Eles escrita por ItS


Capítulo 8
Fugitivos


Notas iniciais do capítulo

Mais um episódio o/
Eu só postei ele pra desejar a vocês, meus queridos leitores, um feliz natal. Boas festas pra todos nós! Eeee
Ps.: O resto dos personagens será apresentado no próximo capítulo.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/444544/chapter/8

1

Dia: 22 de março de 2047, às 10:27.

Patrícia era aquele mulherão. Tinha seus 18 anos e ansiava por sair de casa; não gostava de viver sob a barra da saia da sua mãe, esta sendo divorciada. Patrícia não gostava muito de seu pai, mas sempre que precisava de alguma coisa, ia correndo pedir para ele. O pai dela era muito rico e vivia atolado em seus próprios negócios com o prefeito Isaac e a mulher dele, Barbara. Patrícia achava que era esse o motivo por sua mãe ter se separado. Talvez, ainda mais, o pai dela tivesse uma leve queda por Barbara, mas isso era muito discreto, visto que ela era a primeira dama da cidade.

A mãe de Patrícia era negra, e estas características ficaram para ela. Patrícia era alta, com muitas curvas que faziam garotos babarem e implorarem para poder ficar com ela. Ela normalmente negava, pois gostava era de um policial que trabalhava próxima a sua casa. O nome dele era Luke. Ele tinha um corpão, assim como ela. Tinha feições brandas, mas, ao mesmo tempo, selvagens. Ele normalmente usava um topete naqueles fios castanhos. Patrícia achava que seus cabelos negros e enrolados que caiam em cascatas ficariam perfeitos entrelaçados com os deles.

Mas agora tudo isso era passado. Ela agora estava num novo local. Não sabia exatamente onde era e o porquê dela estar ali. Todavia era um lugar aberto, de frente para o mar. Poderia ser Lago das Montanhas, mas o oceano era diferente de lá. Era mais límpido, reluzente; as águas da sua cidade eram mais escuras e sujas devido ao constante fluxo de banhistas descuidados. A areia daqui também era mais branca e fina, diferente da que se encontrava lá – escura, com restos de lixo e não muito macias –. Mas, em alguns pontos da cidade, o mar se encontrava em perfeito estado. Era nesses locais que ela costumava tirar suas fotos de biquíni, exibindo seus seios enormes, cintura fina e bunda avantajada. Gostava de postar no Facebook para fazer inveja nas garotas populares de sua faculdade. – Ela cursava direito.

Cursava.

Perceber que o verbo estava no pretérito marejou seus olhos. Ela não estava mais em uma de suas aulas. Estava, provavelmente, num lugar remoto de Lago das Montanhas. Ela tinha sido largada lá pelos brutamontes que a pegaram quando estava lá em frente a lanchonete, fitando todos os acontecimentos, pois com certeza iria ser um dos temas abordados nas próximas redações de sua faculdade. Mas ela não se lembrava de como havia parado ali. Não sabia se fora de carro, helicóptero ou barco.

Mas ela estava ali.

E estar ali não parecia ser boa coisa.

Não mesmo.

Afinal, um homem com aparência selvagem olhava maliciosamente para ela. Mas certamente ela poderia matá-lo. Podia simplesmente tocar nele e emitir um choque fortíssimo. Sim, ela podia disparar descargas elétricas. Ela não usava com muita frequência, mas já havia matado um cachorro eletrocutado. O animal havia mordido o braço da jovem. Era um pitbull. Ele estava mordendo-a, e apertava veementemente. Ela começou a gritar. O pitbull era deu seu amigo. Bem, ex-amigo, pois eles brigaram após saber que ela era um deles e que tinha matado seu cachorro com um choque de centenas de volts.

Talvez Patrícia tentasse fazer isso. Mas só faria se fosse estritamente necessário.

E era; o homem correu em sua direção fervorosamente.

2

Dia: 21 de março de 2047, às 19:09. Arredores da lanchonete.

Daniel estava aturdido demais para pensar. A garota que gostava havia sido assassinada a sangue frio bem na sua frente. Quer dizer, não só na sua frente; mas na frente de várias pessoas. Elas estavam olhando sem fazer nada. Não moviam uma palha sequer. Pareciam estar tão atordoados quanto ele. Mas será que essa atrocidade ficaria por isso mesmo? Ele achava que sim. Uma garota fora presa somente por atacar um homem que mantinha vários reféns; fora que eles haviam trucidados diversos e estuprado dois de seus colegas. E agora isso: estavam prendendo as pessoas que fossem mutantes. Provavelmente era isso. Daniel achava que era isso. Achava, não. Tinha certeza. E quem se opusesse a isso, seria morto. Que ótimo.

Minha cara população, a cena que estão vendo aqui é a mais pura e nova realidade. A garota era um deles. E devia estar correndo para matar alguém... – iniciou o chefe da polícia que, segundo a memória fotográfica de Daniel, se chamava Célio – Nós não permitiremos isso.

Daniel sabia que não dizer isso, mas disse.

Devia... Você não tinha certeza. Como pode matar alguém simplesmente por ‘achar’ que ela machucaria alguém? E não só por isso – as veias de seu pescoço pulsavam, a voz estava com mostras furiosas, os olhos relampejavam raiva –, vocês prenderam a garota que ‘atacou’ um cara que fez coisas bem piores! Vocês não estão agindo coerentemente. Isso é contra a lei!

Você está ultrapassado, garoto. As leis mudaram.

É, claro. Tinham de estar mudadas para acontecer isso.

E elas já foram aprovadas pelos superiores? Ou vocês estavam somente tentando me ludibriar com essa imundície que sai da sua boca?

O povo olhava para a discussão. Não queriam intervir. Talvez estivessem dando moral para o garoto, mas logo isso iria mudar.

Isso, meu povo, é a prova de que eles se acham mais do que agente, somente porque podem fazer luz ou mudar de lugar num piscar de olhos. Isso, meu povo, é a prova mais correta de que eles estão tentando criar uma rebelião para acabar com os normais. Eles querem a cidade só para eles. Eles querem nos destruir.

As palavras atingiam as pessoas como se tivesse dotadas de coesão. E, claro, não estavam.

Você está banalizando os conceitos pré-existentes. Nada do que você diz tem total veracidade. É nítido que alguns possam querer derrubar o governo com um golpe de Estado ou coisa parecida, mas não se pode generalizar. Generalizar torna as coisas errôneas. Antes de qualquer coisa, o correto seria vocês ponderarem sobre o assunto; terem total noção do que estão fazendo, e não sair pela cidade borbotando brilhos de não-sei-aonde e capturando os mutantes. Vocês estão apenas linchando como bem entendem. Isso não tem nexo algum! – ele parou para respirar – Vocês deviam coibir a ação dos que fazem coisas vis e tentarem uma ressocialização. Afinal, nós, seres humanos, somos inerentes à racionalidade, e não precisamos resolver tudo baseando-se somente na violência. A conversa é o meio mais fácil para se chegar num acordo são. As coisas que estão fazendo parecem ser feitas ao léu, atirando a esmo e torcendo para que seja algo judicioso. Mas, não, não é. – ele poderia continuar falando por horas e horas, mas foi interrompido por um dardo que lhe deu um tremendo choque, fazendo-o desmaiar.

Cale essa boca, seu nerd imundo. – sussurrou. E, para os outros que assistiam: - Não caiam nessas palavras. São todas inventadas; ele estava tentando enganar vocês. A verdade é que eles são aberrações que querem acabar com os normais. E, é claro, nós não deixaremos isso acontecer, certo?

Um grito soou. Todos concordavam com aquelas palavras.

Era mais fácil entender o que Célio dizia do que tentar compreender o significado dos polissílabos ditos pelo garoto que, agora, jazia no chão. Não, morto, mas ferido; principalmente o orgulho.

3

Dia: 21 de março de 2047, às 19:04. Arredores da lanchonete.

Quando aqueles brilhos começaram a cair, Luke se perguntou o motivo deles. Seria alguma experiência? Talvez fosse apenas para avisar que o trabalho havia terminado. Ele não sabia e parecia não querer saber. Tudo que estava prestando atenção era nas suas roupas brilhantes. A garota que havia sido estuprada olhava para ele com espanto. Ela estava debaixo da marquise, o que permitiu que ela não recebesse a dose luzidia que caía do céu. Não caía bem do céu; Luke sabia disso. Devia estar irrompendo do avião que havia passado ali. Ele conhecia aquela marca de aviões. Se ele não estivesse enganado, ele teria certeza de que era do prefeito. Mas ele só usava em casos particulares. Mas por que diabos o avião estava voando numa noite como aquela?

Luke, você...? – disse Célio, se aproximando do subordinado. Ele trazia uma cara dotado de ceticismo; parecia não acreditar que as roupas do homem brilhavam.

Ele algemou Luke. Tratou com indiferença quanto aos murmúrios de indagação do jovem rapaz. O que era aquele bracelete? Por que ele estava recebendo-o? Por qual motivo suas roupas brilhavam? Por que somente os que possuíam roupas brilhantes estavam sendo algemados? Qual era a diferença entre eles e os que estavam com roupas apagadas? O que era aquele brilho? E por que ele caía provavelmente do avião do prefeito? Qual era o objetivo daquilo tudo?

Eram muitos perguntas a serem respondidas.

Luke foi levado para o camburão, assim como todos os outros que brandiam os braceletes cinza. Ele chegou a ouvir tiros e uma longa conversa entre um jovem e seu chefe. Pareciam discutir essas medidas. O garoto de voz rouca – provavelmente passando pela mudança de voz – parecia saber o motivo daquilo tudo. Ele falava com firmeza; sensatez. Por um momento, Luke desejou que ele estivesse ali e lhe contasse o que estava acontecendo. E, após alguns átimos eternos, o garoto apareceu. Sentou-se ao lado de uma garota com uma blusa de uma banda rock and roll.

O que está acontecendo aqui? – perguntou o policial algemado.

Que ironia.

Um dos membros da polícia não faz nem ideia do que está acontecendo... – zombou a garota. Ela era até bonita.

Menos, Anne. – repreendeu o rapaz – Ele realmente não deve saber sobre isso. Tudo deve ter acontecido debaixo dos panos, somente entre os cargos mais elevados.

Luke assentiu. Não estava gostando do rumo que a conversa estava tomando, mas ainda continuava ouvir o garoto falar. Contava que o governo jogara aquele pó brilhante e que, somente nas mutações, o efeito aparecia, que era o de deixar as roupas brilhantes. O rapaz – de nome Daniel – achava que era por causa de alguma reação química que ocorria dentro do corpo dos mutantes. Ele só sabia isso. E Luke entendeu até aí. Mas, agora, para onde eles estavam sendo levados?

Mas o pior de tudo: ele agora era uma aberração “assumida” – era assim que as pessoas chamavam as aberrações que já tinham encarado o fato de que era um –. Ele ainda não tinha falado nada, mas possivelmente não teria como discutir com alguém perante essas circunstâncias. Contudo, ele ainda não se recordava de seu dom. Não sabia o que podia fazer. Talvez o brilho aparecesse até em quem não sabia, mas que já carregava consigo as características mutantes no DNA, assim como uma água que parece translúcida, entretanto ainda leva os microrganismos e você a toma sem saber disso.

Água.

Seu dom era relacionado com isso. Agora ele se lembrava. Ele podia mexer a água. Era algo ínfimo se comparado ao que outros podiam fazer, mas ele ainda podia mover a água. Ele conseguia fazer algumas gotas flutuarem, ou mesmo mexer suavemente um copo de suco. Conseguia também levantar alguns débeis projetos de torrente. O máximo que ele conseguira fazer foi aumentar o fluxo da correnteza de um rio que corria e desembocava no mar. Foi algo muito fraco, superficial, mas ele se lembra de ter aparado um caranguejo que se deixava levar por ela.

Então agora fazia sentido. Ele estava com bracelete porque era uma aberração. E aberrações deviam ser presas, pois faziam mal para os demais. Era assim que uma pessoa normal pensava. Era assim que ele pensava.

Pensava.

Passado.

Agora ele não pensa mais desse jeito.

Ele é uma aberração.

4

Dia: 21 de março de 2047, às 20:11. Casa de Fernanda.

Mãe, olha o que está passando no jornal.

Fernanda nunca tivera o amor verdadeiro de uma família. Fernanda era modelo, mas isso nunca fora sua própria vontade. Era a da mãe, que insistia em dizer para que ela arranjasse alguém rico naquele meio. Mas ela não precisou; a mãe tinha conseguido. Sua mãe era uma alpinista social que conseguira se casar com um milionário, Lúcio. Agora elas moravam numa mansão em Lago das Montanhas e assistiam à TV.

O que está acontecendo? – perguntou a mãe, indiferente ao jantar que estava comendo.

Parece que eles estão recolhendo as aberrações. – era Lúcio que dissera isso.

O coração de Fernanda gelou. Ela era uma aberração. E se o governo estava “recolhendo” as aberrações, logo ela seria também. Claro, Lúcio podia estar mentindo, mas certamente não. Ele trabalhava em cargos que tinham ligação direta com o prefeito Isaac e era fácil de ele ficar sabendo sobre as “novidades”. Normalmente, ele sempre falava antecipadamente dos eventos que aconteceriam na cidade, pois sempre era informado antes, para que pudesse patrocinar e fazer coisas do tipo.

Como assim? – perguntou, temerosa.

Parece que o Estado de todo o mundo está com esse mesmo projeto: levar as aberrações para as ilhas que foram construídas.

Mas como eles encontrarão as aberrações? – perguntou, inquietada.

Fernanda torcia para que a resposta fosse algo como “Vai ser muito difícil, talvez impossível” e também que ele não notasse sua preocupação para com a conjuntura.

Parece que eles irão de casa em casa e usar a tecnologia que desenvolveram. – começou, enquanto mordiscava o pedaço de picanha que estava em seu prato – É algum tipo de pó que deixa o corpo deles brilhando. Algo assim. – continuou, impassível – O anúncio oficial sairá amanhã de manhã.

Mas você não vai os deixar virem aqui, certo? – ela estava muito preocupada com a possibilidade. O que iria acontecer com ela se isso acontecesse?

Ué, por que não? Eu tenho absoluta certeza de que ninguém aqui é um deles, certo? – a mãe de Fernanda olhou para Lúcio e assentiu; ela ainda não sabia que sua filha tinha poderes.

Se bem que os poderes dela seriam perfeitos numa situação como essa. Claro, se ela quisesse fugir e viver isolada. Ela, obviamente, não iria querer viver numa ilha infestada de aberrações perigosas e outras coisas piores. Ela começava a pensar seriamente em fugir da casa naquela noite. Ela poderia ficar num hotel ou escondida e esperar que passassem por sua casa e depois voltar para lá. Só que, para isso, ela precisaria de uma desculpa muito boa. E também contar com seus poderes de mimetismo. Ela conseguia transformar-se em objetos, plantas e até em pessoas. O único ponto fraco de seus poderes parecia ser o fato de não conseguir copiar animais.

Claro. – concordou, mentindo – Estou morrendo de vontade de receber um monte de brilho na minha cara. – ironizou, levantando-se da cadeira e, após limpar sua boca com o guardanapo, disse: – Perdi a fome. Vou para o meu quarto.

Ela saiu da copa e se esgueirou pelos cômodos até chegar a seu quarto. Ela imediatamente pegou uma mochila que usava para ir para a escola e a encheu com algumas roupas simples. Nem se preocupou com escovas de dentes, pentes, perfumes e desodorantes. Somente foi para a sacada e jogou a mochila por lá, o vento desgrenhando seus cabelos. Antes de sair, tomou cuidado para não se esquecer de deixar um bilhete na porta do seu guarda-roupa.

Ela se jogou da sacada. Um humano iria se machucar numa altura daquela, mas agora ela não era humana; ela era um pedaço de papel que pairou sobre o chão.

Ela retornou a sua forma normal. Olhou para cima e viu as luzes apagadas de seu quarto. Disse adeus baixinho e seguiu andando pela penumbra da noite. Lembrou-se do bilhete que havia deixado:

“Lú, mamãe, saibam que eu fui para a casa de uma amiga. Não falei com vocês, pois vocês não permitiriam que eu saísse a essa hora. Mas não fiquem preocupados. Eu volto amanhã à tarde.”

Será mesmo?

5

Dia: 22 de março de 2047, às 10:26. Casa de Daniela.

Daniela ainda estava traumatizada devido a tudo que acontecera no outro dia. O estupro duplo; o assassinato de vários reféns, inclusive de Bruno; a prisão das pessoas que brilhavam. Claro, ela não sabia o que este último tópico significava, mas sabia que não era boa coisa. As pessoas que estavam com roupas brilhando tinham sido levadas em vários camburões. E ela ficara sabendo que não era somente ali, perto da lanchonete. O pó luzidio tinha caído em quase toda a cidade. Ela não se permitiu deixá-lo cair, pois ficara sob uma marquise. Ela não sabia o que aconteceria se sua roupa brilhasse.

Até agora.

Filha, é melhor você sair daqui. – disse a mãe da jovem, ávida.

Por que, mãe? – indagou, confusa, enquanto era empurrada pela mãe até seu quarto.

Prepare uma mala com as coisas mais importantes e fuja daqui por um tempo. Leve seu celular para mantermos contato. – a filha hesitou, mas, percebendo a preocupação da mãe, prontificou-se a fazer o que ela pedia – O governo irá revistar as casas a procura de aberrações.

A mãe de Daniela sabia que ela podia fazer as pessoas perderem a concentração, fazer-nas ficarem absortas em outras coisas, distraídas. Ela já tinha feito isso várias vezes com a mãe e já tinha contado para ela sobre o poder. A mãe, afinal, entendeu a filha e ambas concordaram em não falar com mais ninguém. Ela temia alguma coisa. E essa coisa chegara. Estava prestes a acontecer. Talvez já estivesse, mas ela ainda tinha algum tempo.

O precioso tempo que podia salvar a vida da sua filha.

Filha, prometa-me que vai se cuidar. – pediu, chorando enquanto abraçava a filha à luz do sol que se esgueirava pela janela.

Só se você me prometer a mesma coisa.

A mãe assentiu.

Se cuida, filha.

O sussurro trouxe mais lágrimas para as mulheres que agora se despediam. Daniela já estava correndo, indo em direção alguma. Seguindo seu coração e as vontades imaculadas da sua mãe que, com certeza, sabia o que estava mandando.

“Obrigada, mãe.”

E Daniela chorou. Chorou enquanto andava seguindo o rumo contrário à lanchonete; seguindo o rumo contrário daquele pesadelo real que acontecera com ela.

6

Dia: 22 de março de 2047, às 10:21. Casa de Ana.

Ana estava sozinha. Tinha acabado de acordar daquele sono exaustivo devido ao tempo que passara acordada na outra noite assistindo a um filme. Era sábado, mas sua mãe era cobradora de ônibus e tinha de trabalhar cedo até nesse dia. Ela quase não tinha descanso. Seu pai era vigia e vivia dormindo no trabalho. Não era surpresa notar que ela não estava em casa de novo. Ana ainda não sabia da morte de sua amiga-vizinha, Lucy. As notícias não haviam sido transmitidas pela TV, para abafar a situação, pois ela estava intimamente ligada às invasões que aconteceriam naquela manhã.

A garota de 10 anos assistia à TV, enquanto ainda mantinha a cara sonolenta e seu pijama. Era um shortinho e uma camisa de malha leve, perfeita para o clima tropical daquela cidade litorânea. Ela assistia a um desenho. Mas, do nada, uma espécie de horário político apareceu. Ela mudou de canal, mas todos passavam a mesma falação. A princípio Ana continuou na sala e não ligou. Estava com a mente num estado de quebranto devido ao sono prolongado. Ela não gostava de dormir até tarde. Sempre a deixava desse modo: lerda e com pensamentos lentos, apáticos.

“O projeto já está sendo iniciado e, para o bem de todos, aconselhamos a seguir as ordens dos coronéis que estiverem aí. Visamos melhorar o bem estar de todos e acabar com a raça que tenta e continua tentando, de todas as formas, dizimar a raça comum.” – O prefeito Isaac estava falando sob holofotes, microfones gigantes, com uma multidão enorme na sua frente.

Foi então que Ana se deu conta do problema.

Merda.

E saiu correndo para o seu quarto. O tempo entre o corredor, a cozinha e o quarto foi o suficiente para os policiais chegarem e bater à porta. Perguntavam se tinha alguém em casa e que eles tinham ordens para arrombar todas as casas que estivessem “vazias”.

Ana já estava no seu quarto, escondida debaixo da cama. Ela segurava a própria boca para impedir que sua respiração ofegante fosse ouvida demasiadamente. Ela torcia para que os homens procurassem por alguém e, após achar que não tinha ninguém, fossem embora. Mas seria difícil alguém achar que a casa estava vazia; a TV estava ligada. Ela continuou lá, imóvel, como se fosse uma estátua roubada.

Tem alguém em casa? – perguntou um deles. A voz era firme, imponente – Não queremos machucar ninguém.

Os passos seguiram até o quarto. Ana fitou os coturnos de cores escuras e temeu por chutes em seu rosto frágil. O que iria acontecer com ela? Será que ela conseguiria fugir? Ela sentiu vontade de espirrar, entretanto, a vontade de manter-se inaudível fora maior, sufocando a defesa do corpo. As botas começaram a andar pelo quarto. Ele era grande; tinha um banheiro e duas camas, uma de casal para os pais da garota e uma de solteira para ela. Ainda tinha o guarda-roupa, que fora revistado por um dos homens.

Devem ser 3 ou 4, pensou Ana, contando os pares de pernas. Obviamente, ver embaixo da cama seria uma das primeiras opções, mas isso passou despercebido pelos homens até naquele átimo. Eles agacharam e levantaram o lençol da cama de onde Ana ainda não estava. Foram para a próxima e fizeram a mesma coisa. Ana tomou um susto e bateu sua cabeça contra o fundo da cama. Emitiu um baque alto e os homens a puxaram, colocando-a de pé.

Por que você estava escondida? – perguntou, seus olhos eram cheios de ferocidade, como se quisessem devorar a garota.

Eu estava com medo.

Medo de quê? – perguntou, fazendo um sorriso porejar de orelha a orelha; o homem gostava de se sentir medonho e assustador.

De... – ela hesitou por um tempo – Do tigre.

Que tigre? – perguntou, cético.

A embromação de Ana fizera os homens esquecerem-se do verdadeiro objetivo: jogar o pó,verificar se era um deles, e, se sim, levá-los embora.

Aquele. – ela apontou com o queixo para o banheiro.

Mas lá não tem tigre. – afirmou um deles, que acabar de sair de lá. Havia usado o vaso e fechava seu zíper.

Claro que tem. Eu vi.

Os homens começaram a acha que, talvez, a garota fosse problemática e que não passasse disso. Eles a soltaram, mas ficaram próximos a ela. Estavam vasculhando a mochila a procura do frasco grande onde havia o pó brilhante. Não encontraram. Ficaram confusos pela situação. Será que tinham perdido? Mas, afinal, onde teriam perdido? E se não fosse isso, o que tinha acontecido?

Vocês estão procurando por isso? – perguntou a garota, revelando o frasco em sua mão.

Como você pegou? – e, formulando o que deveria ter sido dito... – Me devolve. – ordenou.

Bem, não fui eu quem pegou. – expôs, trazendo um sorriso zombeteiro ao rosto – Foi aquele macaquinho.

Eles se viraram e viram, no alto do guarda-roupa, um pequeno mico. Mas ele não era comum, claro. Estava com brasas saindo dele. Tinha fogo nele. E, na verdade, ele não poderia ser de verdade. Seu corpo era feito de pano, como um ursinho de pelúcia. As costuras estavam nítidas sob a luz do fogo que ele exalava. Era ínfimo, mas, ainda assim, notório. Ele emitia relâmpagos de fogo, e parecia estar pegando fogo, mas não se importava com sua situação.

O-o que é isso? – ele estava incrédulo; nunca tinha visto o poder de alguma aberração assim. O máximo que já presenciara era algo como dar pulos altos, ficar invisível ou criar fumaça que atrapalhava a visão – Não importa. Me dá a porra desse frasco e depois se renda, aberração horrenda.

Eles sacaram as armas. O sorriso de Ana aumentou.

Agora eu posso matá-los e alegar legítima defesa, certo? Não existe uma lei assim?

Os caras não deram ouvidos, apenas começaram a disparar balas. Tudo pareceu ocorrer num átimo: a ordem do homem para atirar, as balas projetando-se na direção da garota e um imenso urso pegando fogo no meio do quarto. As balas atingiram a barriga saliente do animal que era costurado, como um bicho de pelúcia. Mas não surtiam efeito as balas. Elas apenas inflamavam mais o animal ígneo com chamas alaranjadas e cálidas. Agora o quarto pegava fogo e Ana corria de lá. O frasco ainda estava em sua posse e ela ria. Ria como se nada disso tivesse acontecendo.

Os homens, para seu azar, enfrentavam uma criatura imortal, que sugava as balas para dentro do corpo e que deixava as colunas de fogo do corpo aumentar. O urso bloqueava a porta e a janela tinha grade. Os homens não tinham saída. Eles tinham de matar ou derrubar aquela coisa e ainda por cima enfrentar um incêndio causado pela garota que atirara tochas pelas mãos. Eles estavam suando devido ao calor e, se tudo continuasse daquele jeito, logo morreriam.

Mas olha o lado bom: eles morreriam ouvindo a melodia gloriosa da gargalhada mordaz da garotinha que corria pelos corredores da casa, incendiando tudo a cada toque.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero ver vocês nos comentários!
Até,