D'Ela escrita por Carmen Rey


Capítulo 3
Parte II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/608118/chapter/3

Havia uma outra. Ela tinha cabelos castanhos claro e curvas sinuosas.

Do mesmo jeito, Ela continuava me observando.

E eu olhava apenas para ela. O outro “ela”, com e minúsculo. A outra garota.

Perguntei o nome da garota para Ela. Nem lembro-me mais dele, só me recordo de que Ela respondeu calmamente e me encarou por alguns instantes, tentando decifrar alguma coisa em mim que eu não sabia o que era.

— Por que a pergunta? Você quer ficar com ela ou algo do tipo? — Ela perguntou, rindo.

Apenas confirmei e dei um sorriso quase sincero. Ela riu e continuou usando meu casaco pelo arrastar de alguns dias, até que a outra veio até mim, pedindo aquela peça de roupa que Ela tanto insistia em usar. A que era um farrapo, um pano sujo; até se tornar o manto d’Ela.

Ela apenas acenou com a cabeça e jogou o casaco para ela, que saiu dando piscadelas.

Só hoje eu entendo o que se quebrou n’Ela naquele momento.

Quando percebi, meu casaco já tinha o cheiro d’Ela. Não importava o quão forte eu lavasse, aquela fragrância havia se impregnado como concreto no tecido e não saía mais de lá. De certa forma eu não me importava muito, até porque eu quase nunca tinha a chance de usar o casaco, se me entende...

Até que um dia eu vi melhor e notei que havia o cheiro dela também. Era um cheiro forte e autêntico, diferente do cheiro doce e sutil d’Ela. Hoje eu entendo que o primeiro era o veneno, a doença, e o último era simplesmente a minha salvação.

Quando me perguntaram se eu usava drogas, a resposta foi positiva. E para ser sincero, as drogas químicas eram as mais leves. Existiam as outras, porém. Drogas abstratas da automutilação da mente que me davam crises de abstinência maiores do que qualquer substância que eu pudesse inalar, tragar, engolir ou injetar.

A verdade era que até aquele momento eu não ligava. Minha rotina era até então cheia de corpos coloridos e dias agitados e opacos, e tudo parecia normal, cada coisa tinha seu ponto imutável no meu cotidiano.

Mas minha cabeça estava lá, naquele aquário infernal, escutando os berros d’Ela.

Eu então, sabendo que era minha amiga, contei à Ela.

Ficou arrasada. E brigamos.

Ela dizia que eu não fazia ideia do estrago que estava causando na minha própria vida e na vida das pessoas à minha volta. Eu não entendia como eu podia afetar as outras pessoas se eu estava fazendo aquilo comigo mesmo. E Ela nunca me contava o porquê de tanta raiva sobre esse assunto, tanta mágoa e tristeza.

Infelizmente, hoje eu compreendo melhor.

Eu respondi coisas inúteis e repugnantes, dizendo que a vida era minha e eu tomava o rumo que eu quisesse. Um cuspe no chão já ácido.

A discussão se arrastou até o ponto de eu não aguentar mais. Às vezes eu pensava que Ela não sabia como era no meu ponto de vista, mas hoje eu consigo entender que eu também não me colocava no lugar d’Ela.

Ela continuou implorando com aqueles olhos petrificados em desespero, as chamas apagadas, para eu parar com aquilo. Eu prometi que iria parar, mas não o fiz. Ela soube.

E brigamos de novo.

Dessa vez foi sério. Eu gritei com Ela, Ela gritou comigo.

Dei um basta.

Ela saiu com algumas lágrimas pendendo no olho.

Seu castanho tornou-se fosco.

Ela tornou-se ela.

E o pior de tudo, o que me fez arder de raiva, foi que eu não senti pesar ou remorso por ter causado aquilo nela naquele momento. Não só nela, aliás, mas em todas as pessoas que agora tornaram-se corpos cinzentos. Acho que a pior parte do arrependimento que sinto é ver que ela foi a única pessoa que me amou de verdade, em todos aqueles tempos de negações tempestuosas e nos de calmaria. Toda aquela vida imaginária era realmente uma mentira, incluindo as pessoas que lá se diziam afáveis e amigas.

Nada mais importa, agora. Porque estou com meu casaco em mãos, com um sentimento estranho no peito, um nó gigantesco.

Aquele casaco, afinal, nunca foi meu. Ela sempre afundava a cabeça no capuz, dormia em cima dele quando terminava um livro, encolhia seu pequeno corpo naquele enorme cobertor. Afinal, nada era meu mais.

Quando percebi que eu também queria amá-la, o chão havia me sugado e prendido na escuridão.

Ela está lá em cima, dançando nos raios de sol.

Ela, que agora tem novamente um exuberante E maiúsculo no nome. O maior e mais merecido E que consigo imaginar.

Então, com muito esforço, dependuro o casaco num cabide e o arrasto para o fundo do armário, o enjaulando numa câmara de arrependimento e névoa indigesta.

Não quero mais usá-lo. Não há necessidade de levá-lo a lugar algum.

Ele sempre foi d’Ela, de qualquer jeito.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "D'Ela" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.