O Colar do Parvo escrita por Marko Koell


Capítulo 3
Estranho




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Fazia três semanas desde que eu tomei a decisão de voltar pra escola. Pra mim, aquilo estava sendo uma tortura, não era nada de mais, sendo que o pessoal na escola já não dava tanta importância para o que tinha acontecido. Na realidade eu estava feliz pelos meus pais, que estavam felizes por eu ter “acordado” pra vida. Na escola era meio complicado, eu via Matheus com seus amigos subindo e descendo as escadas da escola, ou no intervalo conversando, e eu sempre estava sozinho, pensando se ele viria me chamar para se sentar com ele, obviamente, se sentar com seus amigos. Não que eu não tivesse outros amigos, mais eu pensava que não queria passar por algo tão ruim quanto o que houve comigo, e se acontecesse novamente eu não queria sofrer mais. Não novamente.

Alguns alunos das turmas menores sempre me fitavam no intervalo, estivesse eu onde estivesse, ou na cantina comprando algum lanche, ou sentado na mesinha no jardim da escola. Eu estava lá, sempre sozinho evitando contato com todos. Eu sabia que aquilo não era normal, pelo menos não o tanto que era para eu fingir estar sendo. Mas eu não dava muita importância por ficar sozinho. Na sala de aula era a mesma coisa. Eu lia os textos de português, entendia-os, fazia as provas de matemáticas e tirava boas notas. Foram três meses, em que eu estive ausente mais parecia que nada havia mudado. Eu era um bom aluno, isso eu não podia negar. Mesmo na época em que meus amigos, estavam vivos. Sempre conversávamos na sala de aula, mas éramos todos inteligentes. Coitados dos professores, que por mais que queriam nos separar, não conseguiam. Nós tínhamos boas notas e isso era o que realmente importava.

Mas nessa altura, meus amigos mortos já não me faziam perder tanto o sono, quanto a questão de Matheus. Quando o via, e notava que ele piscava para mim, ou fazia um singelo movimento com a cabeça, me cumprimentando, me deixava louco. Seu cheiro parecia dominar o meu quarto de noite, fazendo com que eu cobrisse meu nariz com o cobertor para tentar evitar aquele delicioso cheiro. Eu achava tudo àquilo anormal, e muitas vezes quando Matheus olhava pra mim na escola eu o hesitava. Eu perdia meu olhar nas paredes e me sentia vazio, sabendo e, misteriosamente, sentindo que ele não estava se sentindo tão bem com aquilo.

Um longo mês havia passado desde então e estávamos quase no final do terceiro bimestre escolar. O pessoal da classe já fazia planos para o final do ano, aonde iriam e o que fazer. Para o pessoal do terceiro ano é apenas festa, lógico que Matheus estava super feliz, pois já tinha garantias de que passaria de ano. Sim, ele era mais velho do que eu, dois anos, e faziamos aniversário no mesmo dia.

Um dia, eu estava na biblioteca procurando por um livro de biologia e folheava no corredor o livro sobre A Teoria da Evolução de Charles Darwin, um livro bastante interessante, mais que naquele momento foi completamente ofuscado pela a imagem de Matheus aparecendo ao meu lado.

– Olá Kayo, tudo bem? – disse ele bem baixinho.

–Sim e você? – eu disse mais baixo ainda. Eu estava de frente pra prateleira, ainda com o livro na mão, enquanto ele encostou-se a ela e me fitou – Deseja alguma coisa? – eu perguntei.

– Na verdade eu queria te fazer uma pergunta, e depois uma proposta! – disse ele com uma voz tão suave quanto uma brisa no final da tarde.

– Pergunte e depois faça! – eu disse. Obviamente que milhares de coisas passaram pela minha cabeça.

– Bem a primeira é a pergunta, eu queria saber o porquê você fica tão isolado? Eu sei que é complicado, mais eu já lhe disse, não tem problema de ficar conosco. E a segunda é, bem estamos pra fazer aniversario e eu acho que seria legal se fizéssemos uma única festa. O que acha?

Fazer uma única festa? Não acredito que ele propôs isso. Não que eu quisesse que ele propôs-se outra coisa. Tudo bem, eu até queria. Fiquei surpreso sim, não nego. Olhei para seus olhos azuis e mordi o canto do lábio.

– Eu não sei se quero festejar meu aniversário esse ano. Não tem clima. – eu disse olhando novamente para o livro.

– Bem, meu irmão e eu estávamos planejando isso há tempos, e ... bem você estava incluído nos planos dele, só que você não iria saber. Ele queria que fosse surpresa. – ele disse, ainda olhando para mim.

– Surpresa? Porque Júnior faria isso? Ele sabe que eu odeio surpresas.

– Eu sei, aliás, nós dois sabíamos disso. – disse ele rindo – Mas seria legal ver a sua cara de completa insatisfação e depois de alivio por ninguém ter esquecido o seu aniversário.

– Ah, você foi meio estúpido agora!

– Desculpa! Não foi essa a minha intenção. – disse ele com um riso encabulado – Mas então, eu sei que não tem clima, mais meu irmão queria, acho que não custa fazermos.

Oras, porque ele foi dizer aquilo? Dizer que Júnior queria, era algo como o ultimo desejo, eu não podia dizer NÃO, mas também eu não queria ir. O que fazer?

– Está bem, faremos então! – saiu mais rápido do que eu quisesse.

– Beleza. – disse ele – A Aline vai te ligar, ela está me ajudando com isso tudo, não sou do tipo que dou muita atenção pra as coisas

Nesse momento senti vontade de matar Aline.

– Está bem, eu espero alguém entrar em contato comigo.

– Ok, e ... por favor, veja se amanhã fique com a gente, você será bem vindo. É triste ver você sentado sozinho naquela mesa.

Impressão minha ou ele estava preocupado com a minha situação?

– Ok, amanhã nós veremos isso. – eu disse com uma risadinha de leve.

– E... se ainda não leu esse livro, leia. Terceiro ano, no ano que vem, não é? Trabalhos e provas sobre a tal teoria da evolução.

– Obrigado pela dica!

– OK, tchau.

Eu acabei colocando o livro novamente na prateleira e sai da biblioteca, sem saber o que dizer. Matheus não era do tipo que ia com a minha cara quando Júnior era vivo. Por mais que meus sonhos por ele eram muito evidentes para mim, eu tinha que saber o porquê dele me tratar tão bem.

Há muito tempo atrás Júnior chegou à cidade junto com sua família, seu pai era gestor de uma grande fábrica de carros daqui. Ele tinha onze anos quando chegou e logo quando apareceu na escola eu o notei. Não pela beleza, porque isso Júnior naquela época não tinha muita, mais sim pela timidez ao qual ele entrou pelo portão de entrada. Completamente sozinho, como um cão sem dono. Logo atrás dele entrou um menino, um pouco maior e já com uma aparência mais masculina, esse era Matheus.

Ele sentou numa das mesas ao lado daquele belo menino e ficou parado por lá algum tempo. Eu, como um grande popular na escola acabei indo até eles.

– Olá, tudo bem com vocês? – eu disse – Alunos novos, legal!

Júnior tinha minha idade, mais ali parecia ter muito menos.

– Nós estamos bem, e você quem é? – disse Matheus.

– Meu nome é Kayo, estou no quarto ano...

– Quarto ano? – disse Matheus.

– Sim, algum problema?

– Não, nenhum problema! Vamos Júnior temos que ir até a direção da escola.

Ambos saíram e me deixaram lá, sozinho. Evidente a falta de educação de Matheus naquela época, e eu confesso que os anos seguinte só pioraram.

Júnior acabou indo para a minha turma, e lógico que eu já havia comentado com todos sobre a falta de educação do menino que estava com ele.

– Devem ser irmãos. – disse uma colega minha.

Ele sentou no fundo e ficou olhando pela janela, como se estivesse preocupado com alguma coisa lá de fora. Ninguém falou com ele durante toda a aula, e nas demais que se seguiram. No intervalo ele levantou, desceu as escadas e foi para o lado de fora da escola, onde se encontrou com seu irmão que parecia já ter feito amigos.

Alguma coisa tinha me chamado atenção em Júnior, eu perdi longas semanas tentando entender o que se passava na cabeça dele, então um belo dia ele veio falar comigo.

– Oi! – disse ele timidamente na sala de aula, em um dia muito frio. Não havia muitos alunos na escola naquele dia, e minha classe estava bem vazia.

– Nossa! Você fala? – eu disse rindo, sarcástico.

– Parece que sim! - disse ele.

– Então fale!

– Não é nada não, só queria mesmo lhe dar “oi”. Mas você tem uma educação, como bem se podia ver.

– Como assim? Você chega aqui na escola com seu irmão e eu com toda a boa educação que meus pais me deram fui lá, falar com vocês e seu irmão me deixa falando sozinho. Fora você que chega à sala de aula e não fala com ninguém, e eu que não sou educado?

– Desculpa, Matheus é realmente estúpido. E quanto a mim, não sou mesmo de falar.

Ele acabou virando e me deixou ali pensando o porquê ele não era de falar. Na verdade ele era muito estranho.

Algum tempo depois comecei a perceber que ele tentava se aproximar de mim, e da turma ao qual eu sempre andava. Ficava sentado de lado, prestando atenção em nossas conversas.

– Ele é estranho, mas parecer ser uma boa pessoa. – eu disse para o pessoal – Eu vou convidar ele pra ficar com a gente no intervalo.

Nós éramos crianças naquela época, mais apenas para os olhos dos adultos. Na escola, nos forçavam em ler grandes livros, muitas vezes complicadíssimos. Nós tínhamos debates em classe, discussões em grupo. Íamos a conferências dos mais variados assuntos. Éramos de classe média, ou para muitos, apenas ricos. Estudávamos em uma escola boa que tinha como meta criar profissionais e não apenas estudantes. Naquela época eu achava aquilo ridículo, mas digamos que hoje eu vejo que isso valeu à pena. Não que eu tenha usado muito disso em minha vida, pelo contrário. Éramos crianças com personalidade já definida, e um aluno da quarta série brincar no playground da escola era realmente infantil. Então ficávamos sentados nas mesas do jardim da escola jogando conversa fora. Talvez Júnior se sentisse melhor ali com a gente do que com os amigos do sexto e sétimo ano de seu irmão.

– Quer ficar com a gente? – eu disse a ele.

– Não sei, eu acho que Matheus não vai deixar.

– E porque não deixaria? Nós não somos extraterrestres, não iremos te capturar e colocar chips em sua cabeça.

– Eu sei. – disse encabulado – Mas ele é meio mandão. Quer que eu tenha amigos de “mais nível”

– Mais nível? Como o dele, por exemplo! – eu disse olhando para o grupo de Matheus, ao qual brincavam de uma brincadeira idiota, parecido com pique - esconde.

– É! - disse Júnior rindo.

Tão misterioso Júnior entrou na escola aquele dia, ele ficou com a gente, fitando teu irmão que fazia o mesmo. Logo o sinal bateu e voltamos para a sala e Matheus chamou seu irmão de lado para conversar. Eu segui em frente sem me preocupar. Parecia que os dois estavam discutindo.

Sei apenas que daquele dia em diante Júnior não era mais o mesmo. Ele conversa com a gente, aliás, ficava o tempo todo com a gente. Mostrou-se brincalhão e nada ingênuo com brincadeiras de duplo sentido. Desde então Matheus sempre me encarava, aonde quer que me encontrava. Por várias vezes pessoas vinham me dizer que ele falava mal de mim e que o grupo de amigos deles não me suportava. E sinceramente eu também sentia o mesmo.

Na escola acabou criando-se dois grupos, o meu e o de Matheus, e Júnior sempre estava no meio. Era uma idiotice completamente sem nexo. Júnior nunca me disse nada sobre o porquê Matheus me odiava tanto, quando eu perguntava, ele mudava de assunto tão rápido quanto uma bala que tinha sido disparada.

Pra mim, era complicado ficar com o grupo de Matheus, sabendo que tanto ele, quanto a corja que ele andava, e que eu não suportava, estavam me querendo por perto, sendo que na realidade quem queria ele era eu.


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Notas finais do capítulo

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