ficar para trás, perdido no que tinha acontecido naquela noite. As lágrimas escorriam do rosto do garoto, de uma forma tranquila e vagarosa, mesmo que uma força invisível estivesse lhe arrasando por dentro. Nem mesmo a morte de Marco tinha sido tão dolorosa. Ele pensava na ironia de ter desprezado a madrasta por tantos anos, odiando-a mais que tudo e amando uma pessoa, que nem sequer gostava dele.

I thought that I've been hurt before
But no one's ever left me quite this sore
Your words cut deeper than a knife
Now I need someone to breathe me back to life

As últimas palavras tinham sido bem claras.

O "amor" que Mabel dizia sentir era pura psicopatia, um desejo de ter de volta o que abandonou, apenas para sustentar um capricho de sua mente doente. Não importava se o fosse o seu filho ou um objeto qualquer. Donatella tinha tirado o seu pertence e ela queria fazer o mesmo, pegando aquilo que sua rival mais amava.

Got a feeling that I'm going under
But I know that I'll make it out alive
If I quit calling you my lover
Move on

E todas as vezes que Fred olhava para Alfinn, ele sentia uma dor maior ainda. Alfinn era uma criança, que precisava se acostumar com a morte e o sofrimento lhe acompanhando pelo resto da vida, que ele nem sabia o quanto poderia durar. Os dois irmãos sabiam que no futuro, o peso do assassinato de Mabel iria consumir um, enquanto o outro seria atormentado pela omissão de ter deixado acontecer.

Era mais um segredo de família, que eles tinham de superar.

You watch me bleed until I can't breathe
I'm shaking, falling onto my knees
And now that I'm without your kisses
I'll be needing stitches

A morte de Donatella abrira uma ferida em seu coração, que ele não sabia como cicatrizar, sem os beijos exagerados de batom que a médica lhe dava todas as manhãs, os mesmos beijos que ele demorara tanto tempo para aceitar.

— Eu nunca chamei ela de "mãe" antes. A primeira e última vez, foi quando estávamos no carro, antes dela entrar na escola. Se eu soubesse que seria a última...

I'm tripping over myself
I'm aching begging you to come help
And now that I'm without your kisses
I'll be needing stitches

— Ei, não pensa assim, a Dona te amava e isso já é o bastante. Não se ajoelhe diante da dor.

Kaíque abraçou Fred por trás, com as costas dele rentes ao seu peitoral, um leve arrepio ocorreu no moreno, por sentir a respiração do loiro em seu pescoço, que ficou tentando lhe acalmar. Fred foi se acalmando aos poucos, concentrando-se na voz do seu amigo, se aconchegando nos braços dele. Sentindo-se seguro e agradecido por tê-lo.

Momentos atrás, aquele carro velho fora palco para uma prova do amor deles e depois da morte da médica, uma penumbra triste abatera-se nos quatro ali.

Needle and the thread
Gotta getddeadead you out of my head
Needle and the thread
Gonna wind up dead

No banco do motorista, Gabriel dirigia a picape pensativo, não só por ter deixado o corpo de Donatella naquele lugar, mas também no futuro dos dois garotos. Fred e Alfinn eram oficialmente órfãos e quando a situação na cidade se normalizasse, o governo saberia disso.

Needle and the thread
Gotta get you out of my head
Needle and the thread
Gonna wind up dead

Se pudesse, ele tomaria aquelas crianças como suas, mas o jovem não era nada delas, além de amigo. Ele nunca encontrara uma mulher como Donatella antes, nem mesmo pensar em namorar ninguém do hospital, mas quando conheceu a médica onze anos mais velha que ele, a paixão fora instantânea e impossível de ser contida. Agora, os filhos dela estavam sob sua responsabilidade e ele não sabia o que fazer.

And now that I'm without your kisses

I'll be needing stitches


— Vamos ficar na estrada a noite toda, até encontrarmos os outros sobreviventes. É melhor descansarem e depois vemos como será daqui para frente.

— Ninguém pode saber o que nós... O que eu fiz hoje. - Fred olhou para as mãos, que ainda tinham o sangue seco de Mabel nelas.

Todos concordaram em silêncio.

Alfinn dormiu no banco ao lado de Gabriel, segurando a corretinha com o símbolo de Ísis, que tinha dado para mãe no dia em que iriam sair da cidade. Kaíque também apresentara sinais de cansaço, mas Fred não queria, nem conseguiria dormir por saber que cego pela dor, matara a mãe biológica.

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A quarentena estava perto de terminar e todos na Pyramid queriam estar prontos. A evacuação de Cabo da Praga já começara e logo, a cidade e a empresa estariam sob os holofotes mundiais. O exército estava encarregado de levar toda a população saudável para "O Sítio", um acampamento de estrutura militar, onde eles ficariam seguros da purificação. Aos que não estivessem lá, Anúbis não lamentava.

As paredes do seu escritório foram pintadas numa tonalidade perto do dourado terroso, a decoração estava além do ricamente suntuoso, mas ao mesmo tempo não era exagerado; cada item tinha um brilho diferente, que conseguia se harmonizar aos demais. A Pyramid exibia traços de modernidade, junto com o clássico rebuscado dos tempos antigos.

— Senhor, o gás está pronto para ser transportado. - Disse a secretária.

— Excelente! - Vibrou Anúbis com um sorriso. - Mal posso esperar para iniciar o Projeto Apófis.

O empresário reveu novamente o plano em sua mente. Em poucas horas, o gás seria liberado em diferentes pontos da ilha, os infectados encontrados pelo caminho seriam exterminados e a população restante estaria salva nos abrigos militares. Perto de Anúbis, Barbie escutava tudo calada em sua própria mesa, que ficava entre duas enormes estátuas de chacais, feitas para parecerem guardiãs do local.

— Então esse é o seu plano? - Barbie perguntou, tentando não se mostrar exaltada. - Envenenar toda a ilha?

— Envenenar é uma palavra muito forte, prefiro dizer que vamos purificá-la. - Respondeu secamente. -  Se não for por bem, que seja pelo mal então.

Anúbis não confiava mais em Barbie na produção de uma cura, mandar matar a KB - 081 era a forma de ele dizer isso. Ele prometera encontrar outra cobaia e quando achou, ela também foi morta. O homem sabia do descontentamento de sua esposa, mas Barbie falhara em resolver o problema que causou e a Pyramid estava sem opções.

E naquela decisão arriscada, Barbie não tinha mais o direito de opinar.

— Você me prometeu que se achássemos uma cobaia, podíamos tentar fabricar um composto que sirva como antivírus.

— Não temos mais tempo, a única cobaia que consegui localizar, já estava morta num hospital qualquer. Já conversamos que a quarentena acaba essa noite e não podemos fazer mais nada sobre isso.

— Você tem ideia do quanto esse material é perigoso? Não só para quem estiver perto, mas para a fauna e a flora da ilha também. Cadê a Eva quando a gente precisa dela?

O empresário revirou os olhos, preferindo não escutar.

— Nada é perigoso para quem tem dinheiro, além do mais, vai ser pouco e nas áreas com a maior concentração dos seus infectados. Somente eles serão exterminados.

Usar o gás tóxico na ilha soava arriscado para Anúbis, mas ele sabia que era a forma mais rápida, de lidar com os infectados restantes e queria a aceitação de Barbie, de que a solução de todos os problemas não estava mais na ciência.

Barbie não podia acreditar no que escutou. A mulher sentiu-se desarmada, sem mais um propósito que beneficiasse à todos como ela desejava. Anúbis se aproximou e abraçou a ruiva, que deixou as lágrimas acumuladas verterem de uma só vez.

— Estou fazendo isso por você, pelos nossos filhos e por tudo o que construímos juntos. - Disse o homem, com um tom de voz mais calmo e persuasivo. - Você parece cansada, vá dormir um pouco, eu prometo cuidar de tudo.

A viróloga enxugou as lágrimas rapidamente e seguiu o conselho do marido, afastando-se do escritório da empresa, para outra sala conformada. A situação não estava em suas mãos.

Anúbis assistiu a cena com satisfação.

— Senhor, a atiradora contratada para eliminar as cobaias está cobrando o pagamento. - A secretária ainda estava ali, só observando. - Ela exige ter a garotinha de volta.

— Isso pode esperar, ela fica sob minhas ordens até eu decidir, quando ela não será mais necessária.

— Outra coisa, o secretário do falecido prefeito quer vê-lo imediatamente.

— Manda ele marcar hora. - Anúbis se irritou, pensar em Hórus sempre o tirava do sério. - Não tenho tempo para qualquer um.

— Precisa de algo mais? - A secretária perguntou, mostrando um pouco das pernas e se inclinando na direção do homem. - Posso te fazer relaxar com uma daquelas "massagens".

— Sim, me traga uma xícara de café. Bem forte e sem açúcar. - Ele jogou a mulher para fora de seu colo. - Depois, traga a Alex aqui agora mesmo. Preciso repassar o discurso que ela fará para os moradores, depois que o lacre da ilha for rompido.

— Alexandra, a advogada? - Ela se fez de rogada.

— Você me escutou muito bem. Existe outra Alexandra trabalhando na Pyramid?

A secretária nada respondeu, apenas abaixou a cabeça e saiu da sala em silêncio. Voltou para sua mesa, pegou o telefone e providenciou a ida da advogada para Cabo da Praga, o mais rápido possível.

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Do outro lado do corredor, Gigi assistia Anúbis excluir Barbie lentamente da própria empresa. Por um lado, ela reconhecia todos os erros que a amiga cometera, mas sabia das consequências futuras que aconteceriam, se Anúbis estivesse com total controle.

Desde a morte da filha, Gigi preferiu se manter reclusa, pensando apenas em trabalho e não se dar ao luxo de chorar. Maria ainda era uma ferida aberta e Gigi não sabia como lidar com a morte prematura da filha. Sempre que fechava os olhos, Gigi podia ver o corpo destruído de Maria, espalhado de qualquer forma pelo piso da maternidade.

Pensar no futuro do filho era o que lhe fortalecia.

Barbie entrou marchando na sala, batendo os saltos finos contra o piso polido e ignorando o contato visual da amiga. Sentou no divã, secou as lágrimas e pôs se a pensar em tudo o que acontecia.

— O que o Anúbis vai fazer dessa vez? - Gigi perguntou.

— Na melhor das palavras, ele quer envenenar toda a ilha.

— E é isso o que você quer também? - Gigi cruzou os braços. - Genocídio?

— Quantas pessoas morreram nas pesquisas da contra a Peste Negra? Contra a malária? O vírus da gripe e da poliomielite, até chegarem numa cura? - A ruiva a encarou. - E se não der errado, Gigi?

— Você está escutando o que está dizendo? Essa não é a mulher que eu conheci.

— Eu lamento por todas as pessoas que morreram, elas eram inocentes e não mereciam isso, mas o avanço da ciência custa caro. A Pyramid já atraiu muita atenção negativa com a propagação do vírus, o Anúbis só quer acabar logo com isso e livrar o nome da nossa empresa.

— O que aconteceu, Barbie? Você está deixando o Anúbis te controlar, ser o seu dono e deixando ele como o governante supremo da Pyramid. Você esqueceu que é tão dona dessa empresa, quanto ele é?

Cada vez mais, Barbie sentia-se destruída por dentro, inapta como viróloga e responsável por todos os eventos desde o vazamento do vírus. Por mais que ela tentasse esconder isso sob um semblante poderoso.  A sua experiência médica trouxera consequências ruins não só para a população de Cabo, mas para a própria família também.

Seus filhos, Bianca e Ben, também foram submetidos aos procedimentos arriscados, tendo sua fórmula genética alterada para sempre e destinados a passarem o resto de suas vidas, trancados num quarto acolchoado na outra ilha pertencente ao Instituto. Para evitar que machuquem outros e serem protegidos do mundo.

— Nada do que eu tentei fazer deu certo. - Ela tentava não chorar, mas era só o que conseguia fazer. - Perdi a cobaia 081 e acabei de saber que a 032 morreu.

— Eu já vi tantos voluntários passarem por aqui, desde que você começou as pesquisas dois anos atrás, deve ter sobrado algum. Pense um pouco. Reaja. Volte para os laboratórios e invista numa cura a todo custo.

A ruiva nunca escutou a amiga falar daquela forma.

Barbie andou apressadamente até a escrivaninha, pegou o seu tablet e começou a procurar entre os arquivos com as fichas de todas as cobaias que já teve, alguma que pudesse ajudar. A maioria delas já havia morrido por não aguentar a experiência, outras foram descartadas por não se adequarem, mas depois de alguns segundos de procura, Barbie achou o que procurava.

Duas antigas cobaias estavam vivas e o tratamento experimental delas, fora registrado como "inconclusivo".

Uma sombra de esperança passou pelos olhos da viróloga. Ela começou a ler as fichas duas cobaias dispensadas e percebeu o quanto a ideia de uma vacina, ficava cada vez mais concreta e do quanto estava errada em confiar à segurança de todos com Anúbis.

— Gigi, você vai para outra ilha e começar a fazer exatamente o que eu vou dizer. - Havia muita confiança em sua fala. - Mas antes, vamos precisar das cobaias 031 e 069. Nossa sobrevivência depende delas.

Gigi se alegrou, por ver o brilho diferente no olhar da ruiva e escutou os planos dela. Barbie escolheu ficar e atacar o próprio marido sem ele saber. Era o que o seu coração gritava e dessa vez, ela o escutou.

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— Você é surda, garota? - Gritou um dos militares - O que faz aqui?

— Eu? Nada não? - Amanda sorriu amarelado. - Na verdade, eu meio que moro aqui, ou em qualquer lugar. Tem uma boa vista para o mar.

— Acha que a gente vai cair nesse papo furado?

— A ideia é essa! - Amanda já estava acostumada com armas apontadas para ela, a vida no Complexo a preparou para escapar de várias situações como aquela. Os guardas se entreolharam e no milésimo de segundo que isso durou, Amanda sumira.

A mendiga aproveitou o momento de distração e correu pelo píer, usando a escuridão para se disfarçar. Amanda não olhou para trás, continuou a correr sem rumo entres os armazéns, numa tentativa de despistar os militares e salvar sua pele. Ela não tinha mais o Complexo para onde ir e se abrigar, nem amigos para lhe dar suporte; Amanda estava sozinha contra o mundo mais uma vez.

— Atrás dela! - Amanda pode ouvir.

Gritos e alguns tiros ressoaram no ar, Amanda tremia, mas sabia que não podia se render antes de tentar uma fuga. Os passos rápidos lhe deixavam ofegante a cada segundo, o suor provindo daquela madrugada quente dava um jeito de entrar em seus olhos escuros e seus pés doíam dentro dos tênis apertados.

Escondido numa parte mal iluminada do píer, Amanda notou um armazém aparentemente abandonado e seu estômago vazio não deixou que ela pensasse duas vezes, o que fez a garota ser rendida pelo cansaço e pela fome e se esconder dos militares.

Quebrou a janela com uma pedra e adentrou no lugar, mantendo-se em silêncio. Amanda se viu num grande galpão, lotado com vários cilindros químicos. A curiosidade da garota falou mais alto, ela deixou a fuga de lado e tentou compreender o que estava escrito nos rótulos descascados.

— Que droga é essa?

— Algo que não é da sua conta. - Amanda pulou de susto. Atrás dela, um homem apontou uma arma em sua direção. - Você não devia ter visto isso, agora tenho que matá-la.

Amanda se assustou com a fala, mas quando viu quem segurava a arma, ela sentiu uma profunda vontade de rir. De frente para ela, estava um jovem com pouco mais de 20 anos, levemente acima do peso e com um chapéu Fedora escondendo um pouco do cabelo castanho.

— Você não tem cara de bandido. Parece mais aqueles nerds que ficam jogando jogos de guerra e ainda são virgens.

— Ou você é muito maluca, ou doente. - O rapaz fez um expessão de confusão, mas constatou que ela não era a maior das ameaças. - Que se danem os rótulos. Eu sou um hacker, o meu padrinho é quem mexe com contrabando pesado, mas agora, ele só quer saber da namorada.

— Espera! - Amanda caminhou para mais perto dele, se concentrando naquelas feições familiares. - Você é o Pedro? Afilhado do Ed Moura?

O homem se surpreendeu com a revelação e guardou a arma dentro da calça.

— É... Eu não o vejo mais desde o Expurgo. Acho que morreu. Quer dizer que eu controlo os negócios dele agora e você está me atrapalhando.

— O Ed está bem vivo, lamento de decepcionar, gordinho. - Amanda deu um tapinha na barriga dele e continuou a andar pelo galpão. Por um segundo, Pedro se animou com a notícia sobre o padrinho, mas Amanda ainda era um problema para ser resolvido.

No pouco tempo que ficou hospedada na Falcon, Amanda conheceu um pouco de cada um dos sobreviventes e Ed era o mais falante de todos. Quem entretia o grupo desanimado com diferentes histórias sobre suas aventuras, algumas delas, incríveis demais para serem verdadeiras, mas eram.

Ed também lhe contara sobre Pedro, o afilhado que por tanto tempo, manteve afastado de seus negócios. Em parte, por não confiar tal responsabilidade nas mãos do Pedro, mas também, por que não queria dar a mesma vida turbulenta para ele. Ed queria que Pedro tivesse uma vida diferente, que usasse o alto conhecimento em tecnologia para algo melhor, do que no perigoso mundo do crime organizado.

— Então... Já que somos conhecidos agora, o que vai fazer com todo esse tal de cianeto? Pelo nome, não deve ser coisa boa.

— Garota, o meu trabalho era trazer tudo isso para a ilha. O que a Pyramid vai fazer depois, não é da minha conta.

Ao escutar o nome da empresa, Amanda se lembrou de Marjorie e do perigo que ela corria, lembrou-se da invasão violenta no galpão e do sequestro de Amélia. Lembrou-se de quando a tal vacina prometida no início, não fizera nenhum efeito e vários de seus amigos adoeceram e morreram na sua frente.

— Alô, Terra chamando a mendiga atrevida. - Pedro lhe deu um pitaco na testa. - É melhor dar o fora, você não vai querer estar aqui, quando esse gás for liberado na cidade.

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Apoiado na amurada de ferro do Marine I, Renan olhava amargurado para o céu escuro, sem se importar com o vento ameno daquela madrugada. Sua memória não lhe dava tréguas, o que o deixava em meio aos pensamentos enevoados, que se dissipavam a qualquer brisa, tornando-os disformes e sem sentido.

Já havia passado das oito horas da noite, a curiosidade que ele tinha em ligar para o número era grande, mas o tamanho do perigo também era. Renan não sabia quem ou o quê esperava por ele do outro lado da linha.

E o homem não sabia mais quanto tempo, poderia aguentar viver sem uma direção.

— Você está bem? - Ísis se aproximou, tremendo por estar só com uma blusa sem mangas.

— Fica dava vez mais difícil responder essa pergunta, mas eu vou ficar. Tenho de ficar bem.

Ísis não tinha ideia do que estava acontecendo, a vaga explicação de Renan sobre a lista e a fuga do vírus mortal, ainda martelava sua mente em busca de mais. Só o que ela sabia, era que Valentim estava longe e Renan, continuava perdido, de uma forma que jamais esteve antes.

— Olhe para cima, Renan, olhe para a lua. Ela pode parecer solitária, mas tem várias estrelas ao redor dela, que nunca irá deixá-la sozinha. Você não precisa carregar esse fardo sozinho.

Renan assentiu com um aceno de cabeça quase imperceptível, depois olhou para o alto, sem muito interesse de prestigiar o espetáculo natural, mas tocado pelas palavras dela. A curiosidade para saber quem era o próximo se perdia no meio de tantos fracassos, nada que ele tentava adiantava. Donatella e Alfa tinham sido as últimas vítimas, pessoas que Renan queria ter dado a chance de viverem mais.

A inércia do momento era sua inimiga. Tudo acontecia rápido demais, ao mesmo e há vários metros de distância. Renan era apenas um rapaz com um dom, que lhe trouxera apenas desgraças e olhares tristes, não um deus onipotente, que podia mandar e desmandar no universo e em quem morava nele, como a maioria achava.

— Não deixe sua mente te controlar, Renan. Você é mais forte que ela e sabe disso, basta acreditar.

Ele sorriu e num gesto de gentileza, cobriu Ísis com seu casaco e deixou que ela colocasse sua mão, sobre as mãos trêmulas do visionário.

— Eu tenho sentimentos por você. - Ísis o encarou. - Mas não sei dizer o que são, apenas os sinto.

Não havia como negar, a personalidade instigante de Ísis era cativante e atrante. Os sorrisos que a loira mostrava, faziam diversos sentimentos conflitantes de Renan crescerem ainda mais por ele e o amor era um deles. Mais que um sentimento, o amor era um campo de batalha.

— É impressão minha ou tempo parece ter ficado mais devagar? - Perguntou ele, perdido no olhar dela.

— Não é o tempo, é o barco. - Ísis olhou para o mar. - Por que estamos parando?

Para responder a pergunta que todos no iate faziam, Renan decidiu subir até a cabine de controle do Marine I e procurar pelo capitão de confiança contratado pela madrinha do Alfa. Ao chegar lá, os três tripulantes estavam parados, como se fugir da ilha infectada não fosse mais prioridade.

— O que aconteceu? - Renan olhou para a face perdida do comandante, que parecia estar em dúvida sobre o que fazer.

— Lamento... Mas estou apenas seguindo ordens. - Disse o comandante.

O comandante sacou um revólver escondido em sua roupa e apontou para Renan, que levantou as mãos por instinto, sem entender o que acontecia. Dois tiros foram disparados na cabine, mas não acertaram o visionário e sim, os outros dois tripulantes, que não tiveram tempo de reagir e caíram mortos.

Renan se curvou ao chão, a fumaça da pólvora queimada penetrou em seu corpo, indo para cérebro, lhe levando de volta para um ano atrás, no momento que ele desapareceu e deixou de ser quem era. Entretanto, o visionário não se deixou levar pela memória, mesmo com a mente fraca e desnorteada, ele escutou o grito de seus amigos e voltou para o presente.

Antes que o comandante tivesse tempo de mudar de ideia, Renan desceu de volta ao convés principal e deu de cara com o interior do barco estar repleto de um gás sonífero. Ele cobriu a boca e o nariz e esperou e testemunhou seus amigos serem carregados inertes para outro barco, por homens fortemente armados e usando o uniforme da Corporação Pyramid.

O outro barco partira, deixando Renan com mais outras pessoas desacordadas, ele correu para o corpo de uma loira, pensando se tratar de Ísis, mas era a Débora. No entanto, outra coisa chamou a atenção desorientada do visionário tatuado: o barulho de um contador. Renan espanou o restante de fumaça para enxergar o que estava fazendo aquele som e quando visualizou a bomba presa ao casco da embarcação, já era muito tarde.

Parte do Marine I explodiu em chamas, o que fez ele e seus amigos serem arremessados bruscamente para fora do pequeno iate, que não demorou para afundar. Renan viu vários objetos e seus novos amigos boiando no mar e da maneira mais sôfrega possível, abraçou o primeiro destroço flutuante e apagou na água gelada.

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Fevereiro de 2016

Naquela manhã, Barbie acordou ainda se sentindo cansada do dia anterior.

Ao seu lado, Anúbis dormia o melhor dos sonos e ela permanecia abraçada ao corpo dele, acariciando os pelos loiros de seu peitoral. Mas Barbie não quis acordá-lo, preferiu deixar que ele continuasse naquele sono profundo e levantou da cama, enrolando seu corpo esbelto em um lençol 500 fios de algodão egípcio.

Barbie admirou a vista do sol nascente, seus olhos estavam levemente vermelhos e tinham algumas olheiras debaixo deles, pela noite mal dormida. Ela voltou-se para o marido e seus olhos se inundaram de novo, mas ela segurou o choro, já estava cansada de lamentar e parecer fraca, quando ainda tinha o poder em mãos.

Ela amava o marido, mas também entendeu o poder que o ódio tinha, um sentimento que nunca fizera parte de sua vida. Ódio de si mesma, ódio de que o plano de Anúbis triunfasse e o dela falhasse. Também sentia culpa por ter falhado como pessoa, por ter falhado como cientista e culpa pelas vidas que foram prejudicadas por ele. Se afogando nas palavras não ditas e se martirizando todos os dias, por não reagir quando teve chance.

Lembrou-se de quando começou a trabalhar no vírus, os testes feitos nos voluntários e em seguida nas cobaias, buscando a inibição do câncer de uma melhor forma do que a fosfoetanolamina dizia agir. Mas de alguma forma, ela perdeu o controle da situação e o vírus se espalhou para fora de seus laboratórios.

Mas por enquanto, o plano da nova Barbie estava dando certo.

Na noite passada, ela instruiu Julia, outra cientista do complexo, a começar de novo as pesquisas de um tratamento antiviral. Para eliminar o vírus com o máximo de eficiência, sem prejudicar as células hospedeiras do corpo, usando o composto de imunidade temporária no sangue da 032 mais a resistência do 069 ao vírus.

Ela não podia confiar a segurança de Marjorie aos funcionários e precisava ter suas cobaias de volta. E levar os sobreviventes para a outra ilha, era uma forma dela conseguir realizar duas tarefas primordiais, sem a interferência de Anúbis.

Seu celular tocou e Anúbis se revirou na cama, ela correu na ponta dos pés até a sua bolsa e atendeu o aparelho, para se surpreender com a voz assustada de Gigi no outro lado da linha.

Barbie, nós temos um problema... É sobre os seus afilhados.

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Parte II - Presente

"O passado e o futuro parecem-nos sempre melhores; o presente, sempre pior." - William Shakespeare.

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Cabo da Praga permanecia coberta por um céu cinza.

Um mês atrás, a Manhattan brasileira era uma cidade frutífera e um bom lugar para viver. Durante a quarentena, a cidade foi decaindo à uma grande terra semivazia e doente, que o Brasil sequer gostava de lembrar da sua existência ancorada acima do nível do mar. Mas passado o tempo de espera da quarentena, todos os olhares estavam voltados para ela.

Em poucas semanas, o número de habitantes fora reduzido drasticamente e o que sobrou da população saudável, estava aguardando o desfecho da situação. O lugar era ainda maior que o Santuário, uma área privada cedida por um importante empresário da cidade, para que o restante de Cabo estivesse segura do trabalho de purificação, futuramente realizado em poucas horas.

A manhã já estava perto do fim, quando o último ônibus militar estacionou no Sítio. Amanda, Pedro e vários outros moradores, foram os últimos que deixaram a área urbana de Cabo. Confinados por quarenta dias, as pessoas poderiam perder o controle, mas isso não ocorreu, havia um sentimento de resignação e conformação dentro deles. Os moradores sabiam que não tinham opção, além de sobreviverem longe dos infectados, mesmo que isso custasse o abandono de seus barracos e mansões.

Haviam dezenas de abrigos improvisados ali, sem qualquer luxo ou regalia, mas funcional e seguro para eles. Amanda não pode deixar de notar, o quanto aquele lugar era parecido com o Complexo, onde existiam pessoas de todos os tipos, sem terem para onde irem e com todos os tipos de histórias para contar. Depois de um longo e necessário processo, para confirmarem que ninguém mais possuía o vírus, Amanda pode se concentrar em encontrar Heloísa e Desconhecido e também sua irmã de coração, Suzana.

No meio da multidão estagnada, uma representante da Pyramid explicava os planos benéficos da empresa para eles, mas Amanda não estava interessada nas palavras delas, só com muita fome.

 - [...] A Pyramid entende e preza pelo fim dessa tormenta, por isso não mede esforços em conter o misterioso vírus. Nesse exato momento, a Pyramid está cuidando dos últimos detalhes para a limpeza da cidade e os infectados encontrados, serão contidos de forma humanitária e cuidadosa, até que a vacina termine de ser modificada e torne-se segura para uso. Logo mais, poderemos contar ao mundo o nosso relato, contar para as próximas gerações sobre como sobrevivemos à isso. É só uma questão de tempo, para que retomemos nossas vidas e começar a reconstrução de uma nova cidade... Em uma nova era, que ficará marcada para sempre na história."

Os aplausos não foram muitos, nem foram mostrados com animação. A representante da Pyramid também não pareceu acreditar nas palavras escritas por seu patrão, ela sorriu da forma mais cordial que pode e se preparou para sair. A mulher era loira, com o cabelo cortado pouco acima dos ombros e vestida com um conjunto executivo azul. Um pouco atrás da mulher loira, Amanda percebeu um adolescente que acompanhava a oradora, um garoto com feições angelicais e quem ela amou no passado: Bartolomeu, seu ex-namorado.

Viver na rua lhe ensinou como ser forte e fria, não deixando que qualquer um pudesse lhe usar. Ignorar Bart fora um grande erro, mas ela não se arrependia. Se não fosse por isso, ela não teria conhecido Suzana; uma pessoa que a vida lhe dera nos tempos de dificuldade e juntas, elas eram uma família, que estava longe se ser perfeita, mas era o máximo que tinham e prezavam por isso. Quem ela não queria jamais abandonar.

O coração de Amanda disparou, ver Bart novamente, quem achou que estava morto e que nunca mais iria veria de novo.

Ao fundo, atrás de toda a multidão resignada, que ia sendo levada para seus respectivos quartos coletivos, Bart e a mulher loira se distanciavam. Amanda foi forçando a passagem entre os moradores, empurrando e pisando sem querer e com querer nos pés de alguns. Não importava. Ela só queria ir atrás do seu primeiro amor.

— Bart! - Ela gritou alto o suficiente, que muitos olharam para ela apenas por curiosidade - O garoto virou para trás e a viu por cima de seus óculos de grau, mas ignorou a moradora de rua e continuou o seu caminho. Era como se ele estivesse assustado com aparência dela. Bart e mulher loira entraram em um carro luxuoso, que logo acelerou para além dos portões do Sítio e da barricada militar, mas Amanda não desistiu de perseguí-lo.

O encontro que tivera com Bart no Complexo dias atrás, fez Amanda rever seu passado. Ela sabia que podia ter contado com ajuda dele, mas preferiu esquecê-lo e decidir nas ruas como seria sua vida e mesmo assim, ela não fazia ideia de quais seriam os seus próximos passos.

Quando ela já estava próxima do limite do cerco, um militar barrou a sua passagem.

— Você não pode sair, mocinha.

— Eu preciso ir atrás dele... Preciso consertar o meu erro.

— São ordens do general, ninguém morador pode sair até segunda ordem.

— Bart... Volta, por favor!

Mas tão rápido quanto apareceu, Bart desapareceu de sua vista.

Amanda retirou uma foto do bolso sujo da jaqueta. A foto que Bart lhe dera, onde eles apareciam abraçados, quando ainda eram um casal feliz e Amanda tinha uma vida normal. Cansada e humilhada, Amanda desistiu e deu meia volta.

Deixando para trás, pedaços rasgados do último momento que fora feliz de verdade.

=-=-=-=-=

Ed estava morrendo.

A queda do bondinho fora demais para ele. Seu corpo ardia e queimava de dor, gritando de forma tão intensa, que ele foi parando de respirar. Sua visão foi ficando turva, conforme o aço terminava de contorcer ao redor e no curto momento que permaneceu consciente, Ed viu a história daquele que era o momento mais triste sua vida, até o momento.

Depois que atearam fogo na mulher infectada, o controle da situação já tinha se perdido. A desorientação do momento fez Samantha acelerar o luxuoso carro, o que fez ele colidir bruscamente com o veículo seguinte.

A frente do carro foi amassada como papel, prensando sua lataria para trás e esmagando parcialmente Samantha, que tinha o volante do carro encostando em seu queixo. Samantha gemeu alto, sentindo o amontoado de ferro retorcido rasgar sua pele e perfurar alguns órgãos. Ed estava no banco de trás, sem maiores danos por causa do cinto de segurança.

— Vou buscar ajuda. - Disse ele pronto para sair do carro, mas ainda desorientado.

— Não dá tempo, Ed. - Ela gemeu, com uma fina linha de sangue escorrendo pelo rosto.

Ed olhou em volta, o socorro não iria chegar tão cedo, isso se chegasse. Ele não teria forças o suficiente para ajudá-la e quando viu a coluna de fogo se aproximando, dominante sobre os carros e pedestres, soube que o destino de Samantha já estava decidido.

— Espera... - Com dificuldade para se locomover, a jovem arrancou um cordão prateado de seu pescoço, entregando-o para Ed. - Fique com isso, por favor.

Ed olhou para o cordão, onde havia um anel pendurado como um pingente. Um anel dourado e com uma pedra azul incrustada.

— Você foi mais que um pai para mim, Ed. Sempre esperei pelo dia, que pudéssemos ficar juntos...  Como um casal, mas... - Samantha não teve tempo de terminar a frase, porque os lábios de Ed lhe calaram num beijo. Mesmo sendo um desejo que aconteceu tarde demais, Samantha se sentiu realizada e pronta para partir.

Sabendo que não tinha mais tempo, Ed foi forçado em deixar sua protegida, ele tentou correr sem olhar para trás, mas a dor em abandonar Samantha era maior. Virou-se para trás, no mesmo instante que o carro foi tomado por uma explosão, Ed tropeçou com o deslocamento de ar, porém se recuperou da queda logo em seguida, antes que o salto alto de uma bota de couro atingisse seu rosto.

O grito agudo de Samantha foi sendo abafado pelo crepitar das chamas, que queimavam sua carne rapidamente, deixando um gosto amargo em sua boca. Ed parou, não adiantava mais se chorar, não adiantava mais se lamentar pela filha que a vida lhe deu.

Samantha morreu por Ed, e Ed viveria por ela.

Foi quando o homem acordou, visualizando as copas das árvores e o sol pendurado no céu, sem o menor de ânimo de brilhar.

Ed levantou-se com dificuldade, havia um ferimento em sua perna esquerda e sua cabeça estava girando, ainda tentando absorver o que tinha acontecido antes da queda. Elly era a única do grupo que não tinha um arranhão sequer, por estar protegida pelo corpo de Stein, o irmão amorteceu todo o impacto da queda para ela. Fred e Debora tinham sido arremessados para fora, pousando num montante de folhagem seca, que diminuiu qualquer machucado sério.

Mesmo sentindo a dor latejar, Ed manteve se firme, sem aparentar o incomodo, demostrando segurança em seu olhar verde para os outros. Limpou o máximo de areia e terra de seu terno e alinhou os poucos cabelos brancos que era obrigado a mostrar, já que seu chapéu fora perdido no mar.

E o mistério de como chegaram à ilha persistia em sua mente.

— Ed... A sua perna está sangrando. - Os lábios de Debora se contraíram ao vê-lo. O vestido branco dela estava parcialmente rasgado nas pernas e havia alguns arranhões em seus braços.

— Já levei muito chumbo grosso nessa vida, um machucado na perna não é nada. - Ed apertou a mão dela. - Não se preocupe, ainda estou firme para levá-la para dançar quando isso acabar.

Ele tomou a loira em seus braços, ouvindo a batida do coração dela, que pulsava forte e cheio de vida. Ed gostava muito de Debora, seminua ou vestida como a Magnata que era. Debora era perfeita, em todos os sentidos, não havia uma única dúvida sobre isso.

— Oi, desculpa interromper o momento, mas tem muita coisa maluca acontecendo. - Elly os chamou.

— Tem razão. - Ed se recompôs. - Fomos mandados para uma armadilha, não lembram?

— Acho que tudo é possível aqui, na Ilha dos Desafios. - Elly franziu a testa.

Momentos antes da queda, Elly gritou perguntando o motivo de o bondinho ter parado, nisso, ela avistou dois funcionários da Pyramid se aproximarem de Sabrina e Ester. Antes que as duas os vissem, foram atacadas e deixadas inconscientes na estação. Na mesma velocidade que apareceram, os funcionários desapareceram dentro da construção sem fazer qualquer alarde.

— Eu sabia. - Debora afirmou. - Sabia que estar aqui era um problema.

— Mas a Bárbara afirmou que aqui era seguro. - Disse Stein. - Ela não mandaria a gente e a família para cá, se soubesse que há alguém que não nos quer aqui.

— Sinceramente, eu não sei mais o que pensar. - Ed deu uns passos, convencido que não deveria ter cogitado em ajudar Marjorie. O ex-policial tinha grande parte de Cabo em sua folha de pagamento, poderia ter encontrado um esconderijo seguro para ele, Debora e quem mais estivesse por perto, mas se deixara levar pelo momento.

Se não estivéssemos entre a vida e a morte, aqui seria um bom lugar para passarmos as férias. — Ele pensou.

— Ed, eu encontrei isso na areia. - Debora lhe deu o anel azul. - Lembro que já vi a Samantha com ele então eu achei... Que você gostaria de volta.

Ele sorriu ao ver o pequeno objeto.

— Esse anel tem um significado muito importante para mim, ele era da minha filha e depois o passei para a Samantha, quando ela me salvou de uma armadilha envolvendo máfia russa. Eu achei que me sentiria satisfeito depois da minha vingança, até mesmo pensei que não pudesse superar a morte delas, mas viver ao seu lado... Foi como um sopro de ânimo dentro de mim. Você me deu motivos para sorrir de novo, Debora.

A loira não acreditou quando Ed lhe devolveu o anel, abraçou e o beijou com ainda mais intensidade.

Enquanto Ed e Debora se confortavam um no outro, Fred olhava a mata ao seu redor, procurando qualquer coisa que lhe fosse mais familiar. Mesmo sentindo a cabeça doer pela falta do remédio, o garoto estava convencido em lembrar o caminho que muitas vezes fizera, quando estivera ali anteriormente.

— Ei, o que está procurando. - Elly perguntou curiosa.

— Acho que o caminho é por aqui. - Disse sem certeza.

— Como sabe? - Ed perguntou desconfiado e todos os olhares se voltaram para Fred.

— A Ilha do Faraó... Eu já estive aqui várias vezes, era nessa ilha onde o meu pai trabalhava.

Marco Antônio era o antigo chefe de segurança das Tumbas. Na mesma época que foi morto, Marco sabia que os experimentos estavam fora de controle e que seu filho era um deles, por isso rompeu com a Pyramid e ameaçou expor o que acontecia no laboratório, mas não tivera tempo fazê-lo. Marco fora morto num falso assalto, feito para garantir que o segredo da empresa continuasse seguro.

— A entrada fica do outro lado da ilha, justamente para onde só o bondinho podia nos levar. - Fred continuou. - Mas há um sistema de túneis por aqui, que pode nos levar para dentro da Pyramid.

— Não sabemos o que essas pessoas querem ou que elas são, mas todos viram o que aconteceu com a Marjorie e Amélia. - Debora não estava nada contente. - Vocês querem correr esse risco?

— Não importa, o meu irmão está lá dentro. Eu vou com ou sem vocês.

— Temos que voltar para a estação e buscar o resto do pessoal. - Ed deu alguns passos e percebeu que sua perna ainda aguentava uma caminhada.

O grupo refez o caminho anterior, entre a vegetação densa da ilha até a estação do teleférico. Não havia mais nenhum bondinho sobrando, os cabos que antes o sustentavam, estavam partidos e largados no enorme vão entre a estação térrea e a estação no alto da montanha. Como da primeira vez, parecia deserto.

— Acho que estamos sendo seguidos. Eu sinto isso. - Debora olhou para trás, mas não havia nada além de muita folhagem. Pensou ser um reflexo da luz e continuou.

— Onde estão os outros? - Stein perguntando, olhando por toda a extensão da estação vazia.

Debora deu um pequeno grito quando seu pé descalço pisou em algo pontudo. Ela reconheceu o objeto como a estrela Wicca do colar da Sabrina.

— Isso quer dizer que eles foram levados. - Ela mostrou o cordão partido para os outros. - Talvez para o mesmo lugar onde os outros estejam.

Ed engoliu em seco quando ao farfalhar da vegetação em volta.

— Tem alguém vindo, escondam-se.

Porém não houve tempo para isso, um homem armado emergiu da floresta e invadiu a estação teleférica.

— A cobaia FA - 069 foi encontrada. - O homem disse num rádio comunicador, enquanto usava a outra mão para manter o grupo sob a mira do armamento.

— Quem? - Fred perguntou.

— Acho que eles estão falando de você mesmo. - Elly respondeu. - Fred Alcântara, certo?

Stein tentou intervir, colocando-se na frente do garoto. O olhar felino do homem era ameaçador, porém Stein foi mais rápido e desarmou o pequeno homem, que não teve tempo de reagir. Stein levantou o algoz pelo pescoço e suas unhas estavam perto de perfurar a pele dele.

— Acho melhor pensar duas vezes. - Disse uma voz grave atrás do homem.

— Stein... Faz o que ele manda. - Elly estava presa pelo pescoço, por um homem que apontava para armas para a cabeça dela. A garota tremia com o cano frio encostando em sua pele.

Além daqueles dois homens, haviam outros se aproximando e cercando Ed e Debora. Em outras condições, Ed reagiria em cima daquele que ameaçasse Debora, mas a dor na perna e a falta da Esmeralda I o impediam. Mesmo tendo a experiência de todas as suas aventuras em diversos países, Ed nunca precisou se preocupar com alguém além dele.

Stein tinha força para quebrar o pescoço do homem, mas a vida de sua irmã era mais importante. Com muita raiva, ele largou o funcionário que caiu como uma fruta podre no chão. Ao fazer isso, ele foi rendido e mantido na mira do atirador.

O mesmo aconteceu com Fred, o garoto tentou se defender, mas sentiu o sangue escorrer de seu nariz e algemas serem colocadas em seus pulsos pelo homem armado.

— Levem a cobaia 069 para o Sarcófago.

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Um odor podre tomava conta do alojamento, o lugar era fechado e iluminado apenas por uma fileira de luzes fracas. Não havia janelas, apenas uma porta de entrada e saída vigiada por um guarda. Havia arranhões e sentenças escritas em todas as paredes, também sangue negro e seco no chão, evidentes sinais de sofrimento e angústia dos últimos que passaram por ali.

As duas celas foram feitas para as cobaias em estado terminal, muitas dela ficaram presas até morrerem com os efeitos da experiência. Para os sobreviventes, a sensação era a mesma de estarem em um centro de concentração nazista.

O grupo capturado fora colocado alternadamente entre os outros, que estavam ali desde que o efeito do gás sonífero passara. Todos estavam fracos e cansados, depois de dias sem se alimentarem e dormirem direito. E não tinham coragem de usar o banheiro dos infectados.

Na larga cela do lado direito, estavam Renan, Thiago, Ísis, Mia, Gabriel, Ed, Debora e Elly. No lado esquerdo, os ocupantes eram Max, Natasha, Alisson, Alfinn, Erick, Stein, Sabrina, Mimi e a Srta. Fofura, que no último minuto conseguira se refugiar na bolsa da atriz e escapar de um fim trágico no mar.

Os únicos sobreviventes do iate que não estavam presos ali eram Fred, Ester, Serena e Kaíque. Apesar de alguns ficarem felizes por rever o grupo da praia, a morte de Alfa fora um choque ainda maior, principalmente para Alisson, Natasha e Max.

Era extremamente difícil para Renan conviver com tal responsabilidade. Além de responder como Alfa morrera, ele teve que explicar o sumiço de Ester para os restantes, enquanto os sobreviventes e seus familiares se agitavam em procurar respostas, Renan tentou se afastar o máximo que pode, até mesmo de Ísis.

A lista da Morte era outro problema que persistia. Ele salvou aquelas pessoas, deu mais tempo de vida para elas, mas num piscar de olhos, Thereza estava morta, outras pessoas seguiram-na numa ordem ainda desconhecida por completa, já que Serena não estava ali para ajudar. Vidas estavam em suas mãos e estava ficando cada vez mais difícil pedir por paz, quando tudo o que vinha, era destruição e sangue.

— Dez pessoas já morreram, quantas mais vão morrer até você fazer alguma coisa? - A pergunta de Gabriel tirou Renan do seu momento.

— Eu tentei salvá-lo. - Foi o máximo que conseguiu responder.

— Assim como tentou salvar a Donatella? - Gabriel foi mais incisivo dessa vez, chamando a atenção dos outros.

Renan se levantou, encarando o olhar cansado do estudante de medicina, o mesmo que muitos dos sobreviventes tinham ao saber de mais uma morte, mas aquele ia além de decepção e tristeza. Havia fúria e descrença.

— Onde está querendo chegar, Gabriel? - Renan estava tentando não perder o pouco de controle que tinha.

— Me diz uma única coisa boa que você fez? Todos sabem que o sobrinho do Ed salvou a Mia, que a Debora se salvou por conta própria e a irmã do Erick salvou ele. E você, Renan? Quantos salvou?

Um pouco mais afastado, Thiago tentou falar, mas se conteve. O professor não sabia se era certo dizer que fora salvo pela Diana, por um pequeno intermédio de Renan.

— Gabriel! A culpa não é dele. - Mia tentou intervir, ficando entre o irmão e Renan. - Não é culpa de ninguém aqui. Eu sei que ainda está triste pela Dona, mas...

— A Donatella era uma sobrevivente como todos, precisava de ajuda e o que vocês fizeram? - A voz dele passara de raivosa para embargada - Ficaram jogando pôquer, como se nem se importassem com ela.

— Já chega. - A voz de Ed se sobressaiu entre as demais. - Não é hora de discutirmos.

Até quem estava falando, preferiu se calar perante o homem. Ed segurou um Gabriel confuso e irritado pelo ombro e o arrastou para longe de Renan.

— Como visionário, você é um ótimo Jason Grace. - Gabriel cuspiu suas últimas palavras e se afastou, com o rosto vermelho e corpo tenso pela adrenalina. Depois do tempo que passaram hospedados na Falcon, a maioria já conhecia os desmaios frequentes do Renan.

— Eu entendo a sua raiva, nunca é fácil ver alguém que amamos partir. - Ed tentou conversar com ele, sem aumentar o tom de voz. - Mas você se engana, se acha que vai conseguir respostas baseadas na raiva, que sente pela sua namorada.

— Ela não era a minha namorada... Ainda não era. Eu tentei salvá-la, tentei ser o herói que ela precisava.

— Quantos milhões de soldados e guerreiros morreram tentando salvar pessoas por aí? Quantos deles possuem estátuas honrosas? E quantas pessoas se importam? De nada serve o heroísmo, se sua cabeça não está no que realmente é importante: Mia. Você ainda é jovem, use essa energia para proteger o futuro sua irmã, do que chorar por um passado que não voltará mais.

O estudante de medicina percebeu a razão nas palavras de Ed, também se lembrou que sem querer, deixara de se preocupar com a segurança de Mia.

— Desculpa, Mia. - Gabriel deixou a tristeza de lado e encarou a irmã. - Depois de tudo o que aconteceu, eu acabei te deixando de lado... Logo a pessoa que eu mais amo nesse mundo. Aquela que eu jurei proteger.

Mia sorriu, acariciou o rosto dele e o abraçou. Ela sabia o quão enorme era o instinto protetor de Gabriel e o admirava por isso.

— Ótimo! - Ed bradou. - Agora, devemos nos preocupar em como vamos sair daqui.

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Alisson segurava o barbante cheio de nós que Alfa sempre carregava e dera para ela no iate. As lágrimas que escorriam eram a parte visível de sua dor, o resto queimava dentro dela. O pesadelo dela estava sendo concretizado aos poucos, seus amigos partiriam e ela não podia impedir.

Quando não sabia se desistia ou continuava tentando.

Alisson se debruçou sobre o pequeno objeto, Ela o amava e odiou perdê-lo tão cedo, numa brincadeira cruel do destino. Assim como foi para o Ômega, o solitário e último membro da hierarquia, que não pode assumir o controle e cuidar do legado de seu irmão, a pequena Ester. Demétrio Villa-Lobos tinha sido o líder deles, um pequeno e desajustado grupo de sobreviventes, mas que sabiam o quanto era vital proteger uns aos outros.

A conexão com Alfa era maior do que ela podia imaginar, depois da morte de Vinícius anos atrás. Suas cicatrizes daquela época ainda estavam lá, mas poucos podiam ver. E para alguns, elas não existiam.

O mesmo sentimento habitava em Natasha, que mal tinha digerido a morte da irmã, teve a morte de Alfa para diminuir qualquer esperança. Para ela, a esperança parecia ter morrido há muito tempo, só que ninguém tinha achado o corpo ainda.

Seu próximo livro estava estacionado num hiatus eterno, sua vida corria o risco de ser ceifada a qualquer momento e ainda tinha Max. A ideia de partir e deixá-lo sozinho quebrava o seu coração, mas ela sofria em silêncio. Se morresse hoje ou amanhã, queria pelo aproveitar seus melhores sentimentos com sua preciosa pedra bruta.

Segurou firme a lágrima que queria aparecer, para poder abraçá-lo com um sorriso, encostando sua cabeça no peitoral extremamente quente dele. Max a cercou com seus braços e acariciou devagar as costas dela. Mesmo que ela assumisse o controle da relação na maioria das vezes, Natasha amava ser cuidada por Max e os braços dele eram o melhor lugar para a escritora estar naquele momento.

Ele encarou o castanho dos olhos dela e tentou se esquecer daquele ambiente, que fazia a sua mente acelerar. Toda a sujeira e o sangue impregnado no chão, os arranhões desesperados na parede era tentador para a sua mania compulsiva. Mas ao invés de surtar e procurar organização, Max virou o rosto, deixando a bagunça atrás dele, como se não se importasse.

Sua namorada era mais importante.

— Não quero nem imaginar o que está acontecendo com a Serena. - Alisson suspirou. Antes do iate ser bombardeado, a tatuada escutou um dos homens procurando pela jornalista.

— Nem eu com a Amélia, Apology Girl. Ela não mereceu ter entrado nesse rolo todo.

— Ela disse que eu sou a próxima, lembram? De acordo com a profecia dos signos, eu morro depois do Alfa. - Natasha colocou-se no lugar de Renan, imaginando quantos pensamentos loucos deveriam passar na cabeça dele sobre a lista.

— Eu me recuso. - Max se exaltou com o pensamento. - Como podemos ter certeza, se nem o Renan consegue lembrar? Ainda pode ser Amanda ou Ed, até outra pessoa que a gente nem desconfia que esteja na lista.

— Não sei sobre a Amanda, mas o Ed não corre perigo enquanto estiver preso também.

— A não ser que ele pegue tétano com a ferrugem daqui. Não que eu deseje isso à ele, o cara é mais legal do que muitos jovens por aí.

— Não há o que discutir, Max. - Alisson enxugou a última lágrima. - Só há mais três pessoas antes do visionário morrer e a lista continuar. - É só uma questão de tempo.

O momento foi interrompido com o ranger da porta sendo aberta bruscamente. Todos os ocupantes das duas celas, lançaram um olhar apreensivo para aqueles que entraram.

— Levantem-se e não se mexam! - Ordenou um dos três guardas vestidos como membros do exército.

— É meio difícil se mexer dentro dessa caixa de fósforos. - Erick disse alto o bastante.

— Eu podia esmurrá-lo muito se quisesse. - O guarda olhou e zombou do corpo do estudante.

— Se quer tanto, eu posso fazer isso com você. - Stein ganhou o olhar lascivo e intimidador do guarda. - É só abrir essa cela e rezar para sair vivo.

— Por favor, senhores, podemos resolver isso de outra forma. Menos com o seu sarcasmo, Erick. - Ed tentou apaziguar. - Leve-me para o seu líder, para que tenhamos uma conversa de homens de negócios.

O guarda rugiu qualquer coisa para Ed e voltou sua atenção para a outra cela. Ele encarou todos e piscou para Mimi.

— Eu queria muito dizer que vim aqui por você, princesa do anal, mas vim buscar uma cobaia. Depois você me mostra como faz a pimenta sumir dentro do seu...

Antes que ele pudesse terminar a frase, rapidamente Mimi colocou o braço para fora da cela e o esbofeteou, deixando a marca de sua mão impressa no rosto dele e um pouco do pescoço, perto da tatuagem de um lobo feroz.

— Também posso fazer meu pé sumir na sua garganta, seu nojento!

— Já chega! - Outro guarda deu a ordem, ele era mais baixo e com feições mais simpáticas que o anterior. - Não somos carcereiros nazistas. Agora pega logo a cobaia e deixa de showzinho.

Contrariado, o primeiro acatou a ordem do segundo, enquanto o terceiro vigiava a porta. Ele abriu a cela e ordenou que todos se virassem contra a parede. Assim que Natasha fez isso, ela foi puxada pelos cabelos para fora da cela e gritou para que parassem. Max sabia que perderia Natasha um dia, por isso ele sentiu que precisava deixar de ser um anjo de vidro e defender a namorada. O desenhista avançou contra o homem, mas o mesmo guarda simpático lhe nocauteou.

Max foi imobilizado e jogado de volta na cela, com um nariz sangrando e enfurecido, mas o primeiro guarda também estava e atirou em Max com sua arma. O desenhista estremeceu ao receber a violenta carga elétrica do taser e bateu com a cabeça no chão ao cair, enquanto Alisson e outros foram obrigados a verem sem poder reagir.

— Max! - Natasha se debateu nos braços parrudos do guarda. - Me soltem!

Uma seringa foi enfiada com força no braço da morena, que aos poucos, parou de se debater e apagou tomada pela droga. O guarda simpático trancou a cela sob os protestos dos sobreviventes, lançou um olhar incomodado para eles e se afastou com seu rádio comunicador em mãos.

— A cobaia NM - 031 está sendo levada para o Sarcófago.

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Amélia já estava farta de encarar a lâmpada de fluosforescente da pequena sala. E também ansiosa por notícias de Serena e alguma resposta para estar ali, junto de Marjorie, quem seu ceticismo mandava não confiar totalmente.

Ajudar Serena era uma forma dela de confortar a sua alma, da ainda excruciante morte do Mariano. Nos primeiros dias depois da morte de seu antigo paciente, ela refletia o quanto fora insuportável a ideia de não ter mais aquele em quem ela pensava todas as noites, ao lembrar-se da montanha russa emocional que Mario. Porém o destino tinha outros planos para o final feliz deles.

Ela contara para Serena sobre a predestinação do futuro, que Mariano dissera ter visto no dia do acidente e isso fez a jornalista envolvê-la na dissolução das recentes mortes, até o presente momento. Amélia achou estar fazendo o certo, quando montou a lista das pessoas salvas do acidente no túnel e somá-la de acordo com o que descobriu, mas isso custara a sua liberdade e a sua segurança.

— Me desculpe por te arrastar até aqui. - Disse Marjorie para Amélia. - Não era para ter sido assim.

— Eu só quero entender o que está acontecendo. A ameaça da lista da morte nem importa mais, esse vírus tomou conta das nossas vidas, de todas as maneiras possíveis.

Marjorie concordou. Ela sabia que daquela vez, não tinha como escapar sem ser vista. Todas as portas naquela ala da Pyramid só podiam ser abertas com uma senha numérica e ela pensava no destino que estava lhe reservado, por cometer um ato de humanidade ao próximo.

— Eu trabalhava aqui nas Tumbas. Cuidando e registrando sobre tudo o que acontecia com a KB - 081, a cobaia usada nos testes sobre o vírus.

— Cobaias? - Quer dizer que a Pyramid criou e espalhou o vírus de propósito por aí? Como a Serena desconfia ser a verdade?

— Não foi de propósito... Eu acho. Mas eles são os responsáveis por tudo isso. Era desumano o que faziam, por isso eu ajudei ela a fugir, para diminuir o seu sofrimento, mas...

— Mas quando você fez isso, a Pyramid matou ela. - Amélia terminou a frase num suspiro triste. - Infelizmente, nosso mundo está cheio de monstros.

— Eu vi aquela mulher bela, ir apodrecendo com o tempo e o pior, eu nunca sequer soube o verdadeiro nome dela. A imagem dela sempre vai ficar na minha cabeça, para todo o sempre, como uma lembrança do que eu colaborei para acontecer.

Amélia percebeu a dor no olhar dela, mas quando tentou buscar palavras para diminuir a angústia de Marjorie, um alarme alto soou e luzes vermelhas piscaram por toda a sala.

— Essa não... - Marjorie foi pega de súbito. - O aviso de evacuação, isso quer dizer que há alguma falha no sistema de contenção da ala química.

Amélia tentou se manter calma, a expressão mostrada no rosto de Marjorie indicava que aquilo era agrave. Um ruído de digitação se tornou audível e as duas olharam para a porta da saleta fria e desconfortável, que foi aberta por alguém trajando máscara e roupa de proteção biológica.

— Você é a Marjorie? - Perguntou para a loira, enquanto olhava para ver se não estava sendo seguida.

— Quem é você? - O corpo de Marjorie enrijeceu ao ver o que parecia ser o cabo de uma arma, escapando para fora da roupa. - A Pyramid te mandou para me matar?

— Pelo contrário, só venham comigo. - Sussurrou apreensiva. - Logo eles vão saber que isso foi um alarme falso.

— Por que está nos ajudando? - Amélia questionou.

— A Pyramid está mantendo a minha filha presa nesse lugar. - A mulher tirou a máscara, revelando seu cabelo cor de turquesa. - Então, se quero salvá-la, preciso tirar vocês daqui primeiro.

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— Faz muito calor aqui dentro. - Mimi se queixou para si mesma. - Se tivesse um ar-condicionado que funcionasse pelo menos... Um pouco de ar poderia entrar e mandar essa fumaça embora.

— Tudo bem, eu paro. - Sabrina entendeu o comentário como se fosse para ela. A gótica amassou o que restara do cigarro na parede e encarou a loira. - Satisfeita?

Mimi não respondeu. Perto delas, Thiago encarou a fumaça cinza subir e sumir pela passagem acima dele, através de um abandonado duto do ar-condicionado.

— Sei que pode parecer loucura, mas esse duto pode ser a única forma de escapar dessa confusa prisão forçada, sem passar pelo guarda. - Thiago expôs sua ideia.

— Não adianta, ninguém pode passar por ele. - Alisson se manifestou. Ela estava sentada num canto, com a cabeça de Max em seu colo. - É estreito demais.

— Só não podemos ficar parados esperando seja lá o que for, se essa for a melhor chance e é melhor tentarmos. - Thiago replicou. - Eu tentaria, mas não consigo escalar de novo, depois do que aconteceu.

Alisson se lembrou da quase morte do professor e dos machucado que ele ganhara.

— Erick! - Sabrina o chamou. - Para de cheirar o Stein e vem aqui, por favor.

O garoto descolou o rosto do pescoço de Stein, sorriu irônico para a gótica e foi analisar a recém descoberta passagem.

— A Alisson tem razão, mas nem tento. - Erick disse. - Ainda mais nessa temperatura, o calor vai fazer o metal se expandir e o meu suor pode servir como lubrificante. Disso eu entendo.

Sabrina não duvidava da última parte.

Apoiado pelo corpo de Stein, Erick foi penetrando no túnel aos poucos, com dificuldade para escalar as paredes de metal sujas e empoeiradas do duto. Conforme o corpo magro dele ia sumindo, o grupo olhava esperançoso. Até que Erick parou e pediu que o puxassem de volta. Quando o garoto voltou para a cela, estava coberto de poeira e teias de aranha.

— Más notícias: A passagem fica muito estreita depois de uns dois metros, eu tentei continuar, mas ficaria entalado lá dentro. Nem as garotas conseguiriam passar.

— Ainda não tentamos uma coisinha. - O olhar de Sabrina pousara sobre Alfinn, que brincava distraidamente com a chinchila numa parte mais distante da cela.

— Não, Sabrina. O Alfinn não pode ir. - Thiago disse com veemência. - Ele é só uma criança.

— Eu também não concordo. - Stein se pronunciou.

— Mas eu concordo. - Alfinn levantou a mão, depois de escutar seu nome envolvido na conversa. - Não deve ser mais difícil do que escalar uma árvore.

— Isso não é brincadeira, estamos sendo mantidos em cárcere sem nem sabermos o motivo. Tudo isso não pode ser simplesmente por causa da Marjorie. Deve ter algo de maior e ainda mais perigoso lá em cima, principalmente, para alguém na idade dele.

Mesmo tendo dado a ideia da fuga, Thiago não se sentia confortável em enviar uma criança de nove anos numa empreitada arriscada como aquela. Durante o pouco tempo que estiveram juntos, o professor percebeu a imaginação fértil e o espírito aventureiro da criança, mas aquilo não era seguro no mundo real, com perigos reais.

— Sou o único que pode passar por ali e procurar o Fred.

— Alfinn, aqui não é um filme do John Travolta, quem te achar não vai se importar com a sua idade.

— Não sei quem é esse, mas não sou tão indefeso como todo mundo acha. Eu consigo.

— Você precisa tomar muito cuidado quando chegar lá em cima. - Thiago aceitou a decisão contrariado, a chinchila voltou para os braços de Mimi e Stein levantou o garoto até onde seus braços conseguiam ir.

Alfinn engatinhou pelo tubo, a motivação de achar o irmão falava mais alto em sua mente e o encorajava. O suor de suas mãozinhas às vezes o fazia escorregar alguns centímetros, mas ele continuou em frente. Passado uma metragem que ela não soube dizer quanto era, o túnel ficou mais apertado e seu corpo fazia fricção contra o metal sujo.

Alfinn já tinha estado poucas vezes na Ilha do Faraó, para acompanhar o tratamento do irmão e o trabalho do pai. Ele tinha sete anos quando estivera ali e essa também fora a mesma época que a morte do pai aconteceu e sua vida mudou. Fred o detestava e não fazia questão de esconder isso, sua mãe fizera diversos sacrifícios para tentar mantê-los sem o dinheiro do falecido e Alfinn sofria de saudades do pai, principalmente quando Marco ia até o seu quarto e lhe contava histórias de heróis para dormir.

O túnel estava bloqueado por mais uma placa de metal, colocada ali para selar a passagem do ar-condicionado para o espaço dos infectados. Alfinn usou tudo de sua pouca força para empurrá-la e quando conseguiu, sentiu o ar frio gelar suas bochechas.

A partir daquele ponto, o túnel era largo e arejado o bastante para que ele seguisse na posição horizontal. Alfinn prosseguiu tentando não fazer barulho, ele podia escutar as vozes das pessoas que corriam apreensivas abaixo dele pelo corredor e esperou alguma que fosse conhecida.

— Tia Gigi! - Ele gritou ao ver a reconhecível cabeleira loira da amiga de sua mãe.

A médica quase teve uma síncope ao escutar a voz estridente do garoto. Ela olhou assustada para todos os dois lados do corredor vermelho pelas luzes, sem encontrar a origem do chamado, até que olhou para cima e viu Alfinn acenando e sorrindo para ela, atrás das frestas do duto de ventilação.

— Alfinn? Como foi que...

Gigi foi interrompida pela grade que caiu no chão e junto com ela, Alfinn pousou seus tênis sujos no piso polido e brilhante desajeitadamente. A médica o levantou e lhe abraçou forte.

— Eu sinto muito pela Donatella, querido. - Algumas lágrimas escorreram do seu rosto esticado por cremes. - Depois que isso tudo acabar, eu juro que vou cuidar de você e do seu irmão.

— É por isso que estou aqui. Onde está o Fred? E o Kaíque? Sabia que eles estão namorando?

Gigi cravou suas unhas nas palmas das mãos ao escutar a última frase, aquele era um assunto que há muito tempo, a médica queria tirar satisfações. Porém o barulho irritante do alarme persistia e ela sabia que não tinha muito tempo, antes de Anúbis ficar sabendo da falha de contenção e do plano secreto de Barbie.

— Presta atenção, Alfinn. Tem alguma coisa acontecendo e a maioria está indo embora, aqui não é seguro para você.

— Mas todo mundo está lá embaixo esperando por mim, Tia Gigi. A gente tem que tirar eles daquela cela e eu preciso muito ir ao banheiro.

— Donato Alfredo! - Sua voz foi bem mais incisiva. - Eu vou te esconder em algum lugar, mas tem que me prometer que vai ficar bem quietinho e não vai andar mais por aí.

— Prometo, mas...

Gigi calou o garoto e o conduziu pelo corredor, temendo que alguém tivesse os visto. Quando chegou onde queria, Gigi parou diante de uma porta e digitou uma senha no painel ao lado, que fez a porta se abrir. Assim que fez, a médica escutou vozes vindas em sua direção, seu coração ficou receoso ela empurrou o garoto para dentro do quarto.

— Eu volto para te buscar.

Alfinn tentou sair, mas percebeu que estava trancado. Bateu suas mãozinhas pequenas na grossa porta de metal, várias vezes, esperando que seu pedido fosse ouvido. Quando desistiu, Alfinn olhou para dentro do quarto e percebeu dois pares de olhos o encarando.

— Oi. - Alfinn acenou com timidez para eles. - Tem um banheiro por aqui?

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— Isso foi um erro! Você nem devia ter entrado aqui.

Parado próximo à porta, Hórus levantou as sobrancelhas e sorriu com a fala de Anúbis, que se segurava para não expulsá-lo com as próprias mãos.

Hórus foi deslizando seu corpo esbelto e bem arrumado pelo escritório, seguindo Anúbis com um olhar irônico e persuasivo.

— Te convidei para ir ao escritório do governador várias vezes e não tive respostas, por isso precisei vir até aqui.

— Culpa daquela água suja com gosto de uva, que você chama de vinho. - Anúbis bradou desinteressado. - Não tinha nada melhor lá não?

— Talvez whisky. - Hórus se encaminhou ao minibar de Anúbis, colocando a bebida sem permissão em dois copos com gelo e estendeu um deles na direção do empresário. - Aceita?

— Lógico, eu que paguei por ele. - Anúbis tomou o copo e o bebeu em um gole só, Hórus continuou segurando o dele. - Eu já disse que você não devia mais estar aqui. Não temos mais negócios, agora que o velho gordo do prefeito já era.

Anúbis voltou para sua mesa, esperando que Hórus fosse logo embora. Uma irritação sem motivo lhe incomodava, escutar a voz dele ou sentir a presença já o fazia sentir-se confuso. Perto de Hórus, Anúbis não conseguia se concentrar, nem entender o pulso elétrico gerado em seu corpo.

Ficando de frente para o homem sentado. Hórus se aproximou, causando calafrios no loiro e num olhar carregado de lascívia, foi desfazendo o nó da gravata de Anúbis, que não conseguiu reagir ao toque.

— Não preciso mais arranjar essas desculpas para falar com você. Só quero fazer algo melhor.

Hórus soltou a gravata vermelha no chão e começou a desabotoar a camisa branca de Anúbis, revelando os pelos loiros. Suas unhas foram deslizando do pescoço até peitoral de Anúbis, que congelou ao toque do assistente e não conseguiu pensar em nada mais, além do estranho prazer que sentia.

O olhar hipnótico de Hórus estava fixado na expressão desarmada de Anúbis, que ao mesmo tempo parecia querer esmurrá-lo, mas também pedia que ele não parasse. Era diferente e estranho, como algo perigoso e errado, porém viciante.

— É só fechar os olhos, você não precisa fazer mais nada. - Enquanto seus brincavam entres os gomos de abdômen de Anúbis, Hórus foi se aproximando para mais perto, sentindo a respiração ofegante, o coração absurdamente acelerado e com um rápido olhar, percebeu o volume nas calças do empresário. - Eu cuido de tudo.

— Chega disso! - Anúbis empurrou Hórus, que por causa do pouco espaço, tropeçou e bateu com as costas na borda da mesa de madeira maciça. Anúbis, tomado pelo nervosismo, passou por cima dele sem nem olhá-lo. - Eu tenho o controle da minha vida.

— Vou fingir que acredito. - Hórus arqueou os ombros e se levantou. - Mas já que não me quer aqui, eu vou.

— Espera! - Anúbis não pensou em falar aquilo, as palavras simplesmente saíram. - Pode ficar... Se quiser.

Anúbis mordeu os lábios, levemente arrependido por ter feito aquilo. Seu semblante entristeceu e sua prepotência foi desaparecendo, conforme o moreno se afastava. Hórus já esperava e contentou-se, mas não atendeu ao pedido. Ergueu a cabeça e caminhou triunfante para fora da sala, sabendo que mais cedo ou mais tarde, teria Anúbis onde queria.

— Eu sou a última pessoa do mundo para dar conselhos, mas é muito mais difícil viver uma mentira, do que aceitar a verdade. É sufocante, corrosivo e isso pode te destruir por dentro. Mais do que qualquer veneno, mais do que qualquer morte.

Após o Hórus ir embora, Anúbis deslizou a língua sobre os lábios e sorriu por continuar com o gosto dele em sua boca, mas seu sangue gelou depois disso. Parte dele se interessara no flerte, mas a outra parte abominou o ato.

Por fim, Anúbis decidiu esquecer o que se passara e concentrar no que era importante, no que tanto planejara e que faltava tão pouco para concluir. Abotoou sua camisa e se preparou para deixar a caótica Cabo e ir para a Ilha do Faraó, para iniciar por si mesmo o Projeto Apófis.

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Parte III - Futuro?

"Arrepender-se do passado, aborrecer-se no presente, temer o futuro: assim é a vida. Só a morte, a quem está confiada à renovação sagrada das coisas, me promete a paz." - Ugo Foscolo.

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Dentro da sala fria do Sarcófago, o local onde um ao lado do outro, Fred e Natasha estavam presos por algemas. E ele não podia negar que sentia muito medo. Medo não só de morrer, mas também por seu irmão, que continuava perdido naquele perigoso lugar com cheiro de desinfetante e morte.

— Não basta estar na lista de morte, tenho que ser o ratinho de laboratório de alguém? - Natasha movimentou os braços frustrada. De tanto tentar, as algemas deixaram arranhões vermelhos em sua pele, mas ela não desistia.

— No Arkham é ainda pior, eu já estive lá, acredite.

Os olhos de Fred procuravam por qualquer forma de sair, mas o laboratório não tinha nada que pudesse ser útil, apenas aparelhos e tubos de ensaio.

— O que são esses tubos? - Ela perguntou sobre os tubos ligados diretamente à corrente sanguínea deles.

— Morfina. - Uma mulher loira entrou na sala, levemente parecida com Gigi e vestida com uma cientista. - Vocês ficarão sedados até que minhas análises terminem. Não posso ter outro problema, como foi o caso da KB.

— Dra. Júlia Trevo. - Fred desdenhou. - Pensei que nunca mais fosse ver sua cara feia de novo.

Júlia Trevo, a cientista que iniciou o uso de cobaias humanas para as pesquisas de Barbie, que desprezou a ideia no início, mas foi convencida pela lábia de Júlia. Na ausência de Barbie, a brilhante médica conduzia seus próprios projetos pessoais e um deles, era a criação de humanos geneticamente modificados.

Mesmo sendo a auxiliar pode da cientista-chefe, Júlia recebia ordens de Anúbis e apenas dele. A ideia de Barbie era que Júlia ajudasse na fabricação de um antivírus com o sangue de Fred e Natasha, enquanto a ruiva cuidava de assuntos pessoais, mas a cientista tinha seus próprios planos.

— O que quer com a gente? - Natasha perguntou indignada. - Por que estamos aqui?

— Investigar as funções hepáticas, as plaquetas, a carga viral de cada um e ver o que mudou em todos esses anos. Nada de mais.

Júlia colocou luvas de borrachas e sentou-se de frente para um microscópio, Fred e Natasha foram embora mais cedo do que ela esperava, não lhe dando tempo de concluir as experiências que fizera anteriormente.

— Eu lembro vagamente de você, há muito tempo. - A imagem da cientista voltara à mente da escritora. - O que fez comigo?

— Mexi numas coisinhas aqui e ali no seu DNA, basicamente, te transformei. Seus genes foram modificados para se adequarem aos agentes infecciosos das principais doenças. Tipo o Sarampo.

— Isso faz muito sentido. - Natasha não se lembrava da última vez que ficara doente.

Durante a sua internação, Natasha fora uma cobaia de Júlia Trevo secretamente. Nem todos na Pyramid sabiam o que acontecia naquele subsolo e quando a menina teve alta, Júlia não pode concluir seus testes nela e nem na irmã, que passava todas as tardes fazendo companhia para Natasha.

Em 1997, Natasha, a mãe a irmã, eram algumas das poucas pessoas negras na melhor escola particular de Cabo da Praga, um lugar frequentado pela elite branca que comandava a cidade e todos nela. Natasha não se sentia só deslocada, ela era oprimida de propósito, considerada inferior e indigna de receber o mesmo estudo que as outras crianças. Isso foi entristecendo a pequena garota

"Todas as meninas da minha classe são bonitas e todo mundo gosta delas, porque são brancas, loiras e ricas. Eles dizem que eu sou uma macaca preta e é verdade, mamãe. E ninguém quer uma macaca como amiga."

O coração da mãe ficara apertado com o comentário de Natasha. Rafaela ainda era pequena e não compreendia o racismo no mundo, mas a professora sim, ela sempre soube o que era crescer ouvindo palavras negativas e pejorativas sobre sua cor, por isso, o futuro de suas filhas não poderia ser igual. Ao deixar a pequena Natasha nas mãos do Instituto Pyramid Para Pessoas Especiais, ela sabia o quanto a filha poderia ser ajudada.

Dias se tornaram semanas; semanas se tornaram meses e os meses se tornaram anos. O tratamento psicológico fora um sucesso e Natasha sentiu que as palavras sobre sua cor não mais incomodavam, ela pode sair do Instituto e seguir uma vida normal na escola.

— E quanto a mim? - Fred perguntou. - O meu único problema era a dor de cabeça e nem seu remédio mágico curou isso.

— No seu caso, eu usei um raro agente patogênico do vírus, que ainda estava no início e você apresenta os principais sintomas. Mas todos os efeitos foram inibidos, seu corpo desenvolveu um tipo diferente de resistência graças ao remédio criado por mim. Isso nunca aconteceu com nenhuma outra cobaia antes.

Júlia sorriu, ela mantinha um olho nos dois experimentos e também no microscópio. As amostras de sangue coletadas de ambos continham traços únicos, que eram preciosos para a pesquisa dela. Júlia ficara sem material quando todos os vetores foram exterminados por Anúbis.

— Pronto! Já tenho tudo o que preciso. - Colocou as amostras com todo carinho e cuidado, num pequeno frezzer.

— Ótimo, já posso ir?

A cientista ignorou a pergunta do jovem.

— Tenho orgulho de todas as minhas criações. - Disse ela, se levantando e dirigindo se até seus pacientes, com as mãos dentro do bolso. - Mas uma em especial, não está mais sob os meus cuidados e isso é triste.

Assim como Fred, Natasha e Rafaela, havia mais uma outra cobaia que não tinha a menor noção do que há circulando em seu sangue. A obra-prima de Júlia fugiu da instalação e foi dada como desaparecida, mas Júlia não perdia a fé em vê-lo novamente.

— A ciência é incrível, não é mesmo, Frederico? - Julia pegou uma seringa e a encheu com um líquido dourado. - Se for mesmo forte, logo vamos saber, mas vamos lá, prefere que seja no braço ou no bumbum?

— Quer mesmo que eu te diga onde enfiar essa agulha? - Fred ergueu a sobrancelha, pronto para dizer uma obscenidade.

— Vai no braço mesmo, agora é só esperar. Essa é uma mutação que só pode acontecer em quem já tem o vírus, ela é capaz de aumentar ainda mais sua resistência física e com sorte, você será como a Natasha, só que melhor.

O "Sangue dos Deuses", um composto que ela e Barbie criaram numa tarde de tédio, mas que nunca usaram em uma cobaia humana, devido a caótica situação da ilha e a pressão em cima da Pyramid.

— No início, a Bárbara e eu passamos muito tempo trabalhando na criação de humanos geneticamente modificados, alguns deles, com habilidades que superam o normal. Mas dois anos atrás, ela só pensava em salvar o mundo da Dengue ou da Ebola e estragou todos os meus projetos. Então eu dei uma "reforçadinha" no vírus e o resto vocês já sabem.

— Quer dizer que você é a responsável por ter infectado a cidade inteira? - Natasha se mostrou revoltada. - Isso é não é ciência, é loucura. Sua louca!

— Só um terço dela, mas o Álvaro vai consertar tudo em menos de uma hora. Assim como vocês, os outros infectados vão derreter e se transformarem numa massa borbulhante de carne podre, graças ao veneno de Apófis.

Júlia apontou para um pequeno cilindro de cianeto, um composto altamente venenoso, apelidado por Anúbis com o nome da mitológica serpente egípcia.

Enquanto Fred continuava esperando o liquído dourado agir em seu corpo, Júlia se aproximou de Natasha com mais uma seringa, a escritora sentiu a substância vinda da pequena agulha lhe tranquilizar e deixá-la sem controle do próprio corpo.

— A câmara de gás já deve estar pronta para você, Natasha.

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No calabouço frio e sujo da Pyramid, Mia estava de frente para um Gabriel estagnado numa bolha de culpa. Ela entendia o que se passava na cabeça dele, a sua também estava em frangalhos depois dos últimos acontecimentos, mas seu irmão gêmeo insistia que ficaria bem.

— Olha para mim, Gabriel. - Ela disse docemente. - Dividimos o mesmo útero, eu sinto a mesma dor que você e sei quando não está bem.

Semanas atrás, Mia era uma estudante durante o dia e bartender à noite. Longe da faculdade de Direito, longe de Roberta, a sua melhor amiga e Dona Rosa ainda não tinha voltado do reality show, na qual estava participando. Ela só queria voltar ao começo, quando não precisava se preocupar se estaria viva no dia seguinte.

Ela podia ver a frustração em Renan, e não podia negar, que estavam perdendo e a salvação parecia ficar cada vez mais distante.

— Assumir a culpa sempre foi o seu defeito. - Ela tentou confortá-lo. - Você lembra?

— Meio impossível esquecer... Eu não devia ter te deixado sozinha lá. - Gabriel disse ainda em lágrimas. - Sou seu irmão mais velho, é minha responsabilidade cuidar de você.

— Só por 12 minutos, não se ache tanto. A culpa não foi sua e nem minha, foi daquele monstro.

Por mais que Mia tenha sofrido, ela nunca culpou o irmão e ela própria já seguira em frente, mas nos seus piores pesadelos, aquela noite sempre voltava para assombrá-la.

Mia ainda era uma novata na faculdade, ela estava junto com outros alunos da turma de História, numa festa dada pelos veteranos. As luzes coloridas e piscantes iluminavam o cômodo escuro, os alunos dançavam e o cheiro de álcool no ar só aumentava. Ela não estava bebendo, apenas pensando em como a sua vida mudaria dali para frente.

Gabriel estava longe, flertando e aceitando o flerte de várias meninas na turma de Psicologia, seu irmão sempre fora mais desinibido do que ela e tinha facilidade em paquerar. Ela era a garota alta e magricela, considerada esquisita por quem a via e por tais motivos, Mia preferia sentar em um canto e esperar pelo fim da festa.

Foi então que um estranho apareceu para lhe fazer companhia, ele era simpático e sabia como puxar conversa, Mia aceitou beber com ele e depois de algum tempo, sentiu-se tonta, com sua visão destorcida. Ela tentou procurar por Gabriel, mas esbarrava nos dançantes a cada passo que dava, mas seu novo amigo gentilmente se ofereceu para ajudá-la.

Drogada, Mia se se viu sendo segurada pelo rapaz até uma vazia sala de jogos, ele a pousou em cima de uma mesa de sinuca e prometeu que cuidaria dela, Mia não conseguiu entender e muito menos argumentar, quando outros homens entraram na sala e trancaram a porta. Ela estava confusa e fraca demais para se defender sozinha.

De repente, a estudante de Direito teve sua blusa rasgada com violência, enquanto sua calça era abaixada e ela tentava gritar sem sucesso, ouvindo os risos bêbados daqueles famintos homens.

O jovem passou primeiro a língua por cima da calcinha e logo ela foi arrancada também, jogando-a para o homem perto da porta, ele pegou o pano rasgado no ar e o guardou no bolso, sorrindo como se nunca tivesse segurado uma calcinha na vida.

A dor da penetração forçada em sua genitália fez lágrimas escorrerem pelo seu rosto, sua boca tremia e Mia era observada com desejo pelos olhos enormes do homem, que urrava de prazer e ego por tê-la possuído. Durante o vai-e-vem da mesa de sinuca, Mia teve seu espírito destruído aos poucos e ela não podia fazer nada além de chorar e implorar que aquilo acabasse logo.

Quando o ato terminou, Mia foi abandonada numa posição vergonhosa, ela se agasalhou em seu casaco vermelho, sujo por um líquido branco e viscoso e procurou ajuda pelos corredores.

Ela nunca soube o nome dele, lembrava-se apenas da tatuagem de um lobo no pescoço, o que poderia tê-la ajudado muito se alguém tivesse se importado. Mas para a polícia e a reitoria, a culpa tinha sido de Mia e de mais ninguém.

Mia morreu naquela noite, mas nos meses seguintes, ela voltou das cinzas renascida com mais força e imprimiu isso numa tatuagem acima do quadril. Assim como a Fênix, Mia tinha a sua vida novamente ela queimava intensamente, por sede de justiça para que mais ninguém, sofresse o que ela sofreu.

— Eu sei que é difícil, mas deixei para trás e escrevi uma nova história para mim, agora é a sua vez, irmão.

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Alfinn retornou do banheiro limpo e apresentável para os ocupantes do cômodo, o garoto explicou que seu irmão estava em algum lugar do Instituto e que seus amigos estavam presos. A adolescente olhava constantemente para ele, como se procurasse alguma ameaça, já o jovem ao lado dela esperava por respostas.

— Eu li os pensamentos dele e sei que não está mentindo. - A garota disse para o irmão. - Acho que podemos confiar.

— Eu sou Ben e essa é a minha irmã, Bianca. - O outro ocupante vestido de cinza acenou com um sorriso.

Os gêmeos Bianca e Benjamim Velasquez, ele herdou os fios loiros do pai e ela tinha os cabelos levemente castanhos, a cor dos olhos também não era a mesma por serem bivetelinos. Quando crianças, eles foram os primeiros que tiveram a genética modificada pelo X-Vírus criado pela Júlia, por isso eles viviam confinados e salvos da curiosidade exterior dentro do Instituto.

— Vocês moram aqui? - Alfinn perguntou, depois de ter visto o pequeno e luxuoso apartamento que era aquele quarto.

— É, a outra ilha não era mais segura. - Bianca respondeu. - Temos tudo o que queremos nesse lugar, menos liberdade.

— É muita maldade. Ninguém devia ficar sem brincar lá fora, sem ir para escola... Na verdade, esquece a escola.

— Não é bem assim.  Mesmo descontentes por estarmos aqui, sabemos que é para o nosso bem. Digamos que nós temos... Habilidades especiais.

— Vocês são tipo os X-Mens?

— Se está perguntando se nós temos poderes... Sim. Não há livros de fantasia aqui, aliás, nunca li um livro que contenha ficção. Minha mãe sempre me trouxe livros de ciência e história, mas nada de literatura imaginativa.

— A Bianca é super inteligente e eu tenho uma força sobre-humana. - Ben demostrou isso quando ergueu a televisão de 69 polegadas, o queixo de Alfinn despencou com a surpresa e Bianca revirou os olhos.

Depois do X-Vírus, a paixão de Bianca por livros se intensificou, fazendo de seu cérebro um supercomputador, capaz de armazenar informações lógicas e matemáticas com extrema facilidade e também transmitir seus pensamentos para outras pessoas. Bianca podia entrar na mente de quem quisesse e até mesmo, controlá-la à sua vontade.

Além de se comunicar mentalmente com a irmã, a mutação criada pela cientista deu para Ben, uma habilidade descomunal de manipular facilmente objetos com alta densisade e peso.

— E eu consigo colocar o pé atrás da cabeça. - Alfinn dissera impressionado. - Isso serve como meu super poder?

Ben riu, mas Bianca encarou o garoto com tristeza.

— Quem dera que nosso poder fosse como a sua flexibilidade normal. Você não sabe como é, ter todo um conhecimento e não poder usá-lo, Alfinn.

— E ter todos os games do Resident Evil, mas não ter com que jogar. - Ben completou.

— Se vocês tem super poderes, podem me ajudar a sair daqui e achar o meu irmão. Depois, podemos ir todos juntos para fora daqui e o Ben, pode jogar com o Fred. Ninguém vence ele.

Bianca não se imaginava saindo dali para ajudar quem nem conhecia, mas quando reparou na aparente aceitação de Ben no pedido, seu intelecto precisou intervir.

— Alfinn, poderia esperar no outro lado da sala e tapar os ouvidinhos? - Ela pediu e o garoto obedeceu. - O que está fazendo, Ben? Não podemos sair daqui e nem ajudar ele. Nossa mãe deixou bem claro o risco que corremos lá fora.

— Esse é o problema, Bia. Eu já estou cansado de ficar dia e noite trancado, sem fazer nada do que eu quero além de jogar videogames. Apenas vendo você reler coisas memorizadas e que sabe recitar de trás para frente. Essa é a nossa chance de viver uma aventura.

— Preciso calcular todas as probabilidades primeiro, não sabemos o que deve estar acontecendo lá fora e além do mais, se o irmão dele está aqui, deve ser por um bom motivo.

— Você mesma disse que o Alfinn não mentiu em nada, nossos pais devem ter uma explicação plausível sobre isso, mas eu estou cansado de ficar vegetando aqui esperando por eles.

Bianca também não estava satisfeita, a garota só conhecia o mundo através de textos e fotos, sem poder tocar e ter a experiência de vivê-lo. A periculosidade de sair daquele quarto era alta, porém ela concordava com o irmão.

—Tudo bem, a gente vai ajudar você, Alfinn. - Bianca cedeu.

 - Mas agora não vai dar, já tomamos o nosso remédio e eles neutralizam os poderes. - Ben mostrou para Alfinn o frasco em seu bolso. - Vai demorar um tempinho até a minha força voltar por completo e essa porta ir pelos ares.

— Parece com as pílulas que meu irmão toma, mas o que vamos fazer até lá? Não sei jogar videogame ainda.

Bianca virou de costas para Alfinn e caminhou até uma enorme prateleira recheada por livros de todos o tamanhos, mas aquele conhecimento já não era mais novidade para o cérebro desenvolvido dela.

— Tenho vários livros escritos por diversos cientistas e matemáticos, menos fantasia. Ás vezes, eu sinto saudades das histórias que ouvia na escolinha, sobre princesas em castelos e príncipes montados em cavalos brancos, esse tipo de coisa.

— Sou um ótimo contador de histórias e ganhei o concurso de soletrar.

— Deve ter lidos muitas também. - Ela disse com tristeza. - Qual é a sua preferida?

— Acho que o Soldadinho de Chumbo. Ela é diferente das outras, daquelas onde o mocinho fica com a mocinha e eles são felizes para sempre, mas o soldadinho não tem essa sorte.

— Eu adoraria ouvir e saber do final, um pouco de novidade e menos números e cálculos é tudo o que preciso agora.

Ben compartilhava o mesmo sentimento da irmã, todo o milhar de jogos que Anúbis comprava não o satisfazia como antes. Alfinn sentou-se de frente para eles, aquelas pessoas lhe pareciam uma ameaça, mas o garoto não tinha o menor medo delas, pelo contrário, Alfinn estava feliz em estar com eles.

— Só sei que todos morrem no final. - O garoto mostrou um sorriso. - Mas isso é uma longa história... Numa loja de brinquedos havia uma caixa com vinte e cinco soldadinhos de chumbo todos iguais, menos um, ao qual faltava uma perna...

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A atiradora colocou um silenciador na arma e disparou em todas as câmeras de segurança pelo caminho. Marjorie a seguia desconfiada e Amélia temia o que poderia vir daquela empresa, para estarem naquela situação.

— Qual é o plano? Você tem um pelo menos? - Marjorie perguntou.

— A farmacologia funciona nos primeiros andares, na parte que fica visível do lado de fora. As Tumbas ficam abaixo, dentro da montanha. As Tumbas se dividem em quatro níveis: A, onde os testes são feitos com as cobaias e os voluntários, o nível B é para onde os vão os que reagem bem e o C, para aqueles que são considerados uma ameaça. Seus amigos estão no D, aquele onde os infectados ficam presos até sucumbirem aos efeitos. É para lá que iremos.

Elas chegaram na escadaria de serviço e desceram para o nível B.

Amélia olhava para os pacientes presos dentro dos quartos, a Pyramid era como o CAPS, mas cem vezes pior na opinião dela. Muitos pacientes tinham o olhar perdido para o nada, caídos no chão ou drogados. A atiradora fazia o mesmo, olhando esperançosa para cada escotilha de vidro na porta de todos os quartos.

Amélia pensou em perguntar o que mais aquela mulher escondia, além da filha e o estranho motivo de ajudar na fuga de Marjorie, mas quando seus olhos visualizaram uma paciente em especial, ela esqueceu qualquer dúvida.

— É a Serena!  A gente tem que ajudar ela.

— Serena? - A voz da atiradora mostrou surpresa. - O que ela está fazendo aqui?

— Todos nós estamos fazendo a mesma pergunta. - Marjorie respondeu, ela não sabia sobre o parentesco de Serena e Barbie, mesmo sendo funcionária da primeira.

A atiradora se aproximou da portinhola e olhou com pesar para a ruiva, que estava sedada e algemada numa cama, cercada por seguranças armados. Ela não podia contra eles, sem colocar Marjorie e Amélia em perigo.

— Desculpa... Mas agora não posso ajudar você, Serena. — Pensou ela e com dificuldade, continuou seu caminho.

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Estar naquele lugar sujo, fez Debora se lembrar da noite no mercado, de quando atirou no psicopata e o cérebro dele explodira na parede. E ela então se perguntou, se o mesmo acontecera com quem ficara preso naquela jaula, mas também, com a dúvida se tinha uma nova vida depois daquilo ou se continuava na lista da morte.

O ferimento na perna de Ed não parecia mais sério e ela pode respirar tranquila por um tempo. A loira mal podia esperar para sair e dali e viajar pelo corpo dele, sem ter hora para voltar. Mesmo estando calado, Ed pensava em fazer o mesmo em seu corpo de bailarina.

Mas seus pensamentos quando a única porta do alojamento fora aberta, ela se preparou para o pior, mas quando viu o menino de nove anos segurando as chaves, a ideia de curtir o corpo de Ed se intensificou.

— Eu disse que conseguiria. - Disse o menino sorridente.

— O que aconteceu com o guarda? - Renan perguntou afobado.

— Não temos tempo para isso. - Debora o cortou elegantemente. - Só, por favor, tira logo a gente daqui.

Alfinn concordou que sim e os gêmeos apareceram atrás dele. Os Velasquez se mostraram surpresos com o que viram, não só por causa da série falta de higiene do lugar, mas também por saberem que outras pessoas modificadas morreram ali.

— Alfinn... Quem são seus novos amigos? - Elly perguntou.

— Ben e Bia, eles vão me ajudar a achar o Fred e tirar vocês daqui. Só tenho que descobrir qual é a chave certa.

— Não preciso de chaves. - Ben se gabou. - Vai ser fácil abrir isso com as próprias mãos.

Ben prensou suas mãos contra a fechadura e todos se chocaram, quando viram o mecanismo de ferro entortando. A primeira cela foi aberta e confusos olhares foram lançados na direção de Ben. Quando isso aconteceu, Ben se lembrou das palavras de sua mãe, de como o mundo não gostava do estranho, nem do que não poderia explicar. Assim como a irmã, o jovem sentiu medo da reação dos considerados normais.

— Meu jovem... - Ed, o primeiro que saiu da cela foi até ele. - Não quero nem perguntar como você fez isso, mas foi extraordinário.

— Essa não é a Ilha dos Desafios, é a Ilha do Arraial. - Elly soltou um riso de alívio para Ben e o abraçou. - Obrigada, meu herói.

Com a segurança de que eles não eram ameaça, Ben destruiu a tranca da segunda cela e libertou todos, que agradeceram ao garoto. Eles notaram que assim como os infectados, Ben não era normal, mas nada mais poderia surpreendê-los.

— Como vamos chegar até a praia? - Thiago perguntou.

— Pelos túneis, a Bia sabe o caminho. - Alfinn respondeu.

— Sim, eu sei de cor toda a planta do complexo. - Bianca completou.

 - Não vou sair daqui, sem a Nat. - Max pronunciou para a garota. - Ela foi levada para um lugar chamado Sarcófago ou algo assim. Você sabe onde fica?

— Sei que fica no caminho para os túneis, eu levo vocês até lá.

Ninguém parou para discutir e a seguiram o mais rápido possível.

Liderados por Bianca, o grupo continuou sua fuga da Pyramid, o alarme da falha tinha tirado todos os trabalhadores daquela área para um local seguro na área dos barcos, deixando o caminho seguro para eles. Renan ia tranquilizando Max, com a promessa de que Natasha seria salva; Ed e Debora andavam apressados de mão dadas; Elly perdeu o sapato enquanto corria, mas foi ajudada por Ben, que parou para colocar a a sapatilha pintada de ouro de volta no pé dela. Ao lado de Mia, Gabriel carregava Alfinn no colo por garantia, Erick e a meninas o seguiam e Stein era o último da fila.

Bianca só vira as plantas de todo o prédio uma única vez, mas fora o bastante para garota entrar e sair de corredores com a certeza de que estava indo no caminho certo. Mas antes que chegasse até lá, um lugar em especial chamou a atenção dela e de Renan, que olhou pela portinhola de vidro e o temor tomou conta de seu corpo;

Numa velha e suja câmara pressurizada, Natasha estava presa à uma cadeira, e vários cilindros de gás estavam esperando serem liberados por um painel de acesso remoto. Ela estava sedada e com dificuldade para se manter acordada.

— O que é esse lugar? - Max perguntou exaltado assim que viu a namorada.

— É uma espécie de câmara de gás, daquelas usadas antigamente nos Estados Unidos. - Renan respondeu, ele não sabia como, mas conhecia aquele lugar.

— Essa é a Necrópole. - Bianca disse para o irmão. A menina não conseguiu acreditar, no que de fato acontecia dentro da empresa dos pais. Vários questionamentos sobre o trabalho de seus pais invadiram a agitada mente da menina e ela compartilhou tudo com Ben. Os gêmeos concordaram mentalmente, que aquele assunto seria discutido no momento apropriado.

— Vou te tirar daqui, Nat! - Max gritou e forçou a abertura da porta, mas ela não conseguia escutá-lo.

— Espera! - Erick o impediu. - Aqueles cilindros... Tenho certeza de que tem cianeto dentro deles e isso é um gás venenoso. Ele causa ligações químicas com o ferro do sangue e é ele quem carrega o oxigênio, as células da Natasha vão morrer se ela inalar isso.

— Sei que isso não ajuda, mas a maioria dos autores de romances policiais matam seus personagens com cianeto. - Elly comentou.

— Tem razão, minha querida. Não ajuda. - Ed respondeu. - Mas foi uma observação bastante perspicaz.

— O problema não vai ser abrir a porta e sim o gás, que vai ser liberado assim que eu fizermos isso. - Erick percebeu que os cilindros estavam ligados ao mesmo painel, que cuidava de manter a porta selada.

— A Natasha ainda pode ter uma chance se inalar o gás por alguns segundos, mas mais do que isso e eu não vou poder salvá-la da asfixia. - Gabriel disse preocupado. - Não tenho nenhum recurso.

— Vai dar tempo. - Ed disse com confiança. - Não é mesmo, Renan?

Depois de Ed ter conversado com Gabriel, o experiente homem passou um pouco de sua sabedoria para Renan. Mesmo não tendo mais nenhuma visão sobre os próximo da lista ou desmaios, Renan estava confiante de que não era o inútil que seu remorso dizia ser, ele estava a não deixar mais ninguém morrer sem fazer nada, além de desmaiar, estar longe demais e jogar pôquer.

— É aqui. - Refeita do choque, Bianca parou na frente de uma parede. - Tem uma passagem para o túnel atrás dessa parede falsa, ela vai levá-los até a saída, diretamente para a praia. Sem nenhum esforço, Ben quebrou a parede, revelando um longo e escuro corredor.

— Essa é a sua chance de sair daqui, Debora. - Ed disse. - Vá e depois em me encontro com você e uma garrafa de Chardounnay.

— Eu vou ficar com você, Ed. - Debora não queria deixá-lo sozinho, justamente quando tinha conseguido encontrar alguém para dividir sua vida. Ed ainda estava na lista e perdê-lo não era uma opção. E Ed não conseguir discutir com o olhar dela, capaz de partir o mais duro dos corações.

— Tudo bem, vamos nos dividir a partir de agora. - Ed tomou o controle da situação. - Aqueles que querem seguir pelos túneis e quem vai atrás dos desaparecidos.

Thiago, Alisson e a chinchila foram com Ben procurar por Serena e Ester. Gabriel, Mia e Alfinn foram com Bianca atrás do Fred no Sarcófago. Elly, Mimi, Sabrina e Erick, foram pelo túnel, Ísis queria ficar com Renan, mas o visionário não deixou.

E assim foi feito.

— Stein e Max, vocês dois são os mais fortes aqui. - Ed continuou. - Segurem a porta para que ela não se feche, enquanto Renan e eu iremos soltá-la.

Max e Stein pressionaram suas mãos e puxaram as portas para trás, assim como num elevador travado. Algumas faíscas saíram, a força do mecanismo foi cedendo, mas não por completo e eles continuaram impedindo que ela fechasse. Renan pode escutar as válvulas do gás se abrindo e com a ajuda do ex-policial, correu para impedir mais uma morte.

 As mãos rápidas de Ed libertaram Natasha das amarras e Renan segurou o corpo inerte da escritora em seus braços tatuados.

— Você não vai morrer hoje. - Renan sorriu para ela.

Renan correu para fora com Natasha em seus braços, seguido por Ed, que por algum motivo, não estava sendo ágil como deveria. Assim que eles passaram pelos dois homens, mais faíscas saíram e forçaram Max e Stein a recuar. Por uma fração de segundo, Renan olhou para trás e viu sangue escorrendo da perna da Ed, que ainda estava dentro da câmara.

Por isso foi tão fácil... - Renan se tocou com ódio de si mesmo.

As portas fecharam num piscar, no exato momento que o gás tóxico foi acionado, selando Ed dentro da câmara de gás.

— Ed! - Debora gritou ao vê-lo atrás da portinhola de vidro inquebrável.

— Fico te devendo uma dança, minha bailarina.

=-=-=-=-=

This is the end

Realmente não era a vez da Natasha morrer e quando aquelas portas se fecharam, Ed soube que não havia mais como voltar. Depois de conhecer Debora, Ed não se preocupava mais consigo como antes, ele se preocupava em defender a causa pela qual lutava, mesmo que precisasse dar sua vida para isso.

Hold your breath and count to ten

Feel the Earth move and then

Hear my heart burst again

Viver no mundo do crime era estar um passo de distância de vencer ou ser derrotado. Não era sorte, era a estratégia em prever o próximo passo de seus inimigos. E Edmundo Moura conseguira isso desde que abandonara a carreira de policial e seguira à margem da lei, ajudando criminosos. Ele lembrou-se quando sua filha morreu na armadilha montada para ele, e quando Samantha se sacrificou para dar-lhe uma chance de escapar, antes do gás venenoso estar pronto para tomar sua vida. 

Ed segurou o pouco que restava de oxigênio e pode ver o denso nevoeiro azulado se expandir, dentro da sala hermeticamente selada. Seu corpo enrijeceu e seu coração acelerou dentro do peito.

Hold your breath and count to ten

Feel the Earth move and then

Hear my heart burst again

Começou com a dificuldade em manter o fôlego, a sua pele bem conservada foi ficando vermelha e Ed sentiu sua traqueia fechar, quando o gás desceu garganta abaixo. O oxigênio fora expulso de uma vez só, seus pulmões começaram a arder e puxar o ar se tornara impossível, seu corpo tremia numa crise de asfixia, mas ele lutou para não se render, lutou para permanecer de pé.

Let the sky fall

When it crumbles

We will stand tall

And face it all

Together

Com sua bela atrás da porta de vidro, Ed permaneceu olhando para ela, como fez desde a primeira vez que se viram e prosseguiu, ele queria que ela fosse a última coisa que vira em vida. Ed guardou em seu coração, todos os melhores momentos que teve e com ela, seu coração desértico floresceu.

Skyfall is where we start

A thousand miles and poles apart

Where worlds collide and days are dark

O homem curvou-se no chão, tossindo com uma força desesperadora. Debora podia ouvir o barulho gorgolejante do sangue escorrendo do nariz e da boca escancarada, manchando o seu paletó. O som da vida de Ed se esvaindo quebrava o seu coração.

Os outros não tinham mais o que fazer, além de assistir Ed se desfazer no próprio sangue. Numa lenta morte, que duraria várias minutos até o corpo ser completamente consumido pelo ardor do veneno. Queimando de dentro para fora, numa dor com a impressão de ser eterna.

You may have my number

You can take my name

But you'll never have my heart

Não havia problema em morrer, Ed experimentou muitas coisas em sua vida e as venceu, a morte era seu último desafio. Ele teve várias chances com seus inimigos, que por muitas vezes tentaram, mas jamais conseguiram ter o prazer de apagar o seu sorriso irônico. O amor de Debora era o bastante para ele morrer feliz, sem culpa ou arrependimentos, naqueles arrastados últimos segundos de vida.

As lágrimas que escorriam do rosto de Debora expressavam sua tristeza, ela não precisava esconder seus sentimentos, pois os outros ali compartilhavam da mesma dor. De todos, Renan não conseguir presenciar o fim aquela triste história e sumiu no primeiro corredor que achou, inundado pela tristeza de ter deixado mais um partir.

Let the sky fall

When it crumbles

We will stand tall

And face it all

Together

No pouco tempo que teve de consciência, Ed sentiu seus órgãos corroídos irem morrendo aos poucos, o brilho da vida fora tirado de seu olhar e o homem caiu no piso ensanguentado e seu corpo parou de se mexer depois de um último espasmo, assim como muitos soldados das histórias sobre guerras.

Depois que o nevoeiro venenoso foi sugado para fora da sala, Debora quis entrar e se encontrar com o Ed, mas no lugar, ela apertou o anel da pedra azul contra seu peito, arrasada com a tempestade acontecendo em seu interior. Naquele momento, a magnata se tornara tão frágil como papel, morrendo um pouco junto com o primeiro homem que amou.

Let the sky fall

We will stand tall

At skyfall

A vida de Ed como guerreiro jamais seria apagada no tempo. Ele ficaria eternizado na memória de todos, pois guerreiros como ele não morrem, guerreiros fazem história.

=-=-=-=-=

A luz forte invadiu o lugar rápido demais, iluminando o rosto de Kaíque e fazendo seus olhos arderem. Gigi entrou na sala e se encontrou com o filho, que desde a manhã estava trancado na sala pertencente à Barbie.

— Eu não sei como será daqui para frente, mas estou aqui por você e pelo Alfinn. Nós vamos buscá-lo agora e de algum jeito, vou levar vocês para longe da megalomania do Anúbis.

— Menos mal. - Ele se levantou e seguia a mãe pelo vazio corredor vermelho.  - E o Fred?

— Você sabe que há algo no organismo dele e é por isso, que o Fred precisa ficar aqui mais um pouco, até Barbie chegar e consertar tudo. Se der tudo certo, ele e a Natasha vão nos tirar dessa situação.

— Sempre deixou claro que nunca gostou do Fred, mas ele é o meu melhor amigo e não vou deixá-lo aqui na Corporação Umbrella. - Kaíque parou e se recusou a continuar.

Gigi nunca escondeu o que achava da amizade entre os dois, ela sempre vira o filho da Donatella como um péssimo exemplo para Kaíque e depois que ela descobriu o cigarro de maconha no jardim de sua casa, isso só piorou.

— Pode parar. - Gigi parou de andar e encarou o filho. - As mães sempre sabem, elas são as primeiras e só esperam que o filho tenha coragem o suficiente para falar. E eu esperei por você, Kaíque.

Kaíque congelou, ele suspeitava que Maria soubesse da sua sexualidade dele desde a infância, mas nunca teve coragem para contar para a irmã e muito menos, para os pais.

— Desculpa, mãe... Eu queria ter contado antes.

— A Donatella me disse que o Fred tinha contado à ela na noite de Ano-Novo. Não queria acreditar no começo, mas... Eu sabia o quanto você sempre gostou de dormir na casa do Fred e eu via os sorrisos que dava quando estavam juntos, então... Se a felicidade é ele, eu estou feliz por você.

Os dois se abraçaram, mas a vermelha luz piscante do alarme os lembrou do que era importante, Gigi segurou a mão do filho e seguiu para o quarto dos gêmeos Velasquez, onde levaria Alfinn e os filhos de Barbie para a área dos barcos, mas para a surpresa da médica, a última pessoa que ela queria ver estava ali.

— Anúbis! - Gigi engoliu em seco.

— Minha querida, Gisele! - Anúbis a recebeu com um olhar predatório. - Que maus ventos a trazem aqui?

— O meu trabalho. - Ela tentou não mostrar nervosismo, mas era bem difícil na frente de Anúbis. - A Barbie me pediu para cuidar deles se algo desse errado.

— Sabe o que é engraçado? - Ele riu sozinho. - Eu vim aqui ver o meus filhos e descubro que eles e meus funcionários sumiram. Quer me explicar?

— Eu não sei de todos os detalhes, o alarme de falha na contenção química disparou e todo  mundo foi embora. - E se enchendo de coragem, disse: - Eu cansei de você enganar a minha amiga, de ter que presenciar toda a culpa sendo colocada nela, quando você é o responsável.

— Cuidado com o que fala. - Anúbis já esperava tal reação da parte dela. - Você está em meus domínios, é sábio não me enfrentar, mas eu lamento, que em meia hora, você não vai estar aqui para presenciar a purificação. E finalmente, não vou mais ter que aturar a sua presença esquelética na minha empresa.

— Eu arrebento a sua cara, se falar assim da minha mãe de novo! - Kaíque invadiu o quarto, prostrando-se contra o empresário vários centímetros mais alto que ele. Anúbis nem piscou com a ameaça, apenas soltou um riso debochado

— Eu admito que garoto tem coragem, mas isso não vai ajudar vocês.

Anúbis estalou os dedos e logo, dois seguranças invadiram o quarto dos gêmeos e os pulsos magros de mãe e filho foram contidos com força pelos seguranças particulares do homem.

— Faça o quiser comigo, mas o meu filho não tem nada haver com isso. - Gigi implorou, com medo e arrependimento no olhar. - Deixa ele em paz!

Da forma mais sereno, Anúbis a ignorou e caminhou para fora do mini apartamento.

— Seguranças, levem a Dra. Salles e o filho dela para a Necrópole. E garantam que eles não sairão de lá. Agora eu preciso garantir, que Cabo da Praga seja tomada pela força de Apófis.

=-=-=-=-=

Por fora, o prédio da Pyramid fora feito para parecer uma grande mansão, repleta de colunas. Barbie chegara ao terraço do prédio, um lugar que ela gostava de ir para ficar sozinha para pensar. Ela carregava duas urnas em suas mãos, a cremação fora a única solução, já que o corpo de um fora tomado por vermes e o outro, fora completamente destroçado.

Mother cannot guide you
Now you're on you're own


Only me beside you
Still, you're not alone

Seus planos tiveram de ser mudados com a notícia dada por Gigi. Para a surpresa da viróloga, Ômega fora encontrado morto pela doença e um corpo destroçado na ilha, tinha sido identificado com sendo o de Alfa. O coração de Barbie disparou, ela se culpava por ter de uma forma ou de outra, levado parte de sua família à morte.

Barbie já sabia que Anúbis chegara bem antes e provavelmente, mas sua mente não estava concentrada no marido e sim, em seus afilhados.

No one is alone

 Truly, no one is alone

Alfa e Ômega eram como seus segundos filhos, quem ela viu crescer até se tornarem adultos, uma felicidade que não pudera ter com Clarisse, a desgarrada do bando. E com Bianca e Benjamim, os gêmeos que passavam a infância longe de uma vida normal.

Sometimes people leave you
halfway through the wood
Others may deceive you
You decide what's good

Tomada de coragem, Barbie pegou um punhado das cinzas de Ômega e as dispersou pelo ar daquele final de tarde, depois, fez o mesmo com as cinzas do Alfa e sentiu as lágrimas quererem sair. Ela os amava e os dois mereciam um funeral digno.

— Me perdoem, meus queridos...

You decide alone
But no one is alone

=-=-=-=-=

Fred não conseguir parar de pensar em Alfinn e Kaíque, preocupado com o irmão e sentindo a falta do último. O alarme vindo do lado de fora não deixava que ninguém escutasse seus gritos, sua cabeça doía mais do que nunca e a febre aumentava. A droga aplicada por Júlia só piorava os sintomas que ele já tinha.

Mother isn't here now
Wrong things, right things.
Who knows what she'd say?

Ele se lembrou de quando Donatella o tirara daquele lugar da primeira vez, logo depois da morte de seu pai. Marco acreditara fielmente que a Pyramid iria ajudar seu filho, Júlia e Barbie prometeram a cura, mas o resultado tinha sido oposto e sua mãe não estava mais presente para salvá-lo de novo. Toda a morfina aplicada intravenosa em seu corpo, o deixara incapacitado de libertar-se daquelas algemas, antes de ter o mesmo destino de Natasha e dos outros infectados na ilha.

Who can say what's true?
Nothing's quite so clear now
Do things, fight things
Feel you've lost your way

Foi então que seu corpo começou a reagir com o "Sangue dos Deuses" e de repente, Fred estava convulsionando de forma agressiva em cima da maca. Seus olhos vermelhos se arregalaram, as veias pulsavam sob a pele e o garoto sentia que sua sanidade estava indo embora, quando uma baba negra escorreu de sua boca.

You decide, but

You are not alone
Believe me, no one is alone

=-=-=-=-=

O véu preto dançava ao seu redor, deixando a menina encantada com tudo que via. Ester não se importava com o lugar frio em que estava, nem com o sangue escorrendo pelo nariz, ela queria apenas em seguir a voz doce de sua condutora. O véu se transformou em uma bela mulher, a mesma que Ester já vira em sonhos e nos desenhos que fazia.

You move just a finger
Say the slightest word
Something's bound to linger
Be heard

— Não precisa ter medo. Confie em mim. - Disse a mulher de preto. - Seu pais esperam por nós, minha pequena.

A mulher estendeu sua mão perfeita para a menina, que não tardou para segurá-la e acompanhar a bela para onde quer que fossem. Elas estavam no enorme túnel que saía de Cabo da Praga. Samara e Alfa estavam no fim do túnel, de costas para ela. Ester apertou a mão da mulher e a puxou para que andassem mais rápido.

No one acts alone
Careful, no one is alone

— Ester! - Uma voz infantil lhe chamou. - Você precisa voltar.

— Estamos quase lá, querida. - A mulher insistiu.

Mas algo mais forte do que Ester soltou sua mão dela. De repente, a menina corria para longe de seus pais e da mulher, para longe da escuridão e de volta para a luz

— A história de cada um já foi escrita há muito tempo, não adianta pular ou avançar as páginas, pois o final será sempre o mesmo. - A mulher de Preto foi envelhecendo, até seu corpo virar pó e sobrar apenas a voz e o seu véu. - E você, pequena Ester, será minha!

Witches can be right
Giants can be good


You decide what's right
You dedide what's good

A menina abriu os olhos e gritou, assustada por não saber onde estava e o que tinha acontecido. Um pequeno par de mãos a segurou forte, mas de uma forma protetora.

— Se acalma. - Disse uma garota com traços orientais. - Eu não vou te machucar, pelo contrário, estou do seu lado.

Just remember

Someone is on your side

Our side

— O que aconteceu? - Ester perguntou e limpou o sangue do nariz. - Onde está o meu papai? Como sabe meu nome?

— Eu vi que você viria, mas não temos muito tempo, Ester. Chegou a hora da purificação.

=-=-=-=-=

Renan caminhava inquieto pelos corredores. Sua cabeça doía e ele já começava a achar que em pouco tempo, ela poderia explodir, sujando as paredes ao redor com seu sangue e miolos. O local parecia estar mais frio do que o costume, causando um leve incômodo para o rapaz, que andava de braços cruzados.

Por mais que vasculhasse o infinito labirinto que era a sua mente, quando ele achava que tinha chegado em algum lugar, havia uma parede sólida, bloqueando seu caminho e o forçando a recomeçar.

Someone else is not
While we're seeing our side
Our side

Ed morrera, Natasha era a próxima e ele não podia conviver com a dor de ideia de perdê-la também. Só o que visionário sabia, era que a falta de se passado, estava impedindo que o outros tivessem futuro e ele estava disposto a mudar isso.

Sentia muito por ter dado um “perdido” em Ísis, Debora e os outros, mas precisava achar qualquer telefone. Aquele número ainda estava guardado no bolso de sua calça e ele pretendia tentar qualquer mero contato com quem quer se seja. Não sabia exatamente onde estava, mas continuaria seu caminho.

Maybe we forgot
They are not alone
No one is alone

Adentrou mais alguns corredores até parar em frente de uma porta. Ao abrí-la, se deparou com uma aréa de convivência destinada aos funcionários da empresa e para a sua sorte, não havia nenhum ali. Olhou para os lados e avistou alguns telefones nas paredes, como se fossem telefones públicos.

O visionário se encaminhou até o primeiro telefone. Aproximou-o perto de sua orelha, mas estava mudo. Tentou o segundo, que se encontrava na mesma situação.

— Renan? – A voz de Ísis ecoou pelo corredor o qual ele viera. A loira decidira voltar por ele, enquanto os outros continuaram no túnel.

Hard to see the light now
Just don't let it go

O homem tentou o terceiro telefone. Ele precisava ser rápido. Ele sentia seu próprio descontrole. Se Ísis o achasse daquela maneira, veria a sanidade do amigo indo embora. Renan estava enlouquecendo.

O terceiro telefone também estava mudo. Tentou o próximo, e com sorte, achou-o funcionando. Renan encaixou o objeto entre sua cabeça e o seu ombro, enquanto esticava as mãos para pegar o pequeno pedaço de papel amassado em seu bolso. Achou-o, um pouco da tinta se apagara com a água salgada, mas ainda era possível identificar o que estava escrito. Tomou o telefone para uma de suas mãos e começou a discar o número escrito no rasgo de jornal.

Chamou uma vez. Duas vezes. Três. Quatro.

Things will come out tight now
We can make it so
Someone is on you side

Não havia como voltar no tempo, desejar o que quisesse e construir o que bem entendesse como precisava. E de tudo o que poderia fazer quando aquele pesadelo terminasse. Quando se tornasse uma pessoa novamente, com nome, sobrenome e uma história de vida.

No one is alone

Ele não iria desistir tão fácil. A chance de saber seu passado, e quem ele mesmo realmente era, estava ali em suas mãos e não poderia perdê-la. Renan ouviu alguns sons em sua volta. Algo parecia se aproximar dele, mas sua atenção foi tomada pela parada de toque da chamada e uma voz o substituiu:

— Alô?


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Notas finais do capítulo

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