Premonição Chronicles 3 escrita por PW, VinnieCamargo, Felipe Chemim, MV, superieronic, Jamie PineTree, PornScooby


Capítulo 22
Capítulo 22: Paranoia (PARTE II)


Notas iniciais do capítulo

Ecrito por PW.



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PARTE III: Preto

Noite — Horas Depois

Do lado de fora do hangar, Demétrio, de olhos demasiados vermelhos, encarava o céu nublado. Ele poderia ouvir o barulho do helicóptero ecoar na mente. O caos predominava, ninguém estava firme o suficiente para continuar a querer viver. Principalmente ele. Na verdade, apenas ele não via mais sentido em continuar tentando, sabendo que a morte estava logo atrás dele, prestes a tocar seu ombro e cumprimentá-lo. Todos ali continham a chama da esperança ardendo dentro de si, mas Alfa achava a simplicidade dos sentimentos de imponência tão mais latentes. Sem o pai, a esposa, o irmão, a fé de continuar… O que restara para ele além do amor da filha? O que seria dela quando a morte finalmente alcançasse-o?

Ester despertou os pensamentos obscuros do pai com um pigarreio. O homem loiro levou o olhar na direção da garota e sorriu solenemente. Nada poderia mostrar o quão abalado ele estava. E só sua filha seria capaz de trazê-lo de volta da escuridão. A menininha sentou ao lado dele no banco de concreto e olhou para suas bochechas sujas de fuligem.

— Você está bem, papai? Parece triste.

— É que o papai presenciou muita coisa estranha hoje, querida. Não é nada com que deva se preocupar. Ficará tudo bem, papai está no controle, lembra? — Ele sorriu desconsertado e abraçou a pequena de maneira demorada.

— Você cuida bem de tudo quando está no controle, papai.

O homem não soube o que dizer, ele queria chorar mais do que qualquer pessoa, porém não tinha coragem suficiente para admitir para si mesmo o quanto fragilizado estava. Ele não deveria se mostrar fraco na frente da pessoa pela qual ele teria de zelar com todas as suas forças. Lembrou-se o porquê de ainda estar vivendo. Era por Ester, seu maior bem. E seria por ela que ele doaria tudo de si, para que assim finalmente os dois pudessem ter um momento feliz no final daquele túnel escuro.

Apoiada com a cabeça no ombro do pai, Ester começou a tossir. Mimi chegou nesse momento e viu o momento a sós do dois, até pensou em recuar, mas Ester não parecia bem, a garota começou a empalidecer de maneira célere e a tossir uma grande quantidade de sangue na blusa do loiro. Demétrio segurou-a pela cintura, pondo-a bem na sua frente. Neste instante, Natasha e Max se aproximaram do homem.

— O que está havendo, Alfa? — Natasha indagou, vendo a cena se desenrolar rapidamente.

Max engoliu em seco. A filha de Alfa tossia sangue, estava pálida e desidratada. Talvez fosse um estágio de desidratação e ela precisaria de água, ou talvez ela fora infectada naquele dia. Oh, não, será que está infectada?

— Ela não poder estar infectada… Não pode! — Alfa procurava alguma forma de confirmar se a teoria estava certa. Se sua filha estava realmente infectada. Nenhuma marca de ferida em seus braços, tórax ou rosto.

— O seu irmão não mordeu ou arranhou ela? Ela não entrou em contato com secreções dele? — Michelle perguntou, visivelmente nervosa.

— NÃO!!! EU ME CERTIFIQUEI DE QUE ISSO NÃO ACONTECESSE!!! ESTER, MINHA FILHA! — Alfa balançava os braços da garota, ela parecia estar perdendo os sentidos gradativamente. Seus olhos estavam pesados, os lábios pálidos, o sangue manchando a roupa da garota. — FALA COMIGO, POR FAVOR!!!

Ester olhava para frente, entre as fechadas de olhos bruscas, estática. Do outro lado da cerca de metal, o vulto negro se formava. O véu negro cobrindo o rosto, o vestido de mesma cor sem tocar o chão e o rosto turvo por trás do tecido. A mulher de preto parecia rir por detrás do véu, os dedos esqueléticos chamando Ester e a energia ruim escorregando no caminho do corpo da garotinha.

Até que Ester apagou de vez, tombando a cabeça para frente.

O sentimento de Demétrio como pai tentava consentir que daquela vez, a garota voltaria, mas como um ser sem sanidade; agressivo, que tentaria matá-lo, assim como Ulysses. Ele não queria aceitar, mas estava fadado a perder todos ao seu redor, como uma maldição.

— Ela está recobrando a consciência! — Mimi alegou.

Demétrio viu a filha abrir os olhos bem devagar e sorriu de canto de rosto. O tom de sua pele estava voltando ao normal, sua temperatura também. Ester não fora infectada, somente passara mal.

— Eu vou procurar água pra ela. — Natasha proferiu. Ela afastou-se e lançou um olhar para Max, que a seguiu em silêncio.

Michelle abraçou Alfa e sorriu para o produtor, alternando entre olhar para ele e para a pequena Ester, que ainda visualizava a figura vestida de preto do outro lado do terreno. O que ela queria, afinal? A garotinha ergueu o braço e apontou para o local onde a mulher de preto deveria estar. Demétrio, mesmo relutante, arriscou olhar e acabou por visualizar a figura novamente. A mesma que vira nos desenhos da filha e no dia em que recebeu Mimi na rodoviária. Se sua filha também estava vendo, realmente algo estava errado. Por que aquela mulher os perseguia?

— É ela.

— Ela quem? — Perguntou Michelle.

— A mulher de preto. — Ester respondeu.

— Querida, foi só um delírio causado pelo desmaio, fique tranquila. Está tudo bem agora. — Mimi falou, abraçando-a.

A chinchila em cima de um caixote, pulou no colo de Ester e a garota passou a encará-la mexer o focinho.

Demétrio olhou adiante e a figura acenou para ele.

— EI, VOCÊ! — Alfa correu até o ponto onde acreditava estar vendo a figura misteriosa.

— Alfa o que está fazendo? Não tem ninguém ali. — Mimi gritou, vendo o homem parar e olhar para ela.

Ao olhar novamente para depois das cercas de metal, Demétrio já não enxergava mais a figura desconhecida. O que diabos estava acontecendo com ele? Sua mente fodida começava a lhe pregar peças? Alisson via tudo de onde estava, a tatuada não sabia como reagir, se Alfa viu realmente alguém, era porque existia mesmo alguém.

Não fique paranoico, Alfa… Fuja da paranoia, por favor. Pensou a morena.

XXXXX

30 de Janeiro — Madrugada

Erick caminhava na companhia de Alfa, Debora, Stein, Ellen, Amanda, Thiago e Mia. O grupo acabara de adentrar em um pequeno mercado. As correntes que deveriam estar nos portões, estavam jogadas na entrada. As janelas revestidas por grades impossibilitavam a visão de dentro do estabelecimento, que tinha parte de sua fachada pichada e deteriorada pelo que parecia terem sido delinquentes. Eles torciam para que aquele mercadinho não tivesse sido saqueado, era o único estabelecimento mais próximo da fábrica, e eles não poderiam ir muito longe.

No começo, Thiago e Stein ficaram receosos de entrar, e para Erick, entrar seria mais fácil do que enfrentar o que possivelmente teria lá dentro. Nada impedia-os de fugir, por isso arriscaram.

Debora e Demétrio seguiam na frente do pequeno grupo, ela com sua adaga cravejada de joias e o loiro com um pedaço de maneira envolto em arame farpado. Acessório que fizera com objetos encontrados numa parte do hangar da fábrica horas antes. Thiago segurava um pé de cabra, Mia um espeto de churrasco, e Erick e Amanda dois pequenos canivetes. Stein e Ellen seguravam as sacolas que deveriam encher de mantimentos para levar ao grupo que ficara na fábrica abandonada. A maneira com a qual escolheram o grupo fora completamente democrática, com alguns voluntários.

Erick apontou a lanterna do celular para o grupo. Mia sugeriu que ela mesma ficasse de guarda na porta do mercadinho. Os outros seis caminhavam sorrateiros pela parcial escuridão do lugar. As poucas prateleiras reviradas, mantimentos vazios no chão, utensílios bagunçados e muita desordem. Como previam, aquele mercadinho havia sido saqueado, mas com sorte eles achariam suprimentos suficientes.

O celular de Demétrio vibrava dentro da pequena bolsa transversal, emprestada anteriormente por Sabrina para ajudar a trazer os mantimentos, porém, o cineasta não percebeu o aparelho tocando. Debora analisava o perímetro minuciosamente, pedindo que Erick e Ellen a seguissem entre os corredores. Demétrio ficou junto com Amanda, Stein e Thiago, enquanto o produtor pedia que eles recolhessem o máximo de suprimentos que pudessem. Stein começou a ajudar Thiago a por os produtos dentro das sacolas, mas Alfa já não via mais Amanda.

A adolescente estava abaixada, engatinhando na direção do balcão, aproveitando a parcial escuridão do estabelecimento para que ninguém a visse. Ela se esgueirou pelo balcão e chegou até a caixa registradora. Ela sabia que os saqueadores tinham feito uma visita ao mercadinho, mas sempre sobrava alguma coisa e essa seria sua chance. Abriu a gaveta da caixa e vasculhou discretamente, achando duas cédulas de cinco reais. Bufou por ter tão pouco e afastou-se dali frustrada.

Quando virou-se, Demétrio estava bem na sua frente, com uma cara de reprovação.

— O que foi? VocÊs recolhem comida e eu dinheiro. Simples. — A garota deu de ombros e passou por ele, batendo seu ombro contra o braço do homem.

Enquanto isso, Debora colocava suprimentos dentro da sacola que Ellen segurava, próximas dos demais. Erick ia muito mais além, sua curiosidade o levou até uma porta lateral logo depois da última prateleira. Ele tentou olhar pela viseira de vidro, mas dentro da sala estava escuro e uma espessa neblina parecia percorrer o espaço de maneira insistente. Então, o rapaz girou a maçaneta e entrou. O que viu, o fez soltar um grito abafado pela própria mão, que tapou a boca.

O cômodo parecia com uma cozinha doméstica, com paredes cobertas de mofo e alguns fungos. O chão cinza estava coberto de poeira e haviam manchas de sangue por todos os lados. Nacos de carne jaziam sobre um balcão de mármore negro e uma mesa apoiava vidros com cabeças mergulhadas no que parecia ser azeite. Havia um esqueleto podre jogado num canto da cozinha e lençóis manchados de sangue distribuídos sobre utensílios inutilizados deixavam o ambiente com odor de carne pútrida. O mais doentio e macabro de tudo eram os corpos humanos pendurados de cabeça para baixo em sacos plásticos transparentes. Eles estavam banhados no líquido rubro, enquanto outro corpo, este partido pela metade, permanecia exposto e pendurado por um gancho de metal na parede. Do abdômen, Erick pode ver o que seria o intestino delgado, pendurado bem próximo da virilha. O órgão balançava com a brisa fria.

O estudante sentiu ânsia de vômito e pôs a mão novamente na boca para evitar que o líquido passasse pela garganta, mas foi inevitável. O líquido rosado atingiu o chão, se permutando ao sangue.

— O que aconteceu? — Thiago chegou ao cômodo seguido de Debora, a loira empunhava sua adaga.

Thiago entrou no cômodo sem ter notado nada e deu de cara com o cômodo dos horrores. Ele arregalou os olhos e lançou o olhar incrédulo para Debora. O sociólogo deu um passo para dar assistência a Erick e verificar se o garoto estava bem, mas no meio do caminho ele pisou em algo estranho, que explodiu num barulho molhado e nojento. Thiago escorregou e caiu sentado perto do vômito de Erick, que aina sentia-se tonto.

Thiago arriscou olhar para o objeto e quando constatou serem dois pares de testículos, ele berrou de forma estridente, chamando a atenção de todos.

Debora chegou a pender a rir da situação assustadoramente engraçada, mas antes que pudesse fazer isso, ouviu um barulho vindo dos fundos do cômodo. Andou até lá prontamente, empunhando sua faca de diamantes e afastou um dos corpos nos sacos plásticos, dando visão do fundo da cozinha. Lá, ela encontrou dois infectados dentro de jaulas de metal.

— Mas que porra é essa? Que pessoa doente faria uma coisa assim?

Thiago apareceu limpando a calça surrada. Disse:

— O quê?

Os infectados se agitaram dentro das jaulas, empurrando as mesmas e babando muito. O odor pútrido vez Erick tapar o nariz com a blusa. Detrás dele surgiram Amanda, Demétrio e Ellen. Todos olhavam para os bichos engaiolados e extremamente furiosos.

— Alguém está dando carne humana pra eles. — A magnata constatou. — Eles devem estar famintos.

— Criação de canibais em cativeiro no meio de uma quarentena… Que conveniente. — Erick proferiu.

— Chama o Ibama. — Ellen sussurrou e o amigo riu brevemente, sentindo a ânsia voltar.

— Por que alguém faria isso? — Demétrio afastou um dos corpos plastificados com certo asco. Mesmo adorando filmes de terror gore, ver aquilo trouxe sensações estranhas para ele.

— Nunca duvide de alguém doentio no tédio. Várias pessoas colocam seus Hannibal’s pra fora nessas ocasiões. — Ellen comentou, analisando os potinhos com cabeças. — Estou oficialmente me sentindo dentro de uma série da HBO, alguém me tira daqui.

Erick adorava o jeito no qual a amiga lidava com situações que implicavam o medo. Enquanto ele sentia o aroma de pavor exalando dos demais, principalmente de Alfa, já que o homem infelizmente era o próximo alvo da morte, com Ellen a coisa funcionava diferente. Ela arrumava condições de transformar todo seu medo em algo bom, o que ele entendia muito bem, vide que ele possuía um mecanismo de defesa circunstancial bastante parecido com o da garota. A similaridade de ambos não era a toa. Por isso Erick e Ellen sentiam-se tão conectados e a vontade um com o outro. Muitas vezes pareciam um peso e duas medidas, duas partes de um todo, dois pedaços de uma mesma pessoa. Outro motivo para ele gostar tanto dela, era impossível não lembrar de Stein ao olhar naqueles olhos profundos. Stein realmente balançava com o estudante de química.

— Eles devem estar sedentos por corpos como os nossos, vamos sair daqui antes que a coisa fique feia. — Alfa disse e virou-se para sair da sala.

Ao dar meia volta, deparou-se com uma silhueta detrás dos plásticos ensaguentados. Parado na soleira da porta, estava um homem com feição abatida, mas ao mesmo tempo sádica. Ele tinha os cabelos bagunçados e úmidos sobre o olhar paranoico e inquieto, quase como se fosse partir para cima de alguém. O jeito insano de mexer os olhos, o rosto avermelhado e suado, as vestes outrora brancas, com rastros de sangue e carne grudados no tecido. Um crachá no peito esquerdo também estava manchado.

Ellen soltou um gritinho quando virou-se para sair também. O homem desconhecido tinha Mia presa consigo, segurando seus braços. Nas mãos dele, o espeto de churrasco comprimindo contra a garganta da bartender. Mia olhava assustada para o grupo, ela queria dizer algo, mas sentia a ponta do espeto entrar na sua pele.

O desconhecido encarou Alfa fixamente e bradou:

— Quem são vocês? O que estão fazendo aqui?

— Você é o dono desse lugar? — Debora perguntou.

— Por que está alimentando os infectados com carne humana, seu doente!? — Ellen retrucou, dando um passo à frente.

O homem não respondeu e deu um passo para trás.

— NÃO SE MEXAM! Qualquer movimento brusco eu degolo a amiguinha de vocês. Ela vai ser o prato principal dos meus bichinhos de estimação essa noite. Eles adoram carne de vadia, trouxe duas ontem e eles ficaram loucos, sabia? — Sua voz transcendia seu sadismo. Não souberam presumir se era parte de sua personalidade natural ou se a quarentena havia deixado-o daquela forma, mas eles precisavam agir com calma.

— Vadia seu cu! Seu sexista de merda! — Mia cuspiu.

Debora rapidamente passou sua faca cravejada para a primeira pessoa atrás dela, ou seja, Stein. O rapaz tremia e Erick segurou sua mão, tentando disfarçar o movimento da magnata. O desconhecido analisou a mulher dos pés à cabeça, lambendo os lábios num gesto erótico. Mia sentiu o asco forte e virou o rosto.

— Levanta as mãos, AGORA! — Gritou. Debora assim o fez, erguendo as duas mãos no ar e movendo os dedos no ar delicadamente, quase soando como um deboche.

A Magnata das Ruas falou:

— Ok, vamos fazer uma troca. — Debora preferiu falar pausadamente.

— Gosto disso. — Ele retrucou. — O que você tem pra mim, gostosa?

— Eu sou toda sua se soltá-la.

— Debora, o que você está fazendo? — Alfa interveio.

— Deixe comigo, garanhão. — Debora disse num sussurro aveludado para o produtor. — Eu sei o que estou fazendo.

O psicopata parecia concordar com a negociação. Então, ele acenou com a cabeça para que Debora viesse até ele. A loira assim o fez, mas Demétrio segurou seu braço. Debora olhou-lhe no fundo dos olhos e soltou-se, dizendo:

— Confie em mim, estou no controle da situação, não se preocupe. — E soltou uma piscadela despretensiosa.

A palavra “controle” soou diversas vezes na mente de Alfa. Eram poucos segundos para fazê-lo cair na realidade de que estava perdido. Era a morte. Esse era o real motivo de estar tão atordoado.

— Isso, vem pra mim, gostosa. — O desconhecido repetiu, roçando a barba no rosto de Mia. A garota contorcia-se em seus braços, mas logo parava, visto que a ponta do espeto entrava ainda mais em seu pescoço.

A cena seguinte desenrolou-se num piscar de olhos. O homem largou Mia, que correu na direção do grupo e caiu no abraço apertado de Ellen, que deixou que ela se aninhasse. Erick apertou forte a mão de Stein, os dois olharam chocados para o outro lado da sala.

O homem sádico esticou os braços para agarrar Debora, mas a loira sacou uma arma do seu coldre dorsal e a mirou na direção da cabeça do desconhecido, que elevou o olhar arregalado para o cano da arma. O tiro ecoou estridente e a bala atingiu a lateral da cabeça dele brutalmente. O buraco abriu-se de imediato e o pedaço encefálico explodiu na parede num baque molhado, junto com a rajada de sangue que decolou no mesmo impacto craniano. O corpo do homem tombou inerte no chão em uma posição desconfortável, mas já caíra morto. Da cabeça deformada e detonada, uma poça cobriu grande parte do piso e do corpo.

O gruó saltou o corpo logo em seguida, saindo do mercado com pressa.

Já do lado de fora, minutos depois, enquanto corriam de volta para a fábrica, Alfa sentiu o celular vibrar na bolsa e retirou o aparelho de lá a tempo do último toque para atender.

— Alô?

— Demétrio, querido? — A voz aveludada do outro lado da linha era inconfundível.

— Madrinha? Aconteceu alguma coisa? — Perguntou o cineasta, ele notava a preocupação no tom de voz de Bárbara.

— Querido, junte sua família, amigos e me encontre amanhã nesse mesmo horário, na pequena marina desativada da cidade. Eu acho que consigo colocar vocês para fora de Cabo, antes da quarentena acabar. Vai acontecer uma coisa horrível daqui há dois dias e preciso que estejam fora de Cabo da Praga.

— Madrinha, ma-mas… Do que a senhora está falando?

— Sem muitas perguntas, Demis. Apenas faça o que estou pedindo se quer mesmo escapar da cidade, e consequentemente, da epidemia. — Bárbara falava rápido, como se precisasse desligar a qualquer momento.

— Está bem, levarei todos amanhã de madrugada até a marina desativada, mas só me responda mais uma coisa. — Ele comentou.

— Diga, querido.

— Para onde vamos ser levados?

— Vocês saberão logo mais. — A ruiva respondeu. — Fique bem, Demis.

— Você também, madrinha.

A mulher ouviu a batida da porta atrás de si e desligou.

Quando chegou ao galpão, minutos depois, Demétrio tratou de contar tudo sobre a ligação de Bárbara para os outros. Todos deveriam ir com ele, eles mereciam sair daquele inferno, assim como ele e sua família. Todos ficaram aliviados com a notíca de poderem escapar de Cabo da Praga e decidiram que deveriam se preparar para o que viria. Todos tinham coisas a fazer, antes de embarcar para fora dali.

XXXXX

Renan caminhava pela calçada, com passos apressados. Estava voltando para a casa de Valentim. Provavelmente Ísis estava com um misto de raiva e preocupação por ele ter sumido sem deixar nenhuma explicação, há dias. O problema era que Renan não achava que demoraria tanto para resolver a situação, que na verdade, já se encontrava há muito tempo.


Algumas pessoas bisbilhotavam pelas janelas, tentando ver quem era o corajoso que andava solitário pela rua, ainda mais depois da noite assustadora que haviam presenciado. Durante sua permanência com o grupo de sobreviventes, Renan conversou algumas vezes com Amanda, uma mendiga moradora de um abrigo, e ela lhe informou que os ataques que ele havia presenciado durante uma madrugada anterior era chamado de “expurgo”.


Uma senhora que arrumava algumas roupas em um varal encarou Renan por alguns segundos e então correu para dentro de casa, trancando a porta. Todos ali viviam em dias nublados, embaixo de uma espessa camada de névoa da morte e do desespero.


O cabelo bagunçado do homem era lambido pelo vento, que moldava um penteado a cada cinco minutos. Durante sua jornada até a casa de Valentim, Renan passou pelo edifício onde costumava ser o consultório da doutora Soave, mas aparentava estar fechado. Ele tentou se comunicar, bateu na porta e nos vidros das janelas, mas não obteve resposta. Não havia ninguém ali. Pelo menos, com vida.


Chegando na casa de Valentim, Renan contornou o portão escuro, passando pela caixa do correio, que estava cheia ao ponto de não caber mais nada e de algumas folhas começarem a escorregar pela abertura. Abriu a pequena portinhola e equilibrou a pilha de papéis em seus braços. Tomando cuidado para não derrubar nada, andou até a entrada da casa. Durante o percurso, deixou cair algumas cartas, mas abaixou-se para pegá-las.


Entrando na residência, foi recebido rapidamente por uma mulher loira, que segurava uma faca em suas mãos. Quando viu Renan, derrubou o utensílio no chão e correu para abraçá-lo:


— Finalmente, mon ami! – Ísis envolveu o tronco de Renan em seus braços – Meu Deus do céu, onde você esteve?


— Podemos conversar depois, Ísis? – Renan pediu – Estou exausto e preciso de um banho, e eu estou bem, garanto.


— Tudo bem. – Ísis pareceu um pouco decepcionada. Pegou a faca que estava no chão – Eu estou cozinhando, você está com fome, né?


— Estou um pouco, sim, obrigado. – Renan agradeceu, acariciando sua própria barriga – Valentim está? Peguei algumas cartas para ele na caixinha do correio.


— Ah, sim. Lá em cima, no quarto. – Ísis apontou com a faca.


Renan agradeceu novamente e começou a subir a escada, enquanto Ísis disse que voltaria para a cozinha, mas ainda acompanhava o homem com seu olhar.
Primeiramente, Renan entrou em seu quarto. Separou uma toalha limpa e uma muda nova de roupa para usar após o banho. Uma calça jeans escura, uma camiseta regata preta e uma jaqueta de couro acompanham-no até o banheiro, até serem colocadas em cima de um balcão perto da pia. Depois, o homem voltou para seu quarto, juntou a papelada e se encaminhou para o quarto de Valentim. A porta estava encostada e o dono da casa parecia conversar com alguém.


— ...Sim, sim. Meu helicóptero já está pronto para a decolagem e… - Valentim se virou e avistou Renan parado em frente a porta. Afastou um pouco o celular de seu rosto, tampando-o com a mão livre – Olá, Renan. Fico feliz que tenha voltado.


Renan abriu um pouco a porta.


— Obrigado. Eu não queria atrapalhar, só queria entregar essas cartas que achei lá no correio. – Renan depositou a papelada em uma cômoda perto da entrada e sorriu tímido para Valentim.


O ruivo agradeceu e Renan saiu, se encaminhando para o banheiro. Tirou sua camisa e a jogou no cesto de roupa suja. Parou em frente ao espelho e olhou para sua própria imagem refletida. Estava um pouco suado, resultando em sua pele brilhando mais do que deveria e ressaltando os músculos atléticos. As tatuagens que estavam visíveis davam mais vida e personalidade para seu corpo, fazendo-o lembrar de seus significados a todo momento.


Seu rosto estava um pouco sujo e com um pequeno corte na testa, obtido de algum jeito que ele não se recordava. O cabelo, bagunçado, já parecia estar na hora de cortar. Mas quem se importaria em cortar cabelo no meio de um apocalipse em quarentena?


A barba por fazer já começava a formar volume e uma expressão cansada dominava sua face. Parecia que tudo nos últimos dias estava consumindo sua energia e sua juventude. A única coisa que permanecia igual eram seus olhos azuis, ainda intensos e elétricos.


Renan retirou o restante de sua roupa, ligou o chuveiro e começou seu banho. A água quente batia contra seu corpo, deslizando por todo o restante até ser levada pelo ralo. Seus músculos começaram a relaxar e foram se esvaindo de toda tensão que carregavam por diversos dias.


Apoiou seus braços na parede da frente, inclinando-se um pouco. Agora a água batia diretamente em sua cabeça, colando seu cabelo molhado em sua testa. Renan fechou os olhos e apenas sentiu o relaxamento que o banho trazia, levando consigo todas as impurezas corporais e mentais que estavam fixadas nele.


Demétrio veio em seu pensamento, fazendo-o lembrar que deveria ser rápido. Eles não tinham muito tempo. Renan ainda precisava conversar sobre isso com Ísis e…


— Renan?! – a voz de Valentim chamou-o do lado de fora, junto com algumas batidas leve na madeira da porta.


— Sim?


— Uma das cartas que você me entregou na verdade é para você, não para mim. – Valentim falou alto o suficiente para Renan escutá-lo. O moreno desligou o chuveiro, para ouvir melhor o que o outro dizia – Olha, vou deixá-la aqui na porta, está bem? Tenho uma viagem marcada e estou atrasado.


Renan agradeceu e esticou seu braço, tateando a parede até encontrar a toalha azul que estava pendurada. Enrolou-a apressadamente em sua cintura e se encaminhou à porta. Ainda com seu corpo molhado, abriu, encontrando um pequeno envelope. Curvou-se e o pegou.


Após retirar o conteúdo, seu corpo foi tomado por uma sensação que ele nunca havia experimentado. Se tratava de um pequeno recorte de jornal. Seu rosto estava estampado na folha impressa. No anúncio, acima dos registros fotográficos, uma letra vermelha dizia: “Rapaz desaparece em passeio de barco.” Verificou a data e viu que se tratava de quase um ano atrás, no começo de dois mil e quinze.


Tentou extrair mais alguma informação, mas não encontrou nada. Virou a folha e avistou um bilhete escrito por cima das letras impressas. De forma rígida, estava escrito: “Se quiser saber sobre seu verdadeiro passado, ligue para o número abaixo às oito horas da noite”. Mais para baixo, um número telefônico encerrava o bilhete.


Renan fechou a porta do banheiro, terminou de secar-se e vestiu-se. Guardou o recorte do jornal no bolso da sua jaqueta, perto de seu peito. Saindo do banheiro, procurou Ísis na cozinha, mas acabou encontrando-a deitada no sofá da sala.


— Renan, acho que precisamos conversar… - Ísis começou, mas foi interrompida.


— Ísis, precisamos ir embora. Agora. – Renan disse.


— O quê? – ela perguntou, confusa, sentando-se no sofá.


Renan se agachou e tocou nas mãos da loira.


— Olha, eu sei que não estou fazendo sentido ultimamente, porém, te explico no caminho. Nós precisamos ir, agora. – Renan ressaltou – Eu sei que Valentim foi viajar, então ele não correrá perigo. Só, por favor, confia em mim.


Ísis encarou Renan por um momento, séria. Então, mordendo seu lábio inferior, desviou o olhar.


— É difícil dizer não para olhos azuis assim, sabia? – ela quebrou o clima, olhando para Renan, que riu em resposta – Só preciso escrever um bilhete para o Valentim, caso ele volte. Me espera lá na garagem?


— Tá, tá bem. – Renan concordou e se encaminhou para o cômodo, mas antes viu Ísis procurar uma caneta, já com um pedaço de papel em sua mão.


Renan ficou parado ao lado do Jipe estacionado na garagem. Lembrou-se do dia em que visitaram a delegacia. A imagem do delegado morto jamais sairia de sua cabeça e parecia atormentá-lo o resto da vida. Alguns minutos depois, Ísis apareceu na garagem. Havia vestido uma blusa escura e segurava as chaves do veículo.


— Dirige? – ela disse, jogando as chaves para Renan, que pegou-as no ar.


A dupla de amigos entrou dentro do veículo e em poucos segundos já se encontravam na rua. Renan agradecia imensamente por ter Ísis ao seu lado, praticamente desde que acordou nessa “nova vida”. Pensou em contar para a loira sobre o que estava no correio, mas ela já teria muito para o que digerir.

 
Mesmo sem saber como começar, Renan abriu sua boca e despejou tudo o que Demétrio havia avisado para ele e o restante do grupo. As palavras deslizavam de sua boca como uma correnteza selvagem. Ísis não dizia nada, apenas encarava o rosto do amigo, com um semblante de difícil interpretação.

XXXXX

A enorme porta dupla feita de madeira de sequoia com entalhes quadriculados do Cicciolina se abriu em rompante barulhento de forma que assustaria a qualquer pessoa que estivesse em seu hall vazio, revelando então duas pessoas que adentraram arfando com ausência de folego em seus pulmões. Mais precisamente um homem e uma mulher.

— Fecha logo essa porta. – ordenou a mulher à frente, que se debruçou em cima de uma mesa redonda derrubando as cadeiras que estavam harmoniosamente sobrepostas sob a mesma com as pernas pra cima. A moça que trajava uma roupa xadrez acompanhada de um colete de couro cor de madeira; calças jeans negras levemente surradas; e ankle boots de couro negro, esfregou suas mãos brancas sobre os seus cabelos loiros e agora terrivelmente sedosos de suor e desalinhados como um ninho de pássaro, ao mesmo tempo em que tentava de todas as formas retomar o ar para dentro de seus pulmões.

O homem que trajava roupa social de cor verde oliva, calças de tecido cetim cor marinho; sapatos mocacim negros com cadarços; e um enorme sobretudo de inverno de mesmo tom marinho com inúmeros bolsos acoplados, possivelmente um Gucci; e acompanhado de um chapéu panamá de igual tom de cor, rapidamente fechou a porta dupla de sequoia encerrando o contato do hall da casa noturna com o exterior perigoso que ambos pareciam fugir. Após esse ato, o homem também se prostrou com seu braço direito sobre a porta, e limpou seu rosto cansado e igualmente suado, com um lenço de algodão com costuras entalhadas de dourado, retirado de um dos bolsos de seu enorme sobretudo. Assim como a moça que ainda jazia sobre uma das mesas, ele também tentava retomar, o máximo possível, o oxigênio para dentro de si.

— Cada dia que passa essa cidade fica pior. – bradou a jovem loira se levantando da mesa e observando as cadeiras, todas de madeira com estofados de camurça roxa e detalhes de tom de ouro, caídas ao chão.

— Debora... – o homem então iniciou, ao menos tentou iniciar um diálogo, logo sendo interrompido pela mulher que jazia diante de si, retirando o lenço branco de algodão, agora não tão branco devido ao suor, de suas mãos e alocando de maneira cômoda em seu sobretudo Gucci.

— Não precisa falar. Os últimos dias... Tudo o que tem acontecido. Eu... Estou definitivamente ficando com medo de tudo isso. Oh droga. – a jovem então engasgou, embargada pela voz chorosa. Debora, definitivamente estava em seus limites, depois de todos os últimos acontecimentos, em especial por essa maldita lista que entrara em sua vida. Mas talvez a gota d’água desses seus pensamentos provinha do triste fim de Dona, que em sua mente acontecera por negligência dela que deveria ter ouvido o jovem Gabriel, e assim ter intervindo, evitando possivelmente a morte da médica.

— Debora, desde aquela reunião... A culpa não foi sua, não foi minha. Infelizmente está tudo marcado e não há nada que possamos fazer. – concluiu o homem com a voz embargada e igualmente cansada. O homem que já detinha mais de cinquenta anos tinha em seus olhos condensados e igualmente tristes uma carga de experiência enorme, mas igualmente pessimista sobre a vida.  Nesse exato momento a moça passou o seu rosto branco sobre sua face, possivelmente enxugando algumas lágrimas que caíram, e fitou os olhos verdes do experiente homem, o subjugando de maneira que não concordava - não dessa vez - com o que ele acabar de dizer.

— Você quer dizer que não há nada que possamos fazer? É isso mesmo Edmundo?

— Não foi isso que eu disse... – retrucou Ed na defensiva. – Eu disse que tem certas coisas que não possamos fazer. Gabriel mesmo durante a reunião, afirmou, que quando chegou, a médica já estava morta. O que devemos fazer é nos unir e tentar descobrir uma maneira de que possamos, ou ao menos, tentar sobreviver a tudo isso... Lembre-se daquela história que lhe contei.

— Que história? – questionou a mulher ainda o fitando pelos olhos. Debora, embora tenha uma sapiência e uma visão abrangente sobre o mundo, estava naturalmente cansada fisicamente, e especialmente, psicologicamente para poder se atentar em detalhes e minúcias de conversas recentes.

— Dos gêmeos. Embora a morte não goste de ser enganada, ainda se tem como escapar dela. E é nisso que você tem que se agarrar. – finalizou o homem com um breve sorriso ao tentar encher a cabeça da moça com falas de esperança, ao passo que ele tocou sutilmente em seu ombro, em um tom simbólico de confiança.

A mulher apenas meneou a cabeça parecendo compreender a mensagem de Edmundo e se virou finalmente para o hall do recinto. As mesas estavam todas organizadas em sinal de que recentemente houve uma grande faxina no lugar, com todas as cadeiras empilhadas sobre as mesas, exceto as que Debora derrubara anteriormente.

Ao fundo do suntuoso hall, uma enorme prateleira com inúmeras bebidas que iam desde Tequilas até Whisky’s e Vodkas. Nesse momento, involuntariamente a moça passou sua mão alva sobre seu braço direito que jazia coberto pela manga longa de sua camisa xadrez. No teto havia ainda o enorme lustre de cristais e pedras preciosas, marcando o centro de uma arquitetura que iniciava pelos quatro pontos do hall, formando uma enorme abóboda. Mais próximo do piso do segundo andar, lugar de exclusivo acesso para as donas do recinto ainda jaziam os suportes das gaiolas especiais, onde rapazes e moças faziam seus números para os diversos clientes que frequentavam a casa. A loira sentiu um frio em sua espinha ao lembrar-se de como ela quase morreu ao ficar dependurada na gaiola com os infectados tentando a todo custo lhe pegar...

 De repente um enorme estrondo foi ouvido à direita dos dois. Debora sabia que pelos barulhos, que se assemelhavam a panelas caindo, se tratava de alguém passando sufoco na cozinha. Instintivamente ela tentou seguir para a direção do som, mas foi impedida por Edmundo que colocou seu braço esquerdo na frente da passagem da jovem moça.

— Eu vou ver o que aconteceu lá. Você sobe as escadarias e tente encontrar a Kátia. Nos encontraremos aqui embaixo logo menos. – advertiu o experiente homem levantando seu sobretudo Gucci e retirado de seu coldre torsal uma arma calibre 32, de cor prateada com o nome Esmeralda I  gravado em seu tambor. Debora até então não havia reparado em tal arma antes, mas preferiu não proferir nenhum comentário sobre a mesma. – Você trouxe sua arma? – questionou Edmundo que já seguia na direção da cozinha.

— Trouxe. – respondeu a loira levantando o colete de couro, mostrando seu coldre torsal, com uma arma devidamente alocada, junto com uma adaga vermelha cravada de diamantes.

O ex-detetive apenas sorriu de maneira tranquila. Com uma postura militar, com a arma segurada pelas duas mãos na altura de sua face, seguiu determinado pela cozinha, quando ele foi surpreendido por um toque... Não, um tapa em sua parte traseira. Ele se virou de repente e viu Debora que recuava o fitando ao passo que mordia seus lábios de maneira provocante e piscava sensualmente para o homem. Ele apenas riu, passando a língua em seus lábios finos com um sorriso realmente malicioso em seu rosto. Por fim virou-se e seguiu para a cozinha.

XXXXX

Após passar por um pequeno labirinto de corredores (Ed realmente não se lembrava em como o Cicciolina era imenso), ele finalmente se encontrava em um corredor não muito longo, mas assim como todo o recinto era suntuoso e belo apesar da simplicidade. Havia um enorme carpete vermelho que se estendia por todo o corredor, que era devidamente enfeitado por um papel de parede tons de ouro, com desenhos de trevos. O experiente homem ruiu baixinho do gosto empregado no papel, que ia de acordo com o modo ostensivo que Debora e Kátia tomavam a vida recentemente. Ele então seguiu ainda com a arma em postos se aproximando da porta dupla que jazia ao final do corredor, havia sinais de sangue por toda a dimensão do portal, finalizando com alguns barulhos provindos do outro lado da porta que se assemelhava a panelas caindo e algo sendo rasgado, como carne. Isso fez com que o homem se preocupasse um pouco mais.

Edmundo adentrou a cozinha sorrateiramente, com sua arma Esmeralda I em mãos, e apontando para todos os lados possíveis do ambiente. Todavia, os sons estivessem bem mais audíveis no recinto, ele a priori não conseguia enxergar os responsáveis pelos sons, e no fundo gostaria de não se encontrar com eles, mesmo estando preparado psicologicamente para o pior.

O homem maduro e de olhar cansado fitou por completo toda a ambientação a que estava exposto, olhando com olhar clinico e dotado de extrema minúcia, a situação em que se encontrava. O recinto era perfeitamente quadrangular, o que faria até a pessoa com os piores dos TOC’s esboçar tamanho sorriso com a exatidão milimétrica da sala, com prateleiras cobrindo toda a extensão direita do local, e de altura um pouco acima da cabeça do homem que não tinha tanta estatura assim. Nas prateleiras haviam vários potes na parte mais próxima de onde o ex-detetive se encontrava, enquanto mais ao fundo da sala ele podia ver inúmeras panelas, devidamente alocadas em seus lugares. Aliás, panelas era o que o homem mais conseguia distinguir em todo ambiente. Tinham várias panelas na enorme pia que jazia em sua esquerda. Já ao centro, o que parecia ser uma enorme mesa com uma bancada de quartzo, Edmundo pode reconhecer como sendo um enorme fogão estilo americano, com panelas enormes de aço por toda sua extensão, e algumas, pelo aroma, Ed poderia jurara que se tratava de algum tipo de ensopado que levava alguma ave no ingrediente.

O veterano riu para si mesmo, pois ele odiava guisados de aves.

O fogão americano continha em sua base, vários armários cujas portas eram proporcionalmente entalhados em uma madeira que ele poderia jurar ser de carvalho, acompanhado de maçanetas douradas que reluzia a luz forte do teto, que iluminava completamente todo o recinto. No entorno de todo o lugar, mais especificamente as bases, acompanhavam mais armários com o mesmo tipo de madeira em suas portas, e as mesmas maçanetas reluzentes. Aliás, as bancadas que se formavam acima dos armários, eram de uma pedra espessa que lembrava o quartzo do fogão de estilo americano. O homem passou o olho no teto e vislumbrou algo que imediatamente o obrigou a se conter, possivelmente para não chamar a atenção de quem ainda faziam os barulhos que ecoavam por toda a cozinha.

O teto era igualmente quadrilátero, com vários adornos em alto relevo nos cantos dando uma suavização nos contornos bruscos do teto. Porém o que mais chamava a atenção era uma enorme pintura no teto que simulava a clássica pintura de Michelangelo na capela cistina: A Criação de Adão; porém assim como todo Cicciolina, que era baseado no mitológico Templo de Salomão na cultura judaico-cristã, a pintura no teto da cozinha era extremamente desvirtuada de sua fonte inspiradora, trazendo ainda Adão nu, sentado com o dedo em contato direto com uma mulher loura, que está nesse momento no lugar de Deus na obra original, com os seios fartos à mostra acompanhada, não dos anjinhos, mas sim de inúmeras outras mulheres ao fundo. A pintura simbolizava precisamente o que o Cicciolina era: um local de culto aos prazeres da carne, prazeres que Ed jamais negou; ele sempre adorou. A dúvida na cabeça do veterano permeou sobre o fato dessa pintura, sugestiva, estar na cozinha, e não na abóboda do hall de entrada, entretanto, seus devaneios foram interrompidos pelos sons que ficavam ainda mais audíveis, provindos do canto esquerdo da cozinha.

Sons de carne sendo rasgada e mastigada.

O ex-detetive rapidamente se recompôs e cautelosamente andou alinhado com o fogão americano, até se virar e deparar com uma cena que lhe despertou inúmeros sentimentos mistos.

Eram duas mulheres; uma ruiva de pele alva; e outra uma mulata com cabelos cacheados e volumosos, que jaziam ali, agachadas. E no meio delas, tinha uma terceira, morta, com seu abdômen rasgado com os órgãos expostos para fora, parte das tripas inclusive estavam nas mãos das outras duas, envolta em uma enorme poça de sangue. Vendo rapidamente, Ed constatou que não se tratava de ninguém que ele conhecia, mas ainda sim, sentiu pena dessas garotas que ali estavam se banqueteando do corpo da outra.

 Elas trajavam tangas com tiras de lantejoulas dependuras em cores que alternavam do dourado ao vermelho e eram extremamente minúsculos, mostrando praticamente toda a bunda delas e parte de suas vaginas. O veterano, com seus lábios finos, dera mais um sorriso safado, daqueles que ele sempre dá quando fica ligeiramente excitado, se lembrando de quando Debora usou uma dessas tangas, em uma fantasia romana feita na lavanderia de sua mansão.

Mas rapidamente ele se conteve, ao ver a situação em que estava.

As garotas não trajavam nada que tampassem os seus seios fartos, a não ser um pequeno diadema preso em seus cabelos arrumados. Seus corpos estavam cobertos do sangue e de pedaços de órgãos internos da terceira mulher; pele bronzeada como o cobre; cabelos longos como e soturnos como a noite, Ed vendo de longe acreditava se tratar de uma descendente indígena. O homem cansado da cena tomou postura assoviando, e então, chamando a atenção das infectadas para si.

As mulheres viraram rapidamente suas cabeças, mostrando suas feições raivosas, enquanto mastigavam pedaços de intestino em suas bocas, sem digerir de fato. Os olhos de ambas estavam completamente avermelhados e com veias dilatadas ao redor dos mesmos. Elas então berraram, cuspindo tudo o que estava em suas bocas, já se preparando para levantarem e partir para cima do veterano que ainda sorria para elas.

— Se vocês estivessem em uma situação melhor, eu poderia ceder ao convite de vocês. – desdenhou o ex-detetive, ainda com um sorriso sádico em seu rosto. Ele rapidamente girou a Esmeralda I em 360º em torno de seu próprio eixo, com apenas o seu dedo indicador esquerdo, fazendo a arma parar apontando para a ruiva que já estava se preparando para pular em cima do homem. Ele rapidamente apertou o gatilho, e com precisão ímpar, acertou a garota no meio de suas têmporas, fazendo-a cair para trás, em cima da índia, inerte.

A segunda mulher pulou raivosamente para cima de Edmundo, que ainda visualizava a ruiva que caíra de pernas abertas, mostrando toda a sua genitália. Sem prestar tanta atenção na infectada, o homem mudou a pontaria da arma prateada, e atirou acertando o globo ocular esquerdo da mulata, que girou em torno de si mesma e caiu, igualmente inerte, em cima de seu próprio braço direito. O sangue da mulher espirrou manchando toda a parede azul da cozinha, de vermelho e pedaços amarelos de massa encefálica. Ed por fim suspirou aliviado, porém, com a arma ainda em mãos.

— Esse lugar aparentemente foi todo tomado. Debora está em perigo. – ele então se virou e voltou para a porta dupla de saída da cozinha.

XXXXX

A loira finalmente chegara ao escritório de Kátia. O lugar que antes parecia uma pequena redoma de vidro com uma mesa de escritório ao centro, um belíssimo lustre na abóboda do teto; este cravado de pedras preciosas como rubis, âmbar, e esmeraldas; as cores favoritas de Kátia. Também composto de várias pinturas nas paredes circulares e uma pequena estante com armários bem definidos em divisões; taças; bebidas; as inferiores ocupavam livros, e em uma delas; os documentos de funcionamento da casa.

Mas o lugar estava completamente diferente do que Debora se lembrava de outrora. Tudo parecia revirado, a mesa derrubada, com o lustre estirado ao chão. A estante estava ao chão, sendo possível ver inúmeros vidros quebrados, provenientes das bebidas, manchando o tapete de camurça rosa choque que sua amiga tanto prezava. A loira então adentrou ao recinto, com uma mão alocada devidamente no seu coldre torsal, preparada para reagir caso fosse pega de surpresa, e com um pequeno passo seguro, ela clamou por Kátia.

— Kátia? Você está aí? – perguntou circulando pela mesa derrubada ao centro verificando se alguém ali estava. Para o seu infortúnio, não tinha ninguém.

A loira então recuou de costas de forma cautelosa para saída, quando por pressentimento ela se virou se deparando com o cano de uma arma apontada em sua face. Ela teve um misto de sentimentos, que variavam da surpresa, para raiva e alívio, ao ver que a pessoa que segurava a arma era Kátia Flávia, a Godiva do Irajá.

— Debora. Mas que susto! – respondeu a anfitriã recuando seu revólver, um modelo Colt clássico norte-americano, que ela importara de meios ilegais. Kátia gostava muito daquela arma, pois lhe remetia aos velhos spaguethis western que ela tanto adora. Inclusive ela esboçou um enorme sorriso ao reparar nas vestimentas country de sua amiga, além do fato que ela parecia sã e muito bem.

— Kátia... Oh meu... – retribuiu a loira que acudiu Kátia que dera uma bambeada quase desfalecendo ao chão. A loiraça do Irajá vestia uma camisola rendada de cetim cor de salmão, e havia vários cortes em toda a extensão de seu corpo onde saiam pequenos filetes de sangue, incluindo um corte próximo à boca onde era visível um filete rubro. – Você foi...

— Não ainda... Querida. – respondeu repentinamente se desvencilhando dos braços de Debora e tentando ficar de pé, se apoiando na parede que tinha papéis de parede de cor amarelo vivo, o que fazia a sala parecer sempre de dia, mesmo à noite. Ela então limpou o sangue que chegava a seus lábios, e fitou os olhos verdes, e confusos de sua amiga, esboçando um sorriso por fim. – Já ouviu falar que vaso ruim não quebra? Não estou infectada. Não ainda...

— O que aconteceu então? – perguntou Debora disposta a ajuda-la, mas foi impedida por Kátia que jazia escorada na parede cor de gema de ovo.

— O Cicciolina não é mais seguro. Dias desses parou uma van na frente do estabelecimento, que lançou várias pessoas em nossa porta... Na verdade vários demônios desgraçados do inferno.

— Oh céus. – interrompeu Debora levando as mãos à boca.

— Bem... Ingridiane inteligentemente... – Debora pode sentir o tom da ironia na fala de Kátia de maneira escancarada. – Ela com pena quase foi até os infelizes para tentar ajudá-los, mas eu tive que intervir... Eu... Eu nunca imaginei que chegaríamos a isso. – prosseguiu agora entrando em prantos.

Debora, nunca tinha visto essa face de Kátia, sempre tendo que admirar uma mulher forte e com bastante fibra. Mas ela imaginava pelo que sua amiga estava passando, pois ela mesma não estava se reconhecendo atualmente, se vendo como neurótica, negligente, e por que não fria. Tudo passava na cabeça de Debora enquanto Kátia falava sobre o seu drama, e no fundo o que ela queria era sair daquele poço lúgubre, aquele lugar de tristezas que Cabo da Praga havia se tornado, e atualmente ela enxergava, porque não, de maneira egoísta; Ed como sendo sua única lanterna, única luz, para iluminar aquele caminho soturno em que se encontrava.

— Mas por sorte conseguimos resistir às investidas daquelas criaturas, colocamos várias placas de proteção nas entradas e nas janelas. Debora nós nos privamos da própria liberdade... Enfim. Essa madrugada eles conseguiram arrombar os fundos e estamos tentando sobreviver a todo custo. – a mulher então levou sua mão pálida até as maçãs de seu rosto que estava enrubescido e levemente úmido pelas lágrimas.

— Nós não temos essa liberdade desde quando nos isolaram do resto do mundo, Kátia. – interrompeu a parceira de Edmundo. – Éramos pássaros que cantávamos livres na natureza, lembra-se daqueles tempos? – Kátia Flávia apenas meneou a cabeça concordando com a fala da amiga. – Hoje somos dois pássaros feridos em uma gaiola amiga. O que temos que fazer é tentar sobreviver. Por isso Ed e eu viemos te buscar...

— Ele está com você? – a moça questionou surpresa e igualmente esperançosa.

— Viemos te buscar, e buscar as meninas... Mas eu não encontrei ninguém até agora.

— E é melhor que você não tenha encontrado, todos sucumbiram ao vírus e aos ataques daqueles demônios que invadiram o Cicciolina. Acredito que sou a única ainda viva aqui, Debora. – a loira então notou que conforme a Godiva do Irajá falava, ela levava sua mão esquerda inconscientemente ao tornozelo. A advogada inclusive pode notar que o mesmo estava completamente inchado, o que poderia indicar uma torção ou até quebra na pior das hipóteses. Kátia precisava sair dali urgentemente.

— Seu tornozelo... O que aconteceu? – questionou a loira não querendo se aprofundar tanto, ao mesmo tempo em que ajudava a sua amiga a se manter de pé.

— Estava em minha suíte quando as meninas adentraram de repente. – respondia Kátia, enquanto, auxiliada por Debora, ambas atravessavam o corredor do segundo andar em direção ao hall do casarão. – Eu pude ver em seus olhos a falta de humanidade, a raiva, o caos. Por sorte eu tinha essa Colt que guardo comigo em minha cabeceira... Mas ainda sim, eu não consegui evitar que eles avançassem para cima de mim, e durante a minha fuga eu acabei caindo.

— Entendo... – respondeu a loira quando as duas viravam o corredor em L já se aproximando do hall da mansão.

Debora e Kátia seguiam unidas, com uma amparando a outra ao passo que avançavam o corredor ornamentado com inúmeros móveis de luxo como mesinhas de madeira de mogno entalhadas com detalhes de prata, poltronas que combinavam com as pequenas mesas nas paredes, cujo estofado era azul turquesa, tal qual o carpete camurça que se estendia do segundo piso do hall, até a sala de trabalho da loiraça ao final do corredor. O corredor também era repleto de portas de mogno que combinavam com os móveis, ornamentados de vasos chineses de jade. Debora sempre teve orgulho de como o Cicciolina era um lugar luxuoso e fazia jus ao tamanho de sua grandeza, jus ao seu trabalho. Mas por conta de culpados que ela não sabia quem eram, tudo o que ela construiu estava ruindo em sua cabeça, apenas sobrando um pilar invisível chamado: passado.

Quando se aproximaram do Hall, as mulheres foram surpreendidas por uma das últimas portas de mogno do corredor, que se abriu em um rompante, quase derrubando as duas ao chão. Kátia sacou sua colt e impulsivamente atirou sem ver, quase acertando o rosto de Debora que dera um gritinho de susto com o ato. O tiro passou rente a sua cabeça e acabou acertando a parede mais acima. Da porta aberta apareceram três garotas, todas brancas como a neve, alternando os tons do cabelo sendo duas delas morenas e a terceira bastante loira. Elas jaziam seminuas com tangas de tiras de lantejoulas alternando nas cores douradas e vermelhas quase mostrando toda a genitália. Os seios das mulheres, todos fartos, estavam totalmente à mostra balançando enquanto as três tentavam avançar em conjunto pelo pequeno portal que se abrira no abrir repentino da porta.

Debora encarava a situação, que a priori poderia até parecer cômica, com os olhos verdes arregalados, pois ela conhecia muito bem cada uma daquelas garotas que babavam, os olhos vermelhos envoltos de raiva e bestialidade, e de forma animalesca não conseguiam avançar ainda para cima das anfitriãs que jaziam ao chão escoradas na parede de tom esverdeado. De repente, as três infectadas cederam, caindo como uma pilha de dominós quase em cima da perna de Kátia, que recuou instintivamente.

A primeira mulher, a loira de olhos que eram azuis, babava insanamente e no chão agarrou o tornozelo inchado de Kátia, que havia recuado sua perna anteriormente, apertando com toda força que ela tinha e fazendo a loiraça urrar de tamanha dor. Debora sem nem pensar duas vezes sacou sua faca rubra cravejadas de diamantes, e fincou no pulso da infectada que soltou de imediatamente o tornozelo de Kátia. A sócia de Debora ainda lacrimejava com tanta dor sentida de seu tornozelo, quando foi agarrada por sua amiga que já se encontrava de pé, e foi auxiliada pela mesma a se levantar, mesmo ela não conseguindo mais por o pé no chão.

— Droga! – bravejou Debora quase carregando Kátia para fora do corredor, enquanto as três infectadas se levantavam, com a boca espumando baba e ódio. Enquanto a ricaça carregava sua sócia, a Godiva do Irajá sacou a sua Colt e tentava a todo custo impedir o avanço de suas garotas, que haviam cedido suas sanidades ao vírus.

No hall Edmundo via a cena de Debora segurando Kátia, na sacada do segundo piso, enquanto três infectadas, vestidas de maneira extremamente similar as da cozinha, avançavam raivosas para cima de sua amada e de sua amiga. Com sua arma; a Esmeralda I ainda em mão, ele tentava de todas as maneiras mirar nas mulheres que prosseguiam em sua sede de sangue contra suas antigas patroas. Todavia, tudo parecia piorar quando um novo estalo aconteceu. A porta oposta de onde Debora e Kátia vieram se abriu em um enorme estrondo, revelando a seguir mais cinco infectados; três mulheres negras e dois homens musculosos que vestiam uma micro tanga rosa avançavam cambaleando para as duas, que ainda recuavam das outras três.

Debora arrastava Kátia Flávia que atirava, todavia ela errava os tiros nas mulheres que já estavam quase lhe alcançando. Quando de repente elas foram surpreendidas por um dos garotos que trabalhavam na casa. Esse, vestido de uma tanga rosa que custava para esconder suas partes intimas, agarrara Debora pelo braço e já estava a ponto de mordê-la.

Ela tentou em vão gritar, e como Kátia lhe estava tomando todas as ações possíveis, a loira não poderia sacar sua arma de seu coldre torçal, apenas esperando o pior. Foi então por sorte ou trama do destino, que ela pode ouvir alguns disparos próximos. Edmundo subia as escadas com toda pressa, atirando e acertando as infectadas seminuas que impediam sua passagem. O homem então mirou com sua arma prateada, acertando o peito do homem musculoso que recuou bufando. A cada decorrer do tempo em que o ex-detetive convivia com os infectados, mais ele ficava impressionado com a resistência à dor que as criaturas adquiriram após perderem sua sanidade.

Foi quando o segundo homem com aparência de modelo saltou em cima das anfitriãs. Debora acabou sendo empurrada por Kátia, caindo ao chão se livrando da investida do brutamonte, ao passo que, sua amiga, confidente, sua segunda mãe, fora atingida em cheio pelo infectado que caíra em seu pescoço a derrubando da sacada, e ambos despencaram para o primeiro andar. Os demais infectados que vinham logo atrás tentaram investir para cima de Debora que gritava aos prantos pelo ocorrido. Mas ela acabou sendo salva por Ed que alvejava os selvagens sem piedade.

Edmundo vendo que os infectados que os circundavam caíram, ajudou Debora a se levantar. Porém a moça de cabelos louros se desvencilhou de seus braços, e prostrou a correr escadaria abaixo. Para Debora a única coisa que importava era Kátia Flávia. No hall ela pode avistar o infectado musculoso ao chão com as pernas das cadeiras atravessadas em seu torso, mas ela não conseguia ver Kátia em lugar nenhum. A única coisa que ela pensava, queria, lutava; era em procurar pela confidente, mas para sua surpresa ela fora impedida por Edmundo que a segurou fortemente pelo braço.

— Me solta! – bradou a loira aos prantos enquanto o homem com seus olhos cansados e a tez séria, balançava a cabeça em sentido de repreensão.

— Debora se concentre! Não podemos mais fazer nada pela Kátia. Olha ali. – e então ele apontou para frente.

O hall estava sendo tomado por vários infectados que vinham da porta dos fundos, dentre eles mais meretrizes, garotos da casa e também mendigos e outros tipos de pessoas. O homem supôs se tratar de clientes, mas Debora sabia que a casa não tinha costumes de atender mendigos. De relance, se lembrou de que Kátia havia lhe informado minutos antes de seu sacrifício, que o bloqueio que fora feito no Cicciolina fora quebrado, e concluiu que eles provavelmente vinham dos fundos da mansão.

Debora ainda estava desconcertada e tentou mais uma vez avançar sobre o hall apenas para procurar por sua amiga, principalmente após ela ouvir gritos de Kátia que ecoavam por todo o recinto. Edmundo a impediu novamente lhe aplicando uma coronhada em sua nuca, fazendo com que a Dama das Ruas, caísse desfalecida em desmaio de dor e pesadelos. Antes que eles fossem atacados pelos infectados que impregnavam o ambiente de horror e perigo, ele conseguiu ao menos tirar a amada do templo destruído.

XXXXX

01 de Fevereiro de 2016

Porto de Cabo da Praga — Madrugada

O vento dançava pela marina abandonada de Cabo da Praga, enquanto desenhava as poucas embarcações atracadas no lugar. O mar se estendia como um manto escuro embaixo do iate simples atracado próximo do píer. A embarcação era bastante discreta, de modo que conseguia se misturar bem entre as demais, assim como Bárbara queria. Ninguém poderia suspeitar de que aquele iate levaria sobreviventes da epidemia. A quarentena acabaria no dia seguinte e Anúbis tomaria suas próprias providências. Providências essas que deixaram a viróloga em pânico.

A ruiva precisou da ajuda de pessoas de confiança, principalmente seus amigos da guarda costeira da cidade. Então, foi fácil arrumar o iate e três tripulantes que levassem o grupo de sobreviventes para fora de Cabo.

— E então, para onde vamos? — Demétrio perguntou, colocando as últimas bagagens para dentro da embarcação. Eram duas mochilas com suprimentos e algumas roupas que pegara em sua antiga casa, horas antes.

Bárbara estava bem na sua frente, trajando um elegante blazer cinza.

A maioria dos sobreviventes já haviam entrado, com exceção de Demétrio, Michelle, Ester e Amanda que não havia chegado ainda. A atriz e a garotinha permaneciam ao lado do homem, no píer. Bárbara encarou os três séria e retirou um papel de uma pasta em suas mãos. Era uma fotografia. Ela deu-a para o loiro, que verificou do que se tratava.

Era uma foto de Marjorie, a mulher do hangar, que foi sequestrada pela Corporação Pyramid.

— Essa mulher está no lugar para onde eu vou mandar vocês. Preciso que encontrem-na e cuidem dela, até eu chegar.

— Eu conheço ela. — Demétrio respondeu surpreso.

— Presumo que saiba que ela já trabalhou na Pyramid. — Bárbara pôs uma mecha do cabelo para detrás da orelha.

— Sim, ela me falou isso. Mas por que a corporação estava atrás dela?

— Eu soube disso pouco depois de terem capturado-a, por altos. Alguém de dentro da Pyramid não quer que encontremos Marjorie, eles querem eliminá-la por motivos que não posso lhe contar agora. Só preciso que encontrem-na e protejam-na até que eu chegue em dois dias, provavelmente. — Bárbara olhou para os lados. — Vocês podem fazer isso? Podem achar Marjorie e protegê-la?

Mesmo receoso, Demétrio acenou positivamente com a cabeça.

A viróloga ficou satisfeita com a resposta e abraçou o afilhado de maneira apertada. Ele estranhou o gesto, vide que sua madrinha não era uma pessoa de abraçar facilmente. Pareceu uma despedida, mas ele afastou o pensamento, isso lhe fazia lembrar que ele estava na mira da morte.

— Obrigado pelo que está fazendo por nós, Barbie. — O produtor sorriu.

— É o mínimo que eu poderia fazer, querido. Vocês são minha família também, esqueceu? Agora vão, que alguém pode chegar a qualquer momento. Nesse horário, alguns militares vasculham o local a procura de pessoas que buscam fugir. — Bárbara beijou a testa do loiro e o rosto da pequena Ester. — Cuide do seu pai por mim, Esterzinha.

A garota assentiu e sorriu docemente.

— Vem Ester! — Alfinn chamou da porta do iate.

— Nós precisamos ir, Alfa, o iate vai sair. — Michelle chamou, quando viu que o homem estava perdido em pensamentos, vendo Bárbara entrar em um carro e ir embora.

Então, acompanhado de Michelle e Ester, os três entraram no iate. Parecia que não faltava ninguém além deles. Porém, faltava Amanda, a pobre garota não chegou a tempo. Os tênis desgastados e céleres percorriam a passarela de madeira, afim de chegar à ponta do píer. A garota berrava e sacudia os braços, mas a embarcação estava longe demais para que pudesse notá-la. E gradativamente desapareceu na neblina. Amanda apenas sentou no píer e tombou a cabeça sobre os joelhos. Caralho, esqueceram de mim!

— O que faz aqui, garota? — A voz gutural assustou a negra, que ergueu-se em uma velocidade assustadora, pronta para correr, mas estava encurralada.

Três militares, empunhando armas pesadas, cercavam-na e esperavam uma explicação coerente para uma garota de sua idade estar na marina abandonada no meio da madrugada.

XXXXX

Horas Depois

Assim que abriu os olhos, Renan sentiu o brilho do sol queimar e encandear sua visão. O homem fechou-os novamente, e levantou o corpo, inclinando-o para frente, afim de tentar acostumar-se com o brilho da manhã cegando. Seus músculos doíam imensamente, e sua cabeça parecia ter sido pisoteada por uma multidão. Ele abriu os olhos mais uma vez, para visualizar o tecido azul marinho que se estendia por toda a faixa da praia. PRAIA?

Renan não fazia ideia de onde estava, mas a julgar pela areia embaixo de si e pelo mar a sua frente, diria que estava em uma praia. As diversas plantas e árvores e outros tipos de vegetações atrás dele, só reforçaram a teoria. Ao longo da faixa de areia e podia ver mais corpos jogados. Ele olhou para seu corpo, parte de sua blusa estava rasgada e molhada. Sua memória era pior quando ele tentava forçadamente lembrar de algum fato, e era isso que ele fazia no momento, para lembrar-se do que aconteceu com ele e os demais depois que entraram no iate. Porém, as lembranças não vinham.

O visionário levantou da areia e andou rapidamente até o corpo mais próximo, sua cabeça ainda doía. Ele constatou ser Alisson. A morena abriu os olhos e assustou-se ao ver Renan olhando para ela. Recuperada ela olhou para si mesma, verificando se estava tudo bem com seu corpo.

— Você lembra do que aconteceu? — Renan perguntou, caminhando até o próximo corpo.

Alisson massageou as têmporas e tirou um pouco da areia de seu cabelo.

— Lembro do iate afundando e eu engolindo muita água, ainda sinto meus pulmões arderem. — Ela comentou, seguindo até outro corpo.

Alisson acordou Edmundo e Debora. O casal estava caído junto na areia, quase de mãos dadas. Ela estava com boa parte das vestes rasgadas, enquanto Ed tinha apenas arranhões leves nos braços. O homem sentou na areia e tossiu. Debora reclamou do cabelo molhado e emaranhado, além de aparentar estar muito tonta. A loira apoiou-se na tatuada e olhou ao redor. Viu Renan vir até eles com Alfa ao seu lado.

O loiro acenou para o grupo e inclinou a cabeça para o lado, sentindo o pescoço estalar. Olhou em volta, queria saber onde estava e como foram parar ali. Ele não lembrava de ver nenhuma ilha próxima de onde o iate naufragou. E seria impossível todos chegarem até lá com vida só vindo pela água. Tudo estranha estranho demais.

— Que bom que estão todos bem. — Uma voz familiar soou atrás do grupo de sobreviventes.

Eram Ellen, Stein e a pequena Ester, que segurava na mão do grandão. Os irmãos e a garotinha sorriam de lado. Ester correu até o pai, para lhe dar um abraço.

— Acordamos há alguns minutos com o grito da menina. Ela chamava pelo pai e fomos até o lugar onde ela estava. — Stein explicou. — Conseguimos trazê-la bem.

— Obrigado. — Alfa disse e abraçou a menina mais uma vez, que deitou a cabeça em seu ombro e suspirou aliviada.

Os últimos corpos a levantarem com a ajuda de Renan foram Sabrina e Fred. A ocultista e o adolescente observaram o grupo e se aproximaram, ainda muito confusos e sem entenderam nada do que estava acontecendo. Fred retirava água do ouvido. Ele encarou o grupo, procurando o irmão caçula com o olhar, mas não o viu.

— Onde está o Alfinn? — Indagou, mas ninguém soube responder.

— Onde diabos estamos? — Sabrina perguntou desorientada. Retirou um quilo de areia de dentro do vestido preto e um pouco de algas marinhas do cabelo.

— Essa é uma pergunta que todos nós estamos nos fazendo desde que acordamos. — Renan respondeu, olhando ao redor.

Uma floresta atrás e um oceano na frente. Eles estavam nitidamente presos naquele lugar, sem chances de saírem.

— E agora, o que faremos? — Stein perguntou.

— Explorar! — Ellen respondeu ironicamente o irmão, erguendo os braços numa falsa alegria.

— Isso, vamos procurar os outros. Se nós viemos parar aqui, eles também pode ter vindo. — Alfa retrucou e viu Edmundo concordando. — Tenho uma atriz pra encontrar.

— E eu, o Thito. — Sabrina resmungou, por fim.

XXXXX

Após alguns minutos de caminhada dentro da mata com árvores de copas altas, que escondiam alguns raios de sol e vegetações quase nunca vistas por nenhum deles, o grupo se deparou com uma construção. Eles não esperavam encontrar algo como aquele no meio da floresta de uma ilha aparentemente inabitada e deserta.

Grandes blocos de concreto formavam a base, enquanto colunas e paredes de pedra se erguiam até onde os olhos não conseguiam alcançar, parando apenas ao entrar em contato com o teto de aço branco. Cabos serpenteavam pelo espaço em linha reta, eles desciam em determinado ponto, passando por caixas de forças e algumas lâmpadas. As caixas de transporte sustentadas pelos cabos estavam paradas sobre uma fixa que julgavam-se serem trilho. A estação do teleférico estava aparentemente deserta.

O grupo de dez sobreviventes entrou na estação e caminhou um pouco, até se verem diante de um dos teleféricos. A caixa branca com vidros deveria ter uns dois metros de altura, sustentada por uma coluna mecânica, que fazia o objeto permanecer nos cabos que o fariam subir montanha acima. O teleférico estava parado, enquanto outro acabava de chegar e estacionar dentro da estação.

— Está funcionando, de fato. — Edmundo constatou. — Isso significa civilização.

— A julgar pelo teleférico bastante moderno, creio que no alto da montanha a civilização é avançada e alto nível o suficiente. — Renan comentou, apoiando-se próximo a um mapa na parede.

Sabrina e Ellen se aproximaram do painel e começaram a analisa-lo.

— É um mapa da ilha e estamos bem aqui! — Ellen apontou para a imagem. — No ponto vermelho.

— Vejam, é o logo da Corporação Pyramid. — Demétrio chamou a atenção do grupo ao mostrar o logotipo da corporação estampado na lateral do Cable Car.

— Isso quer dizer que estamos em território pertencente à corporação. — Debora concluiu. — É um grande problema.

— Ou a solução que buscamos. — Alfa completou. — Assim como disse no iate para vocês. Bárbara, sócia da corporação disse que o lugar para o qual ela iria nos levar era seguro e era onde encontraríamos Marjorie.

— E Amélia, onde quer que elas estejam. — Debora retrucou.

— Isso. — Demétrio confirmou. — Então, é coerente que ela tenha nos mandado para território da corporação. A Pyramid trouxe Marjorie para essa ilha, justamente porque pertence a ela. Aposto que ela está em algum lugar no alto da montanha. — Explicou o loiro.

— Se é lá que encontraremos ela, a primeira coisa que faremos agora é subir a montanha. — Edmundo falou, tocando os bolsos e a calça, sem sinal algum de seu coldre. Ele estava desarmado.

Debora estava feliz por ver o homem finalmente disposto a ajudar Marjorie.

— Vamos se separar em dois teleféricos. — Alfa propôs. — Edmundo leva os irmãos, Debora e Fred. Minha filha, Alisson, Renan e Sabrina vão comigo no segundo.

— Por mim tudo bem. — Ed assentiu.

Ninguém mais fez nenhuma objeção, então o primeiro grupo entrou no primeiro teleférico, que logo fechou suas portas automaticamente. Passaram a ouvir o barulho da caixa de ferro ligando. As luzes dentro do Cable Car ligaram e eles sentaram nos assentos. De dentro do teleférico, Edmundo acenou para Alfa que retribuiu com um olhar otimista. O transporte passou a subir gradativamente.

Renan aproximou-se de Alfa e tocou seu ombro.

— Vai ficar tudo bem, Demétrio, você vai ver. Ninguém mais precisa morrer, nós estamos juntos nessa e vamos até o final. — Os olhos de Renan paralisaram Alfa, ele não entendia a sensação de frenezi causada pelo contato visual com o visionário, mas o arrepio que veio logo em seguida o deixou bem desconfortável.

O Cable Car em que o grupo acabara de embarcar acabou parando na subida. Ninguém entendeu nada e ergueram-se para olharem da janela. Ellen bateu no vidro, gritando:

— O que aconteceu? — Mas desistiu, visto que ninguém a ouviria.

O grupo que continuara na estação, pronto para embarcar no segundo teleférico se entreolhou completamente confusos. Demétrio então olhou para a sala de controle que ficava no centro da estação. Era rodeada de vidraças e haviam vários computadores e painéis. Algo havia caído lá dentro. O loiro então, entrou para verificar qual a fonte do problema.

Ester observava o Cable Car parado no meio do percurso e os demais sobreviventes lá dentro sacudiam os braços e falavam coisas ininteligíveis. Sabrina aproximou-se dela e também olhou para o grupo no teleférico.

— O que será que eles estão tentando dizer? — A ocultista abaixou-se e perguntou para a garota. Então, as duas foram ao chão em questão de segundos, sem explicações.

Sabrina e Ester tombaram desacordadas num baque mútuo. Alisson viu o que ouve e correu na direção delas. Ambas tinham filetes de sangue escorregando do nariz. A tatuada não sabia o que acabara de acontecer. Olhou para o primeiro Cable Car e viu quando os sobreviventes acenaram, pedindo que ela olhasse para trás. Porém, Alisson olhou por cima do ombro e não viu nada além de Demétrio e Renan conversando dentro da sala de controle.

— É um copo de café. Bateu nesse botão que liga o teleférico. — Renan apontou para o painel. Ambos estavam distraídos quanto ao que se desenrolava do lado de fora.

— Isso significa que tinha alguém aqui agora há pouco e nos viu chegar. — Demétrio concluiu. — Estávamos sendo observados esse tempo todo.

Assim que acabou sua fala, Alfa avistou Renan cair sentado na cadeira giratória dentro da sala de vidro e tombar a cabeça para trás. Começou a sangrar incessantemente pelas narinas. Ele começou a debater-se. Demétrio recuou e viu a fumaça negra surgir do chão. Ele arregalou os olhos quando a figura negra se formou diante dele. Era a Mulher de Preto, a pessoa que o seguira todo este tempo. E-ela acabou de brotar do chão? MAS QUE PORRA É ESSA?!

Demétrio não esperou e empurrou a figura que o puxou de volta para perto dela sem sequer encostar em seu corpo.

— Chegou sua hora, meu filho. — A voz sussurrou.

— Filho? — A voz de Alfa estava trêmula. Ele suava frio e estava começando a ficar tonto.

— Isso. Hermes sofreria tanto vendo a cena seguinte, mas está muito ocupado engolindo terra a sete palmos. — A voz parecia vir se uma senhora de mais de setenta anos. — Seu pai não está aqui para ver a sua maldição se concretizar. Ele escolheu isso, ele tirou você de mim covardemente!

Foi aí que a figura tocou os dedos engelhados e esqueléticos contra o véu negro e o puxou de uma única vez, poupando Demétrio de maior aflição. O rosto embaixo do véu, ao contrário do que aparentava, era bastante jovem. Os cabelos eram ruivos e o rosto sereno transmitia paz. Porém, os olhos leitosos e cegos continuavam a encarar o homem, que gritou.

— VOCÊ NÃO É MINHA MÃE!

— Oh, querido. Eu sinto muito pelos minutos seguintes, mas seu pai lhe deu esse destino, e logo depois, o Oráculo por ter tirado você daquele túnel. A vida pertence à morte e ela pode tirá-lo deste mundo quando quiser e como quiser. Até o inferno, meu pequeno Demétrio...

A figura desapareceu no ar, num abraço que envolveu Alfa em uma completa penumbra. O produtor estava paralisado, não sabia como reagir ao que acabara de acontecer. Quando mais novo, ele tinha vários sonhos envolvendo a mesma mulher do véu negro, e ela dizia a mesma coisa. Demétrio sempre tivera prenúncios de seu próprios passado e de seu próprio futuro. Porque Demétrio morria em todos estes sonhos, logo depois da frase da mulher de preto. Logo depois das frases de sua mãe.

Abigail era o nome dela... Abigail era o nome que ela repetia nos sonhos... Minha mãe se chamava Abigail?

O mundo de Alfa parou. Ele olhou para o lado e em um painel eletrônico acima dos computadores ele pode ver luzes vermelhas oscilando. Nelas estava mostrando a palavra “controle”. A palavra de led piscou mais duas vezes e apagou na terceira. O vento frio invadiu a sala de controles e o loiro olhou para frente, a tempo de ver Alisson correndo na sua direção. O segundo Cable Car começou a subir gradativamente, assim como o primeiro. Renan abriu os olhos e levou o olhar na mesma direção do produtor. Vendo o que aconteceria, Renan segurou os braços de Alfa e o puxou para fora dali, mas o loiro se negou.

Quando a luz parece se desviar
Nosso sangue carece de um pouco de ar
Não encontramos nada pra segurar
Me resta gritar

— Acabou pra mim, Renan. Não tem como fugir da morte.

— Você não pode desistir, Alfa! Eu não vou deixar! — Renan tentou puxá-lo, mas Demétrio oferecia resistência.

Repentinamente o produtor começou a chorar desolado.

— Eu não queria que fosse assim. Eu não queria ter saído daquele túnel, eu preferia ter sentido aquela dor, do que viver para ter todos meus pedaços arrancados! Minha esposa, meu irmão... Ester perdoa o papai por não ter conseguido...

Chegou a hora de ser
Maior que as muralhas
Tentarão me vencer
Em vão

— Pai? — Ester sentou no chão, recobrando a consciência e olhou para a cabine de controle. — Pai!

Os olhos de Demétrio bateram com os de sua filha e seu coração se despedaçou. Sua filha precisava dele. Ele era tudo que ela tinha, ele não poderia ser tão covarde de eixar seu bem mais preciso à mercê dos perigos do mundo. Da morte. Seu descontrole emocional não poderia deixar que ele fosse embora e deixasse tudo para trás. Todas as alegrias, todos os momentos bons, as risadas, os amigos. Sua família, Alisson, Natasha, Max, Renan... No último segundo, ele deixou que o visionário conduzisse-o para a saída da sala. Os dois estavam prestes a sair.

 

E quando a noite teimar em prosseguir
A luz do sol não queimar, nem se faz sentir
Qualquer lugar parece melhor que aqui
Eu percebi

Quando aconteceu.

— ALFA!!! — Alisson gritou.

Os cabos do segundo Cable Car começaram a tremer e um deles não resistiu. O espesso cabo desprendeu-se do mecanismo e decolou, rasgando o ar violentamente em um zunido angustiante. Com a velocidade em que estava, o cabo passou acima de Sabrina, Alisson e Ester, até encontrar a cabine.

Renan segurou o braço de Alfa e saltou para fora da cabine no último segundo. Mas o braço escorregou de sua mão e ele viu Demétrio parar desorientado e assustado.

O cabo fez um barulho estridente ao cortar e explodir a vidraça em milhões de cacos. O cabo seguiu em uma linha reta, atingindo a cabeça de Demétrio com força. Seu crânio explodiu como um balão de festas repleto de sangue.

Chegou a hora de ser
Maior que as muralhas
Tentarão me prender
Em vão
A gente pode crescer
Perdendo a batalha
Não deixe a vida escorrer das mãos

Massa encefálica se permutou ao cacos, enquanto parte do couro cabeludo era arrancado violentamente junto com o cabo, que destruiu os ossos da face do produtor de maneira brutal. Primeiro as bochas e então o globo ocular, a pele do nariz e o maxilar por último. O barulho dos ossos se desprendendo do rosto, dos olhos esbugalhando no painel, da cartilagem molhada e grudada ao que sobrara do pescoço de Demétrio.

Alisson berrou quando o corpo do cineasta foi jogado contra o painel traseiro da cabine, que teve os vidros da parte de trás estilhaçados pelo baque pesado do cabo de aço cortando a vidraça e batendo contra a parede final da estação teleférica. Com o impacto do cabo no corpo, a parte superior de seu tórax foi violentamente amassada contra o painel dos computadores, enquanto a parte de baixo ameaçava se desprender e cair embaixo do balcão.

Palavras são armas
E estão apontadas
Pro peito de quem tentar
Me impedir

Renan estava encarando a cena com as lágrimas rolando no rosto e o coração ameaçando parar. Ele empalideceu imediatamente.

Alisson chorava desesperada e ajoelhada de onde estava. Um jato de sangue chegou a atingir seu rosto em cheio, pintando suas bochechas e testa. Sabrina vomitou logo em seguida, ao perceber como ficara o corpo do produtor. Os pedaços todos espalhados pelo piso da estação. Não sabiam dizer onde estava seu rosto, seu couro cabelo, sua massa encefálica ou a parte superior de seu dorso. Nunca mais eles juntariam os pedaços de Demétrio.

Chegou a hora de ser
Maior que as muralhas
Tentarão me apagar
Com escuridão
A gente aprende a viver
No fio da navalha
De que adianta viver em vão

(Maior Que As Muralhas – Fresno)

Renan se levantou ainda cambaleando, com a boca tapada e os olhos lacrimejando. O homem olhou além da estação e viu o Cable Car onde estavam os outros pender e balançar. O mecanismo do primeiro teleférico danificara toda a estrutura. Então, o segundo cabo se desprendeu no sentido contrário, e cortando o ar no mesmo movimento reto que o primeiro, atingiu o segundo mecanismo, fazendo o outro Cable Car se desprender.

O grupo que estava dentro do teleférico gritou quando a caixa, outrora suspensa, balançou bruscamente e despencou do mecanismo. Edmundo e Debora deram as mãos e Stein abraçou-se com Ellen. Fred tentou se apoiar em um dos bancos, mas a lei da inércia não deixou que ele conseguisse se segurar em algo a tempo.

No segundo seguinte, Renan não viu mais o Cable Car, apenas ouviu o barulho de ferro se retorcendo ao ir de encontro direto com as árvores logo embaixo.

Não deixe a vida escorrer das mãos


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Notas finais do capítulo

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