D'Ela escrita por Carmen Rey


Capítulo 4
Parte III




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Houve também o dia em que eu caí.

Eu e Ela já estávamos brigados há muito tempo. Já estávamos distantes um do outro, e cada vez mais aquele veneno se impregnava no meu casaco.

Dois dias depois, a outra; ela, parou de usá-lo para prestar atenção em caras mais interessantes. E Ela tornou a vesti-lo, mas sem sequer dizer uma palavra à mim. E então aquele cheiro levemente doce voltou a invadir minha privacidade, voltou a me trazer lembranças, a me dissecar.

No dia em que eu caí, não pude me levantar. Fiquei preso, estampado no chão como um soldado morto em guerra.

Eu não queria me levantar.

Foi quando uma amiga d’Ela veio até mim algumas semanas depois e entregou-me um caderno amarelo simples, mas na capa, consegui identificar a letra d’Ela.

— Você entende inglês? — ela perguntou.

— O suficiente — respondi, já um pouco impaciente.

Ela me encarou. Parecia com raiva.

— Ela fez para você. Embora eu acho que não mereça, aqui está. Leia antes que ela veja. Espero que ela me perdoe, eu tinha que fazer isso.

E saiu silenciosamente, deixando-me sozinho com aquele caderno.

Eu não tinha entendido nada, mas o abri para ler.

Eu sabia que Ela gostava de escutar músicas ou ler em inglês, então aquilo explicava tudo, e demorou um pouco para que eu pudesse traduzir o que estava escrito.

E foi como se tudo tivesse desmoronado.

É estranho perceber que alguém gosta de você; assim, de supetão. Em primeiro lugar, parece fantasia. Em segundo lugar, é estranho. Porque você simplesmente não parece ser o tipo de pessoa que alguém gostaria de amar.

Mas a verdade é que assim como podemos escolher quem amamos, podemos escolher quem nos fere. Ela deixou que eu A ferisse, e talvez eu nunca me perdoaria por isso.

Só sei que aqueles poemas em inglês, tão claros e límpidos para mim, também pareciam tão sujos… Justamente por causa da pessoa que se tratavam.

Ela havia feito todas aquelas poesias para mim. Todos aqueles sonhos, aqueles ritmos, as rimas.

Eu nunca fui do tipo de cara que gostava de compromisso. Nunca fui do tipo de cara que gostava de consolar as pessoas. Ela sempre foi do tipo romântica e sonhadora. Sempre sorria, independente do que acontecia, seus lábios se curvavam numa lua minguante que só ela conseguia refletir.

Eram tantos versos, tantos, que eu fiquei com náuseas. Era sufocante a sensação de culpa, de desabamento, a sensação de não poder corresponder.

O que era uma mentira, claro. Naquele momento pude perceber o óbvio e sairia atrás d'Ela e corresponderia seus sentimentos.

Se eu pudesse.

O fato é que fiquei olhando para aquele caderno, como se em algum momento eu pudesse ser sugado para aquele mundinho que Ela criou e esquecer toda a culpa.

Quando parei de cometer erros, perdi quase todos os meus amigos. Ela foi a única que permaneceu.

Eu havia parado, mas era tarde demais.

Olhei para o lado. Ela havia deixado o casaco bem no canto, então o peguei e encaixei no ombro.

Joguei o caderno longe, nem me lembro onde. Só precisava ir até Ela e contar tudo.

Quem sabe se eu deixasse a máscara que me cobria derramar e finalmente deixasse que Ela visse quem eu realmente era, tudo se encaixaria.

Era o que eu pensava.

Não era mais lenta, dolorida e sufocante aquela multidão de corpos vazios porque deles nada me importava mais.

Desci as escadas como se cada degrau fosse um passo para a salvação. Talvez fosse, quem sabe. Mas eu tenho a péssima mania de só perceber as coisas tarde demais, de qualquer jeito.

Olhei para a rua.

Lá estava Ela.

Conversando com Ele.

Tantas coisas passaram pela minha cabeça tão rápido que era como se eu tivesse desaprendido a viver.

A luz quente do sol me prendeu por alguns segundos àquela situação e demorou bastante para eu associar aquilo tudo.

Ela sorria, os dois riam, aquele som inebriante do despontar de um romance. Aquilo que não é associado a você quando se é um cara que ignora o que está bem à frente.

Seu corpo miúdo estava novamente num casaco — exalando o cheiro doce que eu podia sentir à distância —, mas não era mais o meu.

Tentei deixar que a felicidade d’Ela me invadisse também, mas não o fiz.

E naquele momento eu estava certo. Eu merecia aquilo tudo.

Coloquei meus fones de ouvido. Ultrapassei a multidão cinzenta, trilhando meu caminho para casa silenciosamente, como eu fazia antes, ignorando-A.

Ela não acenou. Não disse nada. Ignorou-me.

Acho que era isso que Ela deveria fazer, quem sabe.

E saí andando, escutando músicas sem sentido, palavras embaçadas e melodias desajustadas. Eu podia pensar em muitas coisas, mas Ela invadia qualquer área da minha mente, onde quer que eu fosse. Doía, claro, pensar que eu abandonaria aquilo tudo, mas eu já tinha abandonado muita coisa e nem sequer havia percebido.

Ela me amava, eu tinha certeza, e eu deixei aquilo para trás, como também deixei a multidão de corpos cinza, mesmo já sendo um deles.

Continuei me arrastando na vã esperança de que meu corpo um dia se juntasse ao azul do céu.


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