Hastryn: Ascensão escrita por Dreamy Boy


Capítulo 7
A Chama da Esperança


Notas iniciais do capítulo

"A execução de nosso pai foi um trauma que marcou nossas vidas para sempre."
— Katherine Muirden



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Katherine

Katherine se recusava a acreditar que aquele fato tinha sido real.

Durante a manhã, logo após despertar de um sono profundo, começou a escrever em seu diário novo e relatar os últimos dias. Foi quando Evelyn chegou esbaforida e nervosa ao quarto e Kath, preocupada com o estado da irmã mais velha, interrompeu o que estava fazendo e se levantou da poltrona.

— O que está acontecendo?

— Há uma bagunça completa lá fora! Muitas pessoas estão andando em fileiras por áreas próximas daqui. Estava fazendo uma caminhada e, quando voltei, tive dificuldades para entrar no castelo por causa delas. Veja!

Evelyn se aproximou de uma janela e abriu as cortinas, apontando na direção de um grupo de cidadãos. Kath arregalou os olhos ao ver aquilo, tendo um pressentimento ruim do que poderia acontecer. Na última vez em que houvera algo parecido, os resultados não foram bons. Virou-se para a irmã, decidida.

— Vamos descobrir o que é.

Pronta para mais uma atividade de exploração e descobrimento de segredos do castelo, deixou o diário de capa de couro com detalhes brancos em baixo de seu travesseiro. No dia anterior, as gêmeas desobedeceram ao pai e foram até o subsolo do castelo para descobrir o que havia nas masmorras, porém, um dos guardas não permitiu a passagem e as obrigou a deixar o local, alegando haver a existência de criminosos perigosos presos em suas celas.

Naquele dia, porém, ninguém seria capaz de barrá-las no caminho, pois se infiltrariam na multidão e saberiam qual era o motivo de toda aquela baderna.

Seu pressentimento a incentivava ainda mais a sua curiosidade para procurarem a causa daquele tumulto. Na pressa, ambas saíram com as próprias vestimentas do corpo, sem se importar com maliciosos comentários proferidos por senhoras desocupadas.

Cortaram caminho por uma porta escondida atrás de uma pilastra localizada no canto de um corredor que não costumava ser muito movimentado naquelas horas. Evelyn havia encontrado acidentalmente aquela passagem, que dava acesso a uma pequena escadaria que conduzia diretamente ao pátio principal.

Lá, as pessoas empurravam umas às outras para atravessar as ruas e as meninas tomaram mais cuidado para não serem derrubadas pelos apressados brutamontes. Decididas a apenas seguir o fluxo, não ousaram fazer perguntas aos outros e prestaram atenção no percurso. Situando-se por caminhos decorados, concluíram que estavam indo para a Praça da Execução.

— Meus deuses... Eu sabia que algo de ruim estava para acontecer. — Kath sussurrou para a irmã, arrepiada. Andavam de mãos dadas com o intuito de impedir que a multidão as separasse. — Haverá mortes, Evelyn! Espero que não seja de alguém que conhecemos.

— Não fale baboseiras. O rei já mandou matar muitos que nunca vimos em nossa vida. Dessa vez não será diferente, fique tranquila. Quando nos darmos conta, estaremos de volta ao nosso quarto e nos esqueceremos desse momento.

Aquilo era mentira. Nenhum assassinato a sangue frio era esquecido por seus espectadores. Evelyn sabia disso, mas mentia para tentar confortar a irmã mais nova de alguma forma.

Diante de onde estavam, era possível observar uma plataforma de madeira, mas não conseguiam saber quem estava amarrado lá. A distância era grande e homens altos impediam a visão completa do cenário. Abrindo espaço entre eles, ambas foram um pouco mais para frente, evitando que o rei as visse. Lothar era o único que fora reconhecido o tempo todo, mesmo de longe.

Próximas o suficiente para enxergar o necessário, ficaram chocadas ao encontrar o pai sendo acorrentado. Não compreenderam o que havia acontecido para aquilo, pois nunca ficaram sabendo de nada que Gregory tivesse feito para desrespeitar o rei ou merecer estar ali. Entreolharam-se e encararam Lothar, que se prontificava a falar para a multidão.

— Este é Gregory Muirden, acusado de ser o responsável por cometer crimes de traição contra minha pessoa, o monarca de Arroway. Portanto, como punição por seus atos, será condenado à morte, sentença que deverá ser efetuada imediatamente!

— Não! — Kath gritou, mas Evelyn tampou sua boca em seguida. Seus gritos foram misturados com os dos outros, que berravam insultos e xingamentos ao guerreiro. Elas sentiam ódio por aquelas pessoas, sendo capazes de degolar todas sem o mínimo ressentimento, caso tivessem um punhal em mãos. Nenhuma delas conhecia seu pai e ninguém tinha o direito de falar sobre ele daquela maneira. Os que conheciam sentiam apenas inveja por não terem a vida que queriam.

Paralisou quando observou o capanga de Lothar preparar o laço para realizar o enforcamento. Aqueles eram os últimos instantes da vida de Gregory e Kath não sabia o que fazer para salvá-lo. Evelyn estava prestes a desabar na frente de todos e chorar. Apesar do jeito grosseiro e rude de sua irmã lidar com as situações do cotidiano, Katherine conhecia o coração sensível por trás daquela máscara.

Gritavam enquanto viam o homem se contorcer e agarrar as cordas, tentando evitar o inevitável. Mesmo que fosse difícil de encontrá-la entre aquelas pessoas, o último olhar do pai foi direcionado a ela. Uma lágrima escorreu de sua superfície ocular direita. Os olhos se fecharam e, naquele instante, Katherine Muirden sabia que os deuses haviam levado seu pai e tornado as duas órfãs.

— Ele era inocente! — Inconformada, a gêmea caçula lutava para convencer a si mesma de que estava apenas vivendo um pesadelo. — Nosso pai não fez maldades a ninguém! Ele não era uma pessoa má!

Quando viu os capangas de Lothar vindo em direção a elas, Evelyn criou forças para puxá-la. Aproveitou o obstáculo causado pelos indivíduos à sua frente. Juntas, passaram por baixo das pernas de alguns e retornavam por onde vieram. Deram voltas ao redor dos cidadãos presentes, conseguindo despistar os guardas.

Katherine perdeu o fôlego. Seu estômago embrulhou. Perdia a noção de tudo o que estava acontecendo, sem compreender os motivos de ainda estar viva e do porque aquele mundo cruel existia. Sem forças emocionais, deixou-se ser levada por Evelyn.

— Precisamos ir, antes que nos matem!

Por sorte ou azar do destino, as gêmeas Muirden escaparam com vida.

...

— Alguém se aproxima! — Evelyn ficou atenta ao seu redor, como um animal pressentindo a chegada de predadores maiores e planejando uma estratégia. Sem relutar, empurrou Kath para trás de um arbusto e, deitadas, ambas ouviram passos de cavalos próximos, trotando pelas ruas em que estavam escondidas. Quando os animais e seus respectivos donos se distanciaram, elas desceram a ladeira.

Ao ficarem cansadas, pararam de andar e ficaram em um beco escuro, sem que outras pessoas pudessem encontrá-las ali. Permaneceriam no local até o movimento se tranquilizar e assim terem a chance de sair, camufladas entre o povo, das áreas protegidas pelos muros do castelo. Em seguida, encontrariam um local seguro para passarem a noite.

Os pés de Katherine estavam dormentes, obrigando a jovem a retirar os calçados para se sentir melhor. Evelyn encostou a cabeça na parede, suspirando, também com dificuldades para crer naquilo. Kath deitou sobre o ombro da irmã e adormeceu rapidamente.

Mais tarde, ao acordar, não soube dizer quanto tempo havia se passado. Teve a certeza, de uma vez por todas, de que não era um pesadelo. Era real.

— Isso é impossível! Estamos completamente sozinhas, Evelyn. O que será de nossas vidas?

— Devemos sobreviver e encontrar um abrigo. Depois, pensaremos com calma no que fazer nos próximos dias. Não poderemos voltar ao arraial, certamente, pois as pessoas de lá nos conhecem e revelarão nosso paradeiro ao rei em troca de recompensas. Nossas cabeças poderiam ser arrancadas com facilidade.

Após ter dito aquelas palavras, Evelyn percebeu o impacto que causara. Kath chorou ainda mais, imaginando o corpo do pai sendo esquartejado e a cabeça sendo exposta como uma imagem negativa do valente guerreiro que as criara e protegera de toda a maldade existente no mundo.

— Ele era nossa única esperança... Ficaremos desprotegidas, solitárias e pobres. Irmã, estou com medo. Medo de perdê-la.

Abraçaram-se, emocionadas. Desde pequenas, mantinham um forte laço, sempre unidas em tudo que era possível. Tinham como dever protegerem uma a outra.

— Querida, nosso pai queria que fôssemos fortes, inclusive em momentos como esses. Devemos resistir e honrar seu nome. Está preparada? Teremos um longo dia pela frente.

“Sem dúvidas, está sendo forte.”

Kath admirava a determinação da irmã. Sabia que Evelyn sofria muito, mas guardava o sentimento para proteger aquilo que mais importava no momento: fugir do rei e achar um local para dormirem, até conseguirem morar em algo melhor.

— Sim, estou.

Tomada por aquela determinação, Katherine segurou a mão de Evelyn e se levantou. Por ela, lutaria com unhas e garras para terem juntas uma vida melhor.

Viram um grupo não muito grande passando e se agacharam, decididas a acompanhá-los em segredo e se infiltrar entre os presentes, como se fizessem parte destes. Ouviram as conversas.

— Minha nossa, hoje não podemos confiar em mais ninguém dessa cidade! — A voz pertencia a um senhor de idade e as gêmeas se controlavam para não rebater a ofensa e defender o nome do falecido pai. — Vocês viram o que aconteceu? Aquele homem traiu nosso rei! Pensou que, vencendo aquela competição, seria capaz de matá-lo e roubar o trono para si?

— Piada!

— Não sei, mas acho que a história não foi bem assim. — disse uma senhora com voz doce, provavelmente esposa daquele homem. Katherine não conseguiu ver seu rosto, mas ficou curiosa para ouvir o que esta tinha a dizer. — Muitos inocentes, inclusive amigos nossos, foram mortos de maneiras piores. Por que dessa vez não seria diferente?

— Isso é verdade, sou obrigado a concordar. Devemos nos manter fora dos assuntos que envolvem o castelo e de qualquer contato próximo do rei. — diminuiu seu tom de voz ao pronunciar a última palavra, com medo de que alguém além deles ouvisse. — Mas, não parece ter sido esse o caso de Gregory. O cara vivia de cabeça erguida e se sentindo melhor do que os outros. Mereceu o fim que teve.

— Pobre quando muda de vida é assim. Já deveria estar acostumado. Mas eu o conhecia um pouco e não acho que seria capaz de cometer traição sem um bom motivo.

Ficaram em silêncio cruzando os portões. As gêmeas, de dedos cruzados, passaram pelos guardas com medo de serem interceptadas e capturadas. No entanto, graças aos deuses, estes pareciam não saber da ordem de capturá-las ou não as reconheceram com as vestimentas utilizadas e com as pessoas que seguiam. Eram apenas moradores de áreas pobres de Arroway e não mereceriam ser tratados com tamanha importância. Kath sabia que as horas de vida deles estavam contadas.

A mulher tornou a falar.

— Sinto arrepios quando passo por aqui perto. Parece mal assombrado, com essas estátuas de gárgulas que parecem querer nos devorar. Aqueles dentes são horríveis!

— Já podemos nos distanciar deles? — Katherine sussurrou no ouvido da mais velha, que assentiu. Ambas se esconderam atrás de uma árvore e aguardaram que sumissem da vista. — Vamos procurar uma casa.

Olharam ao redor, primeiramente à procura de uma direção que pudessem seguir. Havia vários prédios, casas e estabelecimentos comerciais. Foram pela rua mais próxima, onde uma senhora se encontrava vendendo flores de diversas cores para uma garotinha. Seus cabelos eram cacheados e grisalhos, e utilizava um par de óculos que tornava sua aparência engraçada e simpática.

— Aqui está o pagamento, senhora.

— Muito obrigada, meu anjo. — Ela sorriu ao se despedir, observando a menina indo embora. — Volte sempre. — Viu as jovens e fez um gesto para que se aproximassem. — Posso ajudá-las em algo?

— Suas flores são lindas, mas não viemos comprá-las hoje. — elogiou Evelyn, fitando um buquê de rosas brancas, sua cor favorita. — Nosso problema é outro...

A postura da senhora mudou, percebendo que pediriam algum favor. Subitamente, ficou séria e retirou os óculos para limpá-lo no tecido das vestimentas. Colocou-os novamente e fez a tão esperada pergunta.

— Parecem tristes... O que aconteceu com vocês?

— Estamos sem lar, pois nossa casa foi destruída. Por favor, é apenas por poucas noites, enquanto não conseguimos outro para ficar. Trabalharemos se for preciso!

— Infelizmente, não posso hospedá-las em minha casa. Se descobrissem, outros mendigos e moradores de rua iriam implorar para serem abrigados também. Sinto muito, mas terão que procurar outra que esteja mais espaçosa e disponível.

Cabisbaixas, deixaram a floricultura, sem ter como discutir.

Insistentes, procuraram outros locais, como um bar cuja residência principal se encontrava acima do estabelecimento, um restaurante e até mesmo um orfanato. Nenhum destes foi capaz de aceitá-las.

...

Anoiteceu.

Deram voltas pela cidade inteira e pelo centro trabalhista. Além de moradia, também não conseguiram nenhum trabalho e foram obrigadas a procurar mais durante o dia seguinte. Kath não desistiria tão facilmente e Evelyn também não.

Entretanto, a irmã mais velha a surpreendeu.

— Só existe uma solução para nossos problemas. Teremos que superar todo o nosso orgulho e, mesmo com nossos conceitos aprendidos sobre o que é certo e errado, devemos arriscar. É nossa única oportunidade, Kath. De conseguir riquezas, fortunas! — Seus olhos brilhavam de uma forma assustadora, como a gêmea caçula nunca viu antes. Um olhar desesperado e esperançoso ao mesmo tempo. — Madame Mafalda pode nos salvar da pobreza e miséria.

— Quem é essa? Não a conheço.

— A mulher mais corajosa que já conheci. Acredite, com certeza irá nos ajudar, como faz com aquelas que precisam. O lugar não fica distante daqui e será onde ficaremos hoje. Se tudo der certo, por outros dias também.

Não gostou de ouvir a irmã falar daquele jeito. Teve outro mau pressentimento, sabendo que normalmente estava certa quando momentos ruins surgiam. Entretanto, não teve outra escolha, senão iriam dormir nas ruas e morrer de frio durante a madrugada.

“Rosa Indomável”

Olhou para cima, boquiaberta. Sobre uma fileira de escadas, havia uma enorme construção cujas paredes foram pintadas de rosa. As janelas e a porta eram brancas e era possível ver o grande movimento em seu interior através do vidro transparente.

Evelyn subiu os degraus e a irmã foi logo atrás. Bateu à porta. Kath queria fazer perguntas, mas sabia que não seria respondida e esperou para saber do que se tratava aquela casa.

Uma mulher as atendeu, sorrindo. Provavelmente a mulher mais linda que Kath já havia visto. Tinha uma beleza extremamente invejável. Seus cabelos negros eram presos numa longa trança, os olhos azuis como o mar eram penetrantes, capazes de hipnotizá-la. Utilizava um vestido decotado verde.

— Boa noite! — Seu olhar encarou o de Evelyn, como alguém que reencontra outra pessoa depois de um tempo considerável. — Já nos esbarramos antes?

— Sou aquela que foi resgatada por você durante uma noite. Estava prestes a ser despida por um grupo de ladrões, quando a senhora chegou acompanhada de um rapaz e disse a eles que eu fazia parte de sua família. Depois que foram embora, disse-me quem era e ofereceu ajuda caso um dia precisasse. — Evelyn se virou para Kath, explicando. — Não te contei essa história, minha irmã. Ninguém de nossa família soube.

— Claro, agora estou me lembrando perfeitamente! — A mulher as interrompeu, com um sorriso estampado no rosto que, para Katherine, era falso. — Como se fosse ontem! Sejam bem-vindas!

— Agradecemos a gentileza, senhora Mafalda.

— Senhorita, por favor. — respondeu, com uma risada contagiante. — Não precisa de todas essas formalidades, queridinha. Pode me chamar apenas pelo meu nome.

Katherine, insegura, adentrou o recinto e ficou horrorizada ao ver mulheres seminuas sentadas no colo de homens de diferentes idades, incluindo jovens rapazes que aparentavam ter cerca de doze anos e eram levados por seus pais para conhecer o mundo dos adultos. Alguns homens se reuniram em uma mesa para jogar cartas e realizar apostas, um vício considerado ridículo por ambas as irmãs. Um costume típico de prostíbulos como aquele. Outros, os mais raros, eram mais românticos com suas respectivas damas, ou cavaleiros, e pediram uma mesa reservada com a pessoa que os atendia.

— Sentem-se. — Mafalda indicou com as mãos uma mesa vazia, que parecia estar à espera das gêmeas. Relutante, a mais nova puxou a cadeira e se sentou, evitando olhar muito para as pessoas ao redor. Não suportava aquele ambiente, desejando sair dali no mesmo instante em que entrou.

Um garçom chegou, entregando uma taça de suco de laranja a cada uma delas. Aceitaram de bom grado e tomaram o líquido em um único gole. A fome era imensa, e a sede também. Qualquer coisa que pudesse encher o estômago seria bem-vinda. Como se estivesse lendo seus pensamentos, os funcionários trouxeram duas apetitosas coxas de galinha.

— Não temos mesmo como agradecer pela gentileza! — dizia Evelyn, pois a gêmea caçula não conseguia falar absolutamente nada, tamanho era seu espanto.

— Fiquem tranquilas, pois tenho a mais absoluta certeza de que saberão agradecer mais tarde. Reservarei um quarto com duas camas disponíveis. A partir de amanhã, vocês começam a trabalhar. — Com um sorriso misterioso e sem esperar respostas, Mafalda puxou um cliente e deixou o recinto.

— Evelyn, isso é mesmo necessário?

— Sabe alguma outra forma de garantir nosso sustento? Se morássemos nas ruas, correríamos risco de contrair alguma doença e seríamos obrigadas a pedir esmola, roubar alimentos nos mercados e feiras e talvez até sermos raptadas por bandidos. Em alguma hora, seríamos descobertas e mortas.

— Isso vai contra todos os nossos princípios. Tudo o que nos foi ensinado até agora terá sido em vão. Seremos impuras como aquelas moças e aqueles rapazes. Deveríamos ter aproveitado a oportunidade, se soubéssemos dela, e fugido com Elliot. Assim, papai ainda estaria vivo.

— Sobrevivência, Katherine. Elas fazem o que fazem para garantir um prato de comida, uma roupa para vestir, e não merecem o julgamento que as demais pessoas cometem. Quanto a nosso pai, não pense no que poderia ter acontecido. Temos que brilhar enquanto podemos.

— Como tem coragem? É absurdo! Tenho nojo só de me imaginar cedendo meu corpo aos prazeres deles em troca de dinheiro!

— Bem, não nos resta alternativa. É nossa oportunidade de crescer financeiramente. Além disso, precisamos descansar para termos uma noite memorável amanhã.

...

Foram para o quarto, deitaram em suas camas e dormiram de imediato.

As horas em que cochilaram passaram com muita rapidez. Ao se levantar, Katherine viu a irmã sentada sobre o colchão da outra cama, penteando os cabelos de frente para um espelho branco encontrado próximo à cabeceira. Como habitual, provavelmente havia levantado cedo, antes do alvorecer. Todavia, Kath não tinha certeza disso, pois estavam exaustas.

— Bom dia, irmãzinha. Demorou a acordar.

Sem forças para responder, Kath se espreguiçou e bocejou, aliviada após uma noite de sono adequada. Olhou para as ruas através da janela localizada no centro do cômodo, observando cidadãos caminhando de um canto a outro. Um senhor de idade a olhou com desprezo, virando o rosto para evitar o contato visual com habitantes daquela casa de prostituição.

“A partir de hoje, serei como elas. Nada poderá nos diferenciar. Quaisquer tratamentos ruins recebidos por mim graças a meus atos serão completamente dignos.”

— Já tomou o desjejum? — Kath finalmente perguntou, ficando ao seu lado. — Meu estômago voltou a doer...

— Não iria sozinha para lá. Esperei você acordar para me fazer companhia. Penteie os cabelos e vamos, pois daqui a poucas horas iremos almoçar. O tempo parece passar mais rápido nesse lugar.

E realmente passou.

Durante a tarde, ficaram com Mafalda de volta ao aposento, preparando o visual para iniciarem o trabalho. Havia dois funcionários responsáveis pelos cuidados com os cabelos e maquiagens, e Kath tinha curiosidade para saber como ficaria sua aparência após o processo inteiro.

— A primeira noite será essencial para garantirem uma fortuna. Vocês estão belíssimas e espero que gostem da mudança. Conseguirão fama e sucesso entre os clientes, sendo capazes de lucrar muito!

Os cabelos louros, quase dourados, de Evelyn brilhavam e a maquiagem deixava seu rosto mais bonito, o que era surpreendente. Enquanto Katherine se preocupava com a beleza, a outra irmã era o oposto, sujando-se sem controle durante os passeios e treinamentos na floresta, mesmo que sem a intenção.

— Está pronto.

Quando apanhou o espelho e viu seu reflexo, Katherine foi tomada por uma forte vontade de chorar. Não reconhecia o próprio rosto, parecendo estar vendo outra pessoa. Assim como Evelyn, se sentiu uma verdadeira princesa, como nas histórias de finais felizes que a mãe contara às filhas.

O que as tornava diferentes era o vestido que utilizavam. O tecido verde realçava os firmes seios de Evelyn, que sorria de forma provocante para a irmã. Katherine também conseguiu sorrir, olhando para o vestido vermelho de tonicidade escarlate em seu corpo. Era sua cor favorita. Mesmo sem ter usado aquele tipo de roupa durante sua vida, não hesitou em colocá-lo. Precisava ser valente e provar para si mesma de que era capaz de enfrentar de cabeça erguida os obstáculos, acreditando num futuro melhor.

— É simplesmente perfeito, Mafalda! Nunca me senti tão bonita!

— Ah, querida, poderá escolher entre vários vestidos com o tempo. As cores que preferir, o modelo que achar melhor e mais adequado às ocasiões e momentos climáticos. Agora, temos que ir.

Corajosamente, andaram até o corredor e desceram a escadaria de mármore até o salão. O ambiente estava muito mais cheio do que na noite anterior, o que para Katherine jamais seria possível. Música alta era tocada e o gigantesco palco tinha cortinas de coloração lilás e dançarinas com roupas roxas. As paredes eram decoradas com pinturas de figuras jovens masculinas e femininas nuas de diferentes tamanhos, semelhantes a alguns que trabalhavam ali. Nas mesas, homens gargalhavam alto de piadas que faziam sobre os mais variados e aleatórios assuntos, completamente bêbados. De vez em quando, paravam para dar atenção às meretrizes em seus colos e as beijavam. Em um canto mais afastado, um cliente de idade trocava carícias com um garoto que deveria ter a idade das irmãs. Um local onde as pessoas eram livres para realizar todos os seus desejos, sem se importar diretamente com posições sociais ou preconceitos. Estes aconteciam apenas da porta de saída até o restante da cidade.

— Vou levá-las ao palco.

Katherine resistiu à súbita vontade de vomitar, segurando o braço esquerdo de Evelyn por nervosismo. Dado fim à apresentação das dançarinas, a música parou de tocar e todo o salão subitamente ficou em silêncio. As gêmeas subiram as escadas e olharam nervosamente para o público. Mafalda se virou aos presentes e falou em alto tom:

— Estas vieram de surpresa! Não aceitarei valores miseráveis. É a primeira noite de cada uma delas, portanto, sejam generosos e estejam dispostos a oferecer altos preços. — Mafalda respirou fundo e se dirigiu a Katherine. — Querida, você primeiro.

Foram muitos os homens que ofereceram altos valores, sendo uma quantidade absurda em dinheiro. Katherine jamais conseguiria aquilo trabalhando por todos os anos de sua vida. Abominava o gasto de muito ouro com coisas inúteis quando outras pessoas passavam fome e nem sequer abrigo tinham. Quando o leilão finalmente cessou e as ofertas pareceram acabar, Mafalda cutucou o ombro da garota e apontou para um rapaz que sorria para ela.

— Aquele será seu cliente, mas quero explicar algo a vocês duas. — sussurrou, falando rapidamente para evitar que outra pessoa conseguisse ouvir as palavras que dizia. — No mundo lá fora, os homens são maus e cruéis. Não se importam com os direitos e o papel da mulher na sociedade, destruindo o sonho de algumas. Não somos tratadas como humanas, mas como objetos de diversão e luxúria. Quero que lucrem com esse tipo de gente, que deve ser usado a nosso favor.

“Nisso ela tem razão. Hoje a noite será minha.”

Sem tirar os olhos do rapaz, afastou-se e desceu os graus lentamente, caminhando sem muito jeito até ele. As pessoas que se encontravam de pé abriram espaço para a mais nova prostituta passar. Perto o suficiente, exibiu um sorriso, apontando com o dedo para onde deveriam seguir. O rapaz segurou uma de suas mãos e, juntos, foram para o quarto onde os clientes eram atendidos.

Iluminado à base de velas, o cômodo foi propositalmente decorado de forma romântica. Havia detalhes vermelhos nos lençóis e nas imagens retratadas que foram penduradas nas paredes, com estampas de corações.

Ao fechar a porta, Kath conduziu o garoto à cama. Começou a beijar seu pescoço e seus lábios de forma delicada. Permitiu-se ser acariciada por ele, que lentamente foi retirando o vestido dela. Tentou não demonstrar o nervoso que sentia, sabendo que não podia falhar em seu trabalho.

— Está tremendo? Não precisa ter medo... Serei bom para você.

Lembrando-se das duras palavras ditas por Mafalda, fez um imenso esforço para não acreditar. Ela o ajudou a tirar suas roupas, pouco tempo depois estando os dois nus sobre o colchão.

Mas ela foi capaz de suportar e a dor aos poucos foi se tornando prazer. O rapaz era extremamente carinhoso e proporcionou uma noite inimaginável a ela. Uma noite que ficaria em sua memória.

...

Na mesma madrugada, a jovem conseguiu atender a mais três clientes, lucrando bastante com as generosas ofertas de todos. As gêmeas Muirden eram a grande atração do momento, conseguindo roubar toda a atenção anteriormente cedida às outras prostitutas.

Completamente exausta, reuniu todo o dinheiro recebido e o guardou em um canto do guarda-roupa, onde somente ela saberia encontrar. Precisaria tomar cuidado com as cobras que habitavam aquela casa, pois estas poderiam estar sentindo inveja do sucesso das irmãs.

Antes de dormir, quase na hora do sol nascer, Katherine se arrastou para a banheira. Precisava ficar limpa para mais um dia de longo e intenso trabalho.

Gritou.

Sem fôlego, mergulhou nas águas. Submersa, esfregava loucamente a esponja em seu corpo, desejando retirar todas as sujeiras adquiridas naquele dia. Antes de ser obrigada a vendê-lo e entregá-lo a homens que não amava, tinha seus princípios e sonhava em se casar virgem com alguém que fosse honesto e trabalhador, com quem pudesse construir uma família e viver de forma calma. Katherine nunca tivera grandes ambições como as outras garotas tinham, de querer casar com lordes ou príncipes belos montados em cavalos brancos. Tinha uma visão diferente das jovens e os seus próprios sonhos.

Entretanto, todos eles foram mortos ali, junto com uma parte de seu coração que foi indesejavelmente arrancada. Nunca mais seria a mesma pessoa.

Uma nova Katherine havia nascido, sendo o oposto da anterior.

Uma Katherine sem cura.

Uma Katherine impura.


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Notas finais do capítulo

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Aceito opiniões :D