GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 9
Interlúdio I: Diálogo com Deus no teatro da inexistência


Notas iniciais do capítulo

A primeira parte da história foi concluída! Um novo Baldwin irá surgir...



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Interlúdio I: Diálogo com Deus no teatro da inexistência

Fui sugado por um céu branquíssimo, onde rajadas de luz atravessavam as nuvens e iluminavam um horizonte sem fim. Tons de laranja e púrpura mesclavam-se no horizonte finalizando a peça que chamamos de dia. Era impossível sentir o cheiro de plantas roxas e brancas salpicadas de poeira alcalina em altas altitudes. O céu estava repleto de nuvens que viajavam vagarosamente e brincavam de enigma naquela imensidão, ludibriando aqueles que tentavam decifrar suas formas. “Um gato, ou talvez uma menina carente. Isso me lembra do cheiro de cinzas.”, pensei. Talvez cinzas coloridas por um pecado.

Levitava em espiral no que parecia ser o centro de tudo. Sentia-me leve e livre, e ascendia em meio a toda a magnificência que me cercava: raios de luz rasgavam as nuvens sem piedade, como pintores que estivessem infelizes com suas obras-primas. Artes tão perfeitas que geravam ciúme na indiscutível habilidade existente nas mãos dos artistas. Tudo transparecia tanta beleza, mas uma raiva parecia dominar aquele ambiente, semelhante a uma hostilidade. Também tive a mesma sensação em Downrio, onde algo aparentava ter falhado na tentativa de secar aquele cenário com um ódio primitivo, mas acabara deixando o lugar ainda mais belo. Talvez seu criador tivesse reparado na singularidade do que é o meio-mundo e simplesmente quisesse aquilo de volta para si e gritasse “Eu quero permanecer aqui dentro... por egoísmo. Você sempre será meu, mesmo que me odeie. Eu irei permanecer!” Mas tudo que é odiado imensamente quebra e retorna sem a mesma alma... Você não pode restaurar algo assim, mesmo que por bem.

Lutava contra a vontade de dormir eternamente e tentava manter meus olhos abertos. Lá em cima, uma estrutura semelhante a uma passarela branca parecia estar fixa na atmosfera. “Oh, então isso é o Céu”, pensei. Aquela passarela aproximava-se rapidamente.

Antes que eu percebesse, estava em pé na passarela, um caminho sólido e retangular, porém, sem proteção. Comecei a andar lentamente, um passo de cada vez. Ventava muito, logo, o medo de cair crescia. As nuvens a minha volta criavam formas de pessoas conhecidas. Elas tentavam me empurrar para o nada, mas eu desviava da melhor maneira possível. Eram imagens familiares que tentavam se vingar, ou tentavam impedir-me de prosseguir. Dúvida. “Devo aceitar que me joguem de volta para Downrio, ou devo continuar meu caminho? Será que eles não querem me salvar?!”, pensei.

Enquanto aproximava-me do fim daquele caminho branquíssimo, uma nuvem me empurrou com êxito. Um de meus pés já se encontrava suspenso para fora da passarela, quando uma mão me segurou. Virei meu rosto rapidamente e encarei Luna pairando no ar graças as suas asas vermelhas pintadas pelo pecado. Ela ainda possuía uma aparência triste e artificial, semelhante a da casa de veraneio em Downrio. Toquei seu rosto iluminado pelo alaranjado do pôr-do-sol e ela se desfez em minhas mãos, pois não passava de uma projeção. Alguém estava me torturando, desenhando com tintas caóticas um céu onde nuvens eram meu passado e lutavam cruelmente contra mim.

Olhei em direção ao horizonte, onde o sol deitava para o seu descanso diário. Desviei minha atenção para a passarela e notei que não havia mais caminho a ser seguido. Sentia raiva da facilidade com que aquele meio-mundo brincava comigo. Instintivamente, rasguei o céu a minha frente como se fosse um papel de parede. Minhas unhas ficaram encardidas de tinta e uma porta surgiu no lugar onde segundos atrás existia a paisagem do crepúsculo. “Então era tudo uma pintura? Talvez a verdade seja que a perfeição não passe de um sonho.”, disse solitariamente.

A porta, como toda aquela pintura ardilosa que me enganara, era magnífica. Não do modo que se esperava. A Porta do Céu era mais incrível. Era roxa como as plantas do deserto de Downrio e da altura de uma porta comum. A madeira parecia tremeluzir o ar em volta com uma aura lilás. Havia diversos desenhos talhados com uma riqueza de detalhes inconcebível. Percebi, por algum motivo, sem surpresa alguma, que os desenhos talhados retratavam cenas que me eram familiares. Não, mais que isso. As cenas talhadas eram minha história no meio-mundo. Minha luta com o Homem sem Rosto, a batalha na floresta de Sofia, Ozzy e a Orquestra do Caos... Mas era uma releitura macabra: Em todas as imagens, eu agonizava em dor enquanto aqueles que derrotei me subjugavam.

A aura daquela porta começava, então, a me causar náusea. Ela continuava linda, porém, tornara-se mais terrível após o vislumbre claro daquela versão deturbada de minha estadia no meio-mundo. Não me importava o fato de o espaço atrás da porta ser desconhecido, preferia-o àquela sensação. Abri-a então. Eu sabia que a porta era um limite. “Será que estou saindo do meio-mundo?”. Eu não tinha a resposta para essa pergunta, assim como não sabia as de tantas outras que me afligiam.

Primeiramente, meus olhos não conseguiam enxergar absolutamente nada, pois tudo era branco demais. Minhas pupilas se fecharam até serem quase imperceptíveis e então pude analisar o ambiente no qual eu havia entrado.

Era um teatro, com absoluta certeza. Um enorme e branco teatro. Branco mesmo! Não havia mácula alguma, as sombras recuavam para não manchar aquele ambiente, tornando as formas dificílimas de distinguir. Encontrava-me no corredor entre as fileiras de cadeiras. O palco se encontrava a uns dez metros a minha frente. Olhei então para trás, onde pela lógica, a porta a qual transpusera estaria. Espanto. Havia apenas mais branco, milhares, talvez bilhares de quilômetros – “anos-luz” – de fileiras de cadeiras que se prolongavam a partir do ponto onde me encontrava. As laterais, eu então notei, tinham essa mesma perspectiva infinita, o único referencial alcançável encontrava-se a frente.

Um palco branco com cortinas brancas, – “Tudo isso também é apenas uma pintura, se rasgar todas as realidades, verá que são pinturas sádicas em uma tela roxa, ou cinza, como o pecado.” – mas havia alguém nele. Um senhor com um terno tão branco quanto o restante daquele lugar, eu o reconheci imediatamente: Era Bastiam Godwhile. Ele estava sentado em uma cadeira branca e ao seu lado, encontrava-se outra cadeira, obviamente destinada a mim.

Sorellina estava certa: Bastiam não morreu e foi ele quem se apossou do diário”, constatei o óbvio.

– Baldwin! Você me surpreende cada vez mais! – disse Batiam em um tom paternal que não conseguia disfarçar seu escárnio. Atônito, escutei sua voz como se ele estivesse falando a centímetros do meu ouvido. A acústica do lugar era perfeita. Mesmo que alguém estivesse na última fileira, supondo-se que a mesma existia, poderia escutar qualquer coisa que se proferisse em cima do palco.

Andei em direção ao palco. Eu sabia que Bastiam tinha algo de ruim, mas sua presença era gravitacional como a porta de Aaron. E que outra opção eu tinha? Apenas infinidades brancas e vazias como a inexistência, já que cenários infinitos preenchidos com artefatos e sentimentos podem abrigar espaços vazios e inabaláveis.

Subi as escadas laterais que davam acesso às coxias do teatro e adentrei o palco. Vislumbrava frontalmente o rosto sarcástico de Bastiam.

– Como podes estar vivo? Vi-te morrer.

Ele caiu em uma gargalhada que ressonou por todo aquele infinito. E depois me lançou um olhar severo.

– Primeiro: Não fique me tratando na segunda pessoa quando estiver com raiva, guarde isso para o seu pai. Odeio essa sua formalidade natural. – ele disse – Segundo: Fico decepcionado com essa história de você achar que aquela mera personificação era... Eu realmente.

– Como assim, decepciono-te? – ele me olhou ameaçadoramente, havia transgredido sua primeira observação imperativa. Sustentei o meu olhar, apesar do medo que tentava se alimentar de mim. “Ele é terrível!” – Que expectativas alimentas a meu respeito?

– Quanta coragem... Realmente você mudou. O meio-mundo deixou você mais impetuoso. Interessante e um pouco imprevisível. – ele disse como se não houvesse me ouvido.

– Respondas-me! – gritei. Eu sentia medo? Sim, mas não me importava, a raiva era bem maior. Eu sabia que aquele ser a minha frente ligava-se ao centro de tudo. “Para ele converge Todo o Mal, ele é o Deus do Caos, ele é Downrio!”.

A expressão de Bastiam Godwhile transformou-se de escárnio para uma impaciência desdenhosa e irada, porém, havia mais. Uma pitada de orgulho? Talvez.

– Se você disser mais uma palavra sequer nesse tom, você irá morrer. – ele não blefava, seus olhos impassíveis eram poços de mortandade impiedosa.

Calei-me. Apesar de ter mudado, ainda não conseguia desprender-me tão facilmente de minha vida... Eu ainda precisava salvar a Luna.

– Isso. Bom garoto! – ele voltara a seu tom paternal – Agora, algumas perguntas: Onde estão as informações arrancadas do meu diário?

– O quê?! Do que estás falando? – eu realmente não fazia ideia. Até onde eu sabia, Bastiam havia recuperado o seu diário intacto.

– Não se faça de desentendido. – havia uma centelha de estranheza em sua voz. Ele não estava acostumado a se enganar. – Você sabe muito bem do que estou falando! Algumas páginas estão em branco, e não estavam assim antes.

– Realmente não sei, Bastiam. – invoquei toda a minha sinceridade. Um pensamento estava crescendo em minha mente, uma intuição.

A expressão dele adquiriu uma gravidade taciturna e, posteriormente, esclarecimento e raiva.

– Droga! A única que não consigo alcançar através de Downrio...

Ele então parou para pensar. Tinha a impressão de que a qualquer momento poderia passar a escutar seus pensamentos, tamanha a intensidade dos mesmos. Sua expressão voltou ao escárnio habitual. Desdém e um pouco... De quê? Esperança? Bastiam Godwhile era uma pessoa difícil de definir e interpretar.

– Você vai fazer aquilo que for necessário, em seu tempo – ele disse.

– Nunca! Não sei o que tu planejas, mas não servirei aos seus objetivos torpes.

Bastiam gargalhou.

– Ah, Baldwin! Você me diverte.

Ele continuou rindo em desdém. Aquilo me perturbou profundamente. Implantou dúvidas e temores instantaneamente em minha mente.

– Por me causar tanta diversão, eu vou dar a você a resposta de uma das suas perguntas. Apenas uma.

Esperança e desconfiança ao mesmo tempo foram os sentimentos que aquela significativa afirmação me causou. Sabia que não se tratava de retribuição, não vinda dele. Principalmente para as mentes sedentas por respostas, as versões manipuladas da verdade podem significar a perdição.

– Posso escolher a pergunta? – eu já sabia a resposta. Minha esperança diminuiu dada a certeza de qual seria a mesma.

– Não. Eu conheço suas dúvidas e posso escolher o que convém a você saber.

Não conseguiria convencê-lo a mudar de ideia. Aquietei-me. A resposta de uma pergunta pré-selecionada por ele era melhor que nenhuma resposta.

– Você está saindo do meio-mundo, Baldwin. Mas isso não quer dizer que não irá voltar. Afinal, nunca estamos longe o suficiente dele para que não sejamos de novo arrebatados.

– O que é esse lugar?

– Apenas uma dúvida. Foi o que eu disse.

Então Bastiam Godwhile desapareceu. Fundiu-se à atmosfera branca, como se nunca tivesse existido. Levou todas as minhas respostas e meus anseios. Sem piedade... Sem compaixão...


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Notas finais do capítulo

Obrigado por nos acompanhar até agora.



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