O Colar do Parvo escrita por Marko Koell


Capítulo 4
Falta




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Eu estava dormindo num longo e delicioso sono, já que há tempos eu não dormia tão bem. Mas não tardou até que eu acordasse com o telefone tocando constantemente. Era domingo e meus pais não estavam em casa, provavelmente deveriam ter ido até a igreja, não iriam demorar. Eu atendi ao telefone, ainda que dormindo.

– Alô?

– kayo?

– Sim, quem é?

– Aqui é Aline, tudo bem?

Ela me ligou, que merda!

– Olá, tudo bem? – eu disse sentando na cama.

– Sim, então o Matheus pediu pra eu te ligar, a respeito da festa. É na semana que vem, nós temos muito o que fazer.

– Ah, sim! Muito que fazer? Como assim? – pelo jeito que ela tinha falado ao telefone, parecia que algum imperador iria fazer aniversário.

– Convidados, o lugar, o bolo, bebida, comida... essas coisas oras!

– Não sei Aline, faça qualquer coisa. Não vou chamar ninguém, eu não tenho quem chamar... – minha voz embargou, todos meus amigos tinham morrido no acidente.

Alguém tem que ter Kayo! Mas então você me da carta branca?

– Sim!

Ok, tchau então, bom domingo! – disse ela desligando o telefone antes mesmo de eu dizer “obrigado”.

Que mal educada. Mas também não era de se esperar sendo que era o caso de Matheus. Mas eu acabei me contendo, já que Matheus parecia receptivo a mim, logo sendo, todos os outros também seriam. Levou um tempo até que eu resolvi levantar da cama. Quando o fiz fui ao banheiro tomar banho. Ao sair à campanhia tocou.

– Ah, olá! – eu disse ao abrir a porta. Ali um homem com uma roupa esportiva, com um capacete e um papel na mão.

– Eu poderia falar com algum responsável? – disse ele com uma voz rouca.

– Não tem ninguém em casa, o senhor é quem?

– Eu sou policial.

Eu não sabia que tinham mudado o uniforme da policia. Contive uma risada para não criar problemas.

– E o que deseja? – eu perguntei.

–Você por acaso é maior de idade?

– Não!

– Então não tenho o que falar. Quando seus pais estarão em casa?

– Nossa! – eu disse virando os olhos. Senti-me incomodado com aquilo – Eles devem ter ido à igreja, logo devem voltar.

– Eu espero ali na moto então.

– Está bem. – eu não resisti e acabei fechando a porta na cara daquele suposto policial.

Eu fui até meu quarto e liguei para meu pai para informar que havia um policial ali querendo falar com ele, e ele me disse que não demorava a chegar. Realmente não demorou, quando dei conta ele estava na calçada conversando com o rapaz que logo foi embora. Desci a escada e fui ao hall da minha casa e meu pai estava com uma feição aterrorizada.

– O que foi pai? O que ele queria? – eu perguntei. Alguns instantes depois ele começou a falar.

– É um mandato, você precisa comparecer a delegacia para prestar depoimento sobre o acidente. – minha mãe apareceu na porta naquele momento – Ele disse que soube que há mais de um mês que você esta indo a escola, e então acham que já deram tempo suficiente pra você se curar.

Por mais que aquilo me aterrorizava eu fiquei calmo. Pelo menos para meus pais.

– Está bem, e quando é isso?

– Na segunda-feira, depois do seu aniversário.

Minha mãe não disse nada, virou e seguiu para a cozinha. Meu pai olhou para mim com uns olhinhos tristes e foi até ela. Eu sentei na escada e pensei o que eu iria dizer a policia, sendo que não havia nada para contar. Até teria, mais será que eles iriam acreditar em mim? Meu corpo foi tomado por um tremor assustador. Ao levantar minhas pernas cambaleavam e eu respirei fundo. Não havia como fugir, eu apenas iria fazer o que tinha que ser feito. Isso já era uma decisão.

O domingo foi estranho depois dessa noticia, eu não sabia o que fazer. Não consegui ver TV, ouvir rádio, ou até mesmo ficar no computador. Meus pais ficaram o dia todo trancados no quarto, calados. E eu me sentia culpado, só não sabia o porquê de eu me sentir assim.

À noite enfim chegou, e eu a passei acordado. Pensando em formas e jeitos de falar com a polícia para que eu não parecesse um louco. Oras, não tinha sido a minha culpa, porque tanta preocupação? Porque sentir medo? Talvez pelo fato de ter visto as ambulâncias e os carros da polícia antes do acidente? Por não ter tido a coragem de gritar para todos no ônibus que iríamos morrer?

O dia enfim chegou e meus olhos ardiam por conta do sono. É horrível sentir vontade de dormir e não conseguir. Alguma coisa estava estranha no ar e saber disso e não conseguir ver o que era me deixava louco.

Na escola Matheus veio falar comigo, pedir para que eu ficasse com a sua turma no intervalo, eu disse que talvez iria, pois tinha trabalhos a fazer e tinha que ir até a biblioteca.

– Tem alguma coisa ou alguém naquela biblioteca que faz com que você não saia dela? - perguntou ele.

– Não!

– Já estive no segundo colegial Kayo, não tem tantos trabalhos assim.

Acabei dando uma risada e seguindo até a sala onde tive a pior aula de toda a minha vida. Não pela matéria ou pelo professor e sim por saber que a cada minuto que se passava eu teria que relembrar com detalhes daquele dia. Isso me atormentava. Naquele momento Matheus nem era mais o foco.

Eu acabei, no intervalo, indo se sentar com Matheus. Ele pareceu feliz, e aquilo me deixou bem. Mas eu estava entrando em um terreno perigoso demais. Eu não sabia se ele era igual a mim, ou sentia algo, ou tinha alguma tendência. Eu não podia cometer nenhuma gafe. Os únicos que sabiam de mim morreram naquele dia.

Já era sábado quando o telefone tocou e minha mãe disse que era Matheus. Eu logo atendi ao telefone.

– Fale!

Como você está? – perguntou ele com uma voz melosa.

– Sobrevivendo e você?

Não estou muito bem. Queria conversar com alguém, e não sei o porquê pensei em você. Aliás, isso esta acontecendo muito comigo. – ele pareceu tímido nesse momento.

– Sério? – eu disse com calma – E isso é um bom sinal?

Não sei, digamos que eu ainda estou avaliando isso!

Então eu tinha chances? É isso que eu devo ter entendido.

– Hm! Se você diz. Mas o que houve? Do que precisa? - eu disse entusiasmado.

Na verdade eu queria te ver, teria como?

– Mas agora são onze da noite, Matheus!

– Eu sei, e esse não é um bom horário? – disse ele.

– Eu ia falar uma coisa, mas deixe pra lá... – eu ria quando ele me interrompeu.

Fale, não precisa ter medo.

– Medo? Eu com medo? Mas enfim Matheus aonde quer ir?

Pode ser na praça perto da sua casa?

– Mas é longe da sua...

Eu vou de carro, meu pai libera pra mim. Pode ser?

– Estou indo lá, te espero ali em frente ao banco do centro, ok?

Está bem!

Não sei em qual das situações eu tremi mais, se ao saber que eu teria que ir a polícia ou de ir me encontrar com ele. Eu coloquei o tênis, uma blusa de frio e sai, sem falar aos meus pais aonde ia.

– Eu já volto, será rápido. – fechei a porta e segui.

A rua da minha casa era longa e larga, havia árvores por todos os lados e de variadas as espécies. Não havia ninguém nas ruas por onde eu passei, tudo estava quieto demais.

Virei à esquerda aonde segui outra larga rua, essa rua era conhecida como o Lar dos Idosos, já que a maioria dos moradores dela era de velhinhos, e conseqüentemente suas casas eram também. Virei à direita e segui. Ali tinha alguns botecos, alguns bêbados. Fora as luzes do poste que naquela noite pareciam sombrias. Eu iria sobreviver, disso eu tinha certeza.

Quando eu cheguei à praça, eu pude ver dois homens sentados na beira da calçada, bebendo. Vestiam roupas sujas e tinham um mau cheiro, eram mendigos. Os dois conversavam coisas estranhas, falando desde a conspiração sobre extraterrestre a palhaços de circos. Eu caminhei pela praça que era oval, e imensa, passando por um longo corredor de pedras. Em volta dessas ruas na praça, tinha um pequeno cercado que separava o gramado. As árvores eram enormes e cobria todo o céu estrelado, alguns postes estavam com luzes apagadas deixando aquela praça imprópria para ver alguém. Tinha-se que tomar muito cuidado ali, pois aquela praça era perigosa, apesar que eu tinha a sensação que nada de ruim iria me acontecer.

Logo avistei o tal banco que eu havia falado para Matheus e pude ver que ali não tinha ninguém. Eu estava no centro da praça agora, olhando a escultura de bronze de um homem alto e corpulento, com roupas de guerras, um rifle numa das mãos e o outro braço levantado, com o dedo indicador esticado para o alto. Ele estava em cima de um monte e ali uma pedra com uma placa dizia:

Seriam tantos os defeitos de um homem,

que apenas a força da natureza seria capaz de amenizá-los

Eu nunca entendi essa frase. Bem até entendo ela, mais porque debaixo de um soldado?

– Kayo? – era familiar. Eu me virei.

– Olá Matheus, bem? – eu disse timidamente e sentei no banco. Matheus ficou de pé olhando para a escultura.

– Bela ela, não é? Dizem que este homem esta enterrado aqui debaixo dessa estátua. – ele se virou pra mim e sentou do meu lado, com as mãos nos bolsos.

– Se for verdade, eu vou sair correndo agora mesmo.

Ele apenas riu. Ele vestia uma jaqueta branca e uma calça preta. Seu cabelo estava todo bagunçado, por conta do vento que soprava forte, que ali no centro da praça parecia ser todo concentrado.

– Mas o queria, eu fiquei preocupado. – eu disse.

Ele ainda ficou calado, observando a imagem. E eu também me calei. Eu tentei pensar o que poderia ser, mas nada vinha na minha cabeça.

– Eu estava sentindo sua falta, Kayo. – ele disse, sem olhar pra mim, ainda olhando para a escultura.

Meu coração parecia ter parado de bater naquele. Eu fiquei confuso, mas eu tinha que continuar aquela conversa a fundo.

– Como assim? – eu perguntei.

– Não sei! Eu simplesmente sinto sua falta, é algo tão estranho pra mim e ao mesmo tempo tão constrangedor.

– Eu não estou entendendo Matheus. – me fazer de desentendido era a melhor opção.

– Você bem sabe o que eu estou querendo dizer, burro você não é! - ele falou rispidamente.

– É eu sei o que você esta querendo dizer, mais eu não posso tomar conclusões precipitadas.

– Eu não paro de pensar em você, desde o dia que você chegou na escola e nos vimos, e nos abraçamos. É uma coisa louca, sem noção alguma pra mim.

Ele estava realmente conturbado. Eu percebia em sua voz uma tristeza, uma angustia. Algo normal. Eu também sentia a mesma coisa.

– Como foi com você? – ele me perguntando olhando pra mim.

– O que?

– Como foi, quando você descobriu que... era diferente? – sua voz estava mais tímida do que antes.

Eu resolvi falar abertamente.

– Eu não sou gay, Matheus. Se for isso que você quer saber. Sinto atração por ambos os sexos, então... – a que eu queria enganar dizendo aquilo. Matheus pareceu me olhar de cima a baixo não acreditando muito no que eu havia dito.

– Isso seria um alivio? – perguntou ele ironicamente.

– Não existe motivo pra se sentir aliviado. Apenas aceite. Faça o que tem vontade de fazer.

Nós realmente estávamos tendo aquela conversa? Matheus estava deliberadamente dizendo que acreditava ser gay, e ainda por cima dizendo que não parava de pensar em mim. Matheus era lindo, tinha um corpo todo trabalhado, feito de tantos dias na academia e jogando futebol com os amigos. Aline era apaixonada por ele, assim como mais da metade das outras meninas da escola, ele podia ter qualquer uma... mas naquele momento ele estava do meu lado dizendo as duas coisas que eu estava querendo ouvir, e eu apenas perplexo com tão situação, tentando me conter para não parecer atirado demais.

– O que eu mais queria fazer agora... é beijar você... nesse momento, mais isso vai contra com o que meus pais me ensinaram.

Aquilo foi como uma faca no peito. O que eu tanto queria ouvir fora dito. Eu nunca tinha sido tão feliz na minha vida, mais ao mesmo tempo em que aquilo enobrecia meu ego, a razão vinha e me fazia dizer não a Matheus. Ele sentia vontade de me beijar!

– Matheus por mais que eu também queira, não sei se isso seria a melhor coisa a se fazer.

– Eu sei, mais não posso perder isso e ficar na dúvida. Isso seria um caos na minha vida. Eu gosto mesmo da Aline, ela me satisfaz tanto na cama quanto fora nela. É atenciosa, graciosa, amiga, mais não sei se posso continuar com isso.

Eu não acreditei nas palavras que saíram da minha boca:

– Eu acho que... sinceramente, você só pensa em mim por causa do Júnior... eu era muito ligado a ele e então...

– Esta querendo dizer que eu quero estar do seu lado porque você me lembra Júnior? – ele riu – Não se iluda Kayo, sou grande o suficiente para saber dos meus desejos, até mesmo os mais libidinosos.

– Eu não quis dizer isso...

– Mas foi exatamente o que disse... – Matheus pareceu murchar naquele momento, talvez ele não tivesse coragem para me beijar, mas eu tive quase certeza que ele esperava que eu o fizesse. Ele não recusaria, ainda mais me dizendo que era isso o queria.

Mas eu queria acreditar, mesmo não sabendo os reais motivos, que ele apenas me queria por perto por conta de Júnior. E eu rezava para que eu estivesse errado.

Matheus tornou a olhar para a escultura de bronze do soldado e ficou mudo por uns instantes. Depois levantou e disse que ia embora.

– Me desculpa não oferecer uma carona pra você, mais se você entrar naquele carro eu faço alguma besteira. Obrigado por ter me ajudado.

Ele virou e sumiu na escuridão da praça.

Eu suspirei e subitamente comecei a chorar. Eu levantei, olhei para aquela escultura, e algum tempo depois voltei para casa.


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