GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 8
Chacina em Downrio


Notas iniciais do capítulo

Demorou, mas saiu! Desculpem o atraso. Boa leitura a todos.



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A queda parecia ser infindável e isso era perturbador. Caímos junto à neve e destroços, e isso impedia que conseguisse abrir meus olhos ou boca. Coisa alguma emitia som, o que ajudava a transformar aquilo num pesadelo silencioso, daqueles que ficam sempre a espreita no canto mais primitivo da mente e surgem, repentinamente, como uma surpresa assombrosa. A sensação de queda não era normal, pois meus sentidos não detectavam a mínima aproximação de um possível fim e a presença de uma atmosfera, como um limbo. Sei que não era exatamente isso, pois o limbo era pior que o inferno, se é que ambos existiam, e isso não me torturava. Deve ser excruciante ver a infinidade dos anos te desgastar num mundo onde nada acontece e nada existe.

Um som longínquo surgia e parecia o barulho de água. Tudo começou a se dissipar. Consegui abrir meus olhos levemente. Fiquei a fitar uma superfície metálica e quase etérea... Eu parecia levitar. Um novo meio-mundo se arquitetava a minha volta. Caía próximo a nuvens que se condensavam num piscar de olhos e o céu vespertino era pintado a minha volta. Lá embaixo, a algumas centenas de metros, concreto e alumínio uniam-se como num passe de mágica formando uma imensa estrutura, que se assemelhava a um cilindro esquisito, o qual apontava uma abertura gigantesca para o céu. Todo aquele mundo era lindo e terrível ao mesmo tempo. Ver tudo aquilo nascer era algo que uma mente humana comum não suportaria, pois era inacreditável e psicodélico, porém, foi a coisa mais bela que já vi. Sabia que uma experiência em um lugar inimaginável me esperava, entretanto, o cheiro da morte ficava cada vez mais agonizante, pois um novo medo estava a minha espera, insaciável e sedento pela vitória.

A velocidade da minha queda aumentou rapidamente, como se um titã resolvesse me puxar através de uma corda invisível. Comecei a rasgar as nuvens que surgiram em direção a um solo árido, repleto de cactos brancos e plantas roxas que cobriam a região a qual cercava aquela estrutura grotesca. Roxo e branco reinavam além do horizonte, e protagonizavam as únicas cores belas em terras que nunca foram visitadas. Próximo a mim, Luna caía inconsciente. Pânico. E se ela permanecesse inconsciente durante toda a queda?! Sorellina não estava ali e eu não sabia o que havia acontecido a ela. Porém, acreditava nela. E jurava que estava segura, considerando o modo como ela conseguia ser genial de um jeito quase irritante. Minha preocupação estava totalmente voltada para Luna.

Antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, nós fomos lançados para dentro daquele gigantesco cano. O dono desse meio-mundo desmanchou a lei da gravidade, tal como um deus pirracento que estivesse incomodado com as próprias leis mecânicas que criara. Bati numa superfície rígida e notei que o novo cenário que me circundava assemelhava-se a uma tubulação onde escorria água grudenta e estranha. Não era profundo e parecia servir apenas como um guia, um meio de locomoção antiquado. Olhei ao meu redor a procura de Luna e notei que ela continuava distante de mim e flutuava intocável sobre a água. Mantinha um aspecto quase sereno, que me causava a sensação de que tudo estava bem, como se uma atmosfera tranquila a protegesse enquanto era carregada.

Sentia-me como se um pensamento estivesse sendo plantando em minha sanidade, usando frases maliciosas do tipo “Ei, tomarei conta dela enquanto se diverte. Mas talvez eu não seja capaz de me... Segurar”.

Algo me dizia que aquilo não era certo, incombinável. Tentei acelerar meu avanço e alcançá-la, porém, a água não permitia que eu utilizasse minha agilidade e locomoção da maneira que eu desejava, logo, estava preso na corrente, que não era letal, mas sim, manipuladora. Uma bifurcação surgiu à frente: dois canos grotescos e gigantescos apontavam para direções distintas. Luna foi carregada para a esquerda e eu para a direita. Se um deus existisse, provavelmente ele não gostava muito de mim, pois a natureza afeiçoara-se a brincar comigo. Ora com chuvas que pintavam pessoas, ora com avalanches que surgiam do nada, literalmente. Naquele momento, estava entregue aos desejos daquela correnteza traiçoeira.

Não tentei evitar minha ida contrária ao curso que deveria seguir, pois me sentia confiante e tentava deixar a natureza daquele meio-mundo fluir naturalmente, já que em outras oportunidades tentara evitar os eventos que surgiam e, consequentemente, não dera certo, tudo acabava piorando.

Num intervalo de segundos, o curso ficou deveras íngreme, acelerando novamente meu corpo em alta velocidade. Seguia loucamente em meio a solavancos e saltos, através de túneis, canos e o que mais me surpreendeu: labirintos de uma pirâmide. A água negra rasurava desenhos e hieróglifos egípcios antigos que tentavam resistir à tentação de virar pó e deixar a história seguir de uma vez por todas. Uma pintura de Íris parecia me observar e dar adeus com uma cara tristonha. Coitada. Eu fora sua única visita em séculos e já havia ido embora. Um incômodo chato fazia-me insistir que aquela deusa não estava triste graças à solidão, mas sim, porque previa o mundo agindo contra mim através de escolhas cruéis.

Eu, observador solitário, retornei ao antigo rumo e vi uma luz no fim do túnel, clichê, porém, nada mais que a pura verdade. O curso da água expulsou-me para fora de tal, me lançando a alguns bons metros num terreno árido. Toquei minhas roupas e elas não estavam molhadas. O antigo Baldwin estranharia isso, como também sentiria falta de Luna e também de Sorellina. A vontade de querer revê-las tornou-se meu grande objetivo, pois nesse cenário hostil elas eram tudo o que restava de puro e bom. A minha filosofia tornara-se implacável: “A busca por um ponto de equilíbrio faz do homem extraordinariamente capaz. As vielas serão malignas? Podem até ser, mas isso não me preocupa, pois sei que valerá a pena e me trará felicidade. Os caminhos mais árduos são, proporcionalmente, os que levam ao grande deleite”.

Fiscalizei o cenário onde me encontrava: uma cabana ao estilo “Cool Summer” e “filmes de verão”, daquelas que podem servir de ambiente para as melhores histórias entre amigos, mas que guardam segredos e podem instalar o horror, se necessário e se esse for o desejo do destino, encontrava-se bem na minha frente.

Olhei para os lados, tentando entender o ambiente onde me encontrava e descobrir se havia mais alguma instalação próxima à região. Entretanto, só existiam cactos brancos e plantas roxas independente da direção que você olhasse. Tais caminhos alternativos pareciam ser infinitos e hostis. Entretanto, havia uma placa enferrujada e dependurada de seus alicerces, onde estava escrito “Bem vindo a Downrio” e, na parte inferior, “Sonhos com cactos na terra do verão eterno”. Não fazia ideia do que aquilo significava, logo, ignorei.

A tal cabana possuía uma porta frontal robusta e encardida, e que era ornamentada por um vitral com formato de losango ocupando grande parte da estrutura. Através do vidro era possível notar a existência de outra porta semelhante, porém, deveria ser a dos fundos. Para a minha surpresa, duas pessoas com estaturas parecidas entraram na residência através da nova porta. Não consegui distinguir mais do que isso, pois o vitral era do tipo translúcido, logo, o máximo que poderia enxergar seriam vultos e parte das cores. Sobressaltei-me, quando mais um indivíduo adentrou a cabana.

Meu coração deu um salto quando reconheci a cor castanho amarelado flutuando como um halo próximo a sua cabeça. Era Luna! Tinha certeza disso! Corri em direção à porta e tentei abrir a fechadura, mas não funcionou. Esmurrei a madeira repetida vezes, tentando abrir caminho com os meus próprios punhos. Colei minha face junto ao vitral com o intuito de observar mais claramente o ambiente lá dentro. Todas as pessoas tinham desaparecido e não parecia haver um mínimo resquício de que alguém estivera ali dentro!

Repentinamente, a porta abriu-se tranquilamente com um rangido lamentável. Entrei na casa antes que ela se abrisse totalmente e dei alguns passos rápidos para o interior da cabana. Ao contrário dos filmes de terror, a porta não se fechou com um estrondo brusco que faria até pessoas a quilômetros de distância sentirem que estavam em perigo.

A porta continuou aberta, porém, quando se olhava para o exterior da casa, não havia coisa alguma. A única coisa que existia do lado de fora era o vazio, escuridão, exceto por um único detalhe: um poste de luz, que parecia flutuar, já que não existia um solo onde pudesse estar fixado, projetava um círculo de luz no que deveria ser o chão. Debaixo do poste, uma criança risonha me observava segurando um cartaz que dizia: “Estarei te esperando”. Tentei gritar a primeira coisa que veio a minha cabeça, porém, a porta se fechou bem na minha cara. “Se você já ia se fechar de uma vez, porque não fez isso antes? Droga.”, resmunguei mentalmente olhando para a porta. Se aquilo pertencesse à trama, seria mais uma peça desconhecida.

Retornei o meu foco para um corredor escuro, onde uma fumaça azulada de aspecto fantasmagórico exalava um cheiro repulsivo e criava um ambiente no mínimo perturbador. A luz dos abajures criava sombras estranhas em todos os cantos de um corredor que era naturalmente sombrio. Um ambiente cruel... Em lugares como esse não há bula, há apenas o vazio e um aviso. Nas sombras habita um monstro e, para cada luz, há uma sombra. Espera-se dela menos, mas há um monstro em cada sombra, ou mais, na verdade, faces de um mesmo. Seu medo, seu alimento, sua alma sombria.

Compenetrado, permaneci caminhando enquanto analisava detalhadamente o corredor. Eu queria estar preparado para qualquer coisa horrenda que pudesse acontecer. Havia várias portas próximas a mim, e todas pareciam feitas de materiais diferentes. No lado esquerdo do corredor, uma delas estava repleta de faces e olhos distintos desenhados na madeira rústica... Obra de um carpinteiro deveras habilidoso e que possuía um péssimo gosto, com toda a certeza. A porta seguinte possuía um aspecto flácido de plástico e brotos de pelos estranhos escapavam pelos limites da mesma. Tentei tocá-la, mas uma sensação de nostalgia tomou conta de mim, não como uma boa lembrança, mas sim como uma sensação de perigo, a qual já tinha experimentado. Algo substancial, porém, ausente, tangia minha coragem, como se ainda tivesse medo do que derrotei.

Encostei minha orelha na misteriosa porta e lutei para conseguir ouvir alguma coisa, qualquer centelha de uma pista. O que captei fez meu estômago embrulhar: o som de uma sinfonia macabra que tocava insanamente e grunhidos de animais. Fez-se silêncio no interior do cômodo e, instantaneamente, me afastei. Às vezes, a ausência de som era mais mortal do que o uivo gélido do inverno.

Cálidas luzes invadiram repentinamente meu campo de visão e, devido a isso, virei o meu rosto para o fim do corredor. Não sabia exatamente de onde surgira aquela luz e avancei vagarosamente em direção à última porta que havia ali. Dela, escorriam diversos filetes de tinta negra, que manchavam a maçaneta, desafiando qualquer um a tocá-la. A porta se assemelhava a uma colcha de retalhos, pois era constituída de diversas matérias-primas diferentes: metais, madeiras e plásticos. No centro, havia uma placa bronzeada, onde se lia: Aaron S. Fonseca.

Estava prestes a tocar as letras grafadas em dourado, quando novamente uma luz trespassou minha visão, como o farol de um carro que passa velozmente. Percebi que existiam mais duas portas próximas a mim, instaladas em ambos os lados de onde estava situado. A porta à esquerda estava entreaberta, porém, fechou-se. Novamente abria e fechava. Ela era feita de uma madeira branca e podre, e jurava que respingos de sangue coloriam aquela cor opaca. A explicação para os lances de luz que me incomodavam fora descoberta. Antes que ela batesse estupidamente uma terceira vez, impedi-a com as mãos.

Meus lábios estavam secos e uma gota de suor escorria na lateral do meu rosto até o queixo. Reações típicas de pessoas ansiosas. Esse era exatamente o meu estado de espírito. Terminei de abrir a porta num único movimento, e para o meu espanto, duas garotas que vestiam roupas brancas brincavam com os cabelos de uma adormecida Luna, que estava ajoelhada com a cabeça pendendo preguiçosamente.

Dei um passo em direção ao interior do cômodo e quando atravessei o arco da porta, as duas garotas dirigiram seus olhos para mim, estavam totalmente alertas. As íris de seus olhos eram lilases. Notei que as duas garotas eram gêmeas perfeitas, não possuíam uma única diferença, exceto o fato de que uma das garotas tinha cabelos até a altura dos ombros, enquanto sua irmã possuía cabelos excessivamente compridos, que cobriam uma porção do chão ao seu redor. Cabelos cinza, como um pecado.

Pensei em avançar em direção a Luna, mas meu corpo não se movia, ou eu não queria que ele movesse. Estava hipnotizado pelas cópias perfeitas. Eram lindas, uma dupla obra-prima, como se não fosse suficiente existir apenas uma. Elas se levantaram e começaram a desenhar algo na parede atrás de Luna, seus dedos dançavam enquanto trabalhavam em suas artes.

Fiquei sem fôlego quando terminaram de pintar. Atrás de minha amiga, um par de asas agora cobria a superfície da parede e, graças à genialidade nata das gêmeas, as asas pareciam pertencer a ela.

– Luna...

Tentei falar com ela, compreender seu motivo de estar ali, mas um braço envolveu meu pescoço e fui afastado para longe do cômodo. Alguém me enforcava, mas antes que a porta fechasse completamente, Luna levantou o rosto e pude ver que seus olhos não estavam amarelados, mas sim, lilases. Não soube o que pensar, mas senti algo terrível ao ver aqueles olhos. Seria medo? Angústia? Decepção? “Não! Eu prometi que ia ser forte. Não sou mais o Baldwin de antigamente”, gritei em minha mente.

Antes que eu pudesse perder a consciência, o tal alguém me soltou e pude ouvir o barulho de uma nova porta se abrindo. Quando olhei na direção dela, estava totalmente escancarada. E meu pai estava ali dentro, cochichando no ouvido de Sorellina.

A expressão de Sore estava petrificada em eterno terror. Sons de risada maliciosa e gritos aterrorizados de uma mulher e de uma criança pairavam ondulantes no ar, como corpos na superfície de um lago. Um terrível fedor de cerveja estragada mesclava-se ao cheiro pútrido do sofrimento e me causavam tamanho asco, que vomitei.

Todas aquelas sensações só vinham confirmar um terrível fato: um monstro agarrara-me pelo pescoço para me mostrar suas torturas infernais em seu submundo particular. Esse monstro era meu pai e aquela era uma brincadeira monótona, que duraria a eternidade, a menos que eu interviesse.

Precipitava-me para dentro daquele cômodo pútrido, quando percebi que este se parecia muito com o meu quarto, mas uma voz, que talvez pertencesse a algum demônio sádico, à insanidade, alertava meus sentidos para a falsidade daquele cenário: “O meu velho guarda-roupa marrom... (Esse não é o seu guarda roupa), as paredes azuis desbotadas... (Essas paredes não são azuis, são roxas e brancas, como tudo o é na terra do eterno verão), os pôsteres de minhas bandas favoritas... (Não são pôsteres, são rostos agonizantes em sofrimento)”.

Enquanto a parte consciente de meu cérebro listava as semelhanças, os olhos na escuridão de uma mente que seguiam uma trilha sem volta viam as inconsistências de uma encenação mal feita. Sorellina, eu percebi naquele instante, continuava com aquela expressão petrificada, algo adequado, pois aquilo não era minha prima. A atração principal daquele terrível espetáculo montado para mim, nada mais era que uma casca vazia e estática. Não havia presença alguma advindo daquele pedaço mórbido de desolação.

Parei abruptamente entre o corredor e o terrível cômodo. Dei um passo para trás. Simultaneamente minha mão se encaminhava para a maçaneta da porta.

Uma risada muito alta ecoou por todos os cantos, e ao ressonar dessa maneira, despertou sons inimagináveis. Aquilo era o inferno. Percebi que mesmo a maçaneta, a qual eu segurava, arquitetava planos contra mim. O fedor vazio da morte invadia minhas narinas. Cambaleei para trás, ainda agarrando-me a porta, como um troféu, mas o movimento parou na metade. Meu pai estava segurando a porta e lançava-me um olhar assassino de reprovação e escárnio.

– Nem demorou para nos encontrarmos de novo, Baldwin. – meu pai disse. – Seja um garotinho educado e diga que sentiu falta do papai. – o deboche era mais audível que as próprias palavras.

Encarei-o com um olhar firme e determinado, que não deixava transparecer o medo através de minha expressão. “A única coisa que tenho vontade de te dizer é que pegue uma passagem só de ida para junto de Lúcifer. Diria isso, se já não estivéssemos no inferno”, pensei.

– Aquilo não é Sorellina. Esse não é o meu quarto – o desprezo jorrava torrencialmente de mim. – Você não é o meu pai.

Então puxei a porta com muita força. Toneladas de sentimentos trancafiados, libertados nos prantos que jaziam vivos sobre minha face, puxavam a porta comigo. A força que aquele ser infligia para impedir-me de trancafiá-lo era imensa, mas uma raiva titânica crescia dentro de mim tão rapidamente quanto à expansão do universo, e a porta se fechou. Minha alma, pouco a pouco, era substituída por ódio. Se havia deuses naquele mundo que me torturava, odiava-os tanto quanto odiavam a mim.

A gargalhada perniciosa do meu pai veio de dentro do aposento, junto a ela, gritos de dor. Assim como me alertara de que aquele não era o meu quarto, – “Essas paredes não são azuis, são roxas e brancas, como tudo o é na terra do verão eterno” – a voz sádica da insanidade deixava claro o fato de que meu pai não sairia daquele quarto para me perseguir, pelo menos por ora. “Você ainda não está seguro, há outras portas a sua frente, cada porta é uma sombra... E nunca se esqueça, Baldwin: Há um monstro em cada sombra”. Simultaneamente àquele aviso nítido, várias portas se abriram.

Percebi a imensidão de todo o nada que é a mente humana que, ao mesmo tempo, conglomera galáxias e buracos negros. Eu buscava em meu próprio vazio, instintos que me permitissem sobreviver. Meus olhos voltaram-se imediatamente para o fim do corredor, à última porta. O líquido negro, que escorria por toda a sua extensão remendada, vinha de uma longínqua chuva torrencial, de um mundo muito parecido, conquanto extremamente diferente da minha cidade, Porto das Algas. Aquela porta emanava morte, putrefação, medo... Mas também salvação, mais que isso, redenção.

Corri pelo corredor, em direção ao fim. A abrangência que a palavra poderia ter me assustava. “O fim do corredor. O meu fim”, eu pensei.

Enquanto avançava tão impetuosamente quanto o tempo, era englobado por uma atmosfera terrível. Aquele era o lugar para onde Todo o Mal convergia. Não era um corredor para os vivos, somente aqueles que já haviam sentido de perto o farfalhar sutil das asas da morte poderiam suportar. Garras se esgueiravam dos mais inóspitos pesadelos. Presas e rugidos de mil bestas. Esquivava-me de todas as maneiras, não como se eu realmente pudesse. A porta de Aaron – “a porta sem rosto”, pensei – atraía-me com uma torção tão forte no espaço, que este parecia a beira de se romper.

Momentos antes de minha mão tocar a maçaneta, olhei para a porta do quarto onde eu vira Luna. A cor que seus olhos haviam adquirido ficara gravada em minha memória. Aquele aposento estava trancado e, por ora, eu sabia que não poderia ajudá-la. O Baldwin de antes não seria capaz de abandoná-la, nem por um instante, entretanto ele era uma porcentagem mínima do que me tornara.

Enquanto eu abria a porta de Aaron, um sentimento de carnificina materializava-se e se desfazia atrás de mim. Um barulho metálico – “milhões de agulhas chocando-se mutuamente”, senti – ondulava o ar a minha volta. Eu não precisava olhar para trás para perceber que uma escuridão extremamente densa se espalhava pelo corredor. Adentrei o quarto além da porta de Aaron e fechei-a secamente. Não ousei voltar meu rosto para o corredor, nem sequer pela eternidade de um milésimo de segundo.

Quando a porta se fechou, notei que eu estava completamente submerso em líquido negro. Eu conseguia respirar, entretanto, sentia a viscosidade do fluido ao meu redor. Conseguia manter meus olhos abertos, porém, eles eram inúteis naquela completa ausência de luz.

Todo aquele líquido negro era-me familiar. Eu derrotara quem o havia criado, contudo, a imersão naquele fluido viscoso trouxe-me uma certeza aterradora: O Homem sem Rosto não deixara simplesmente de existir, eu podia senti-lo.

Comecei a nadar naquele oceano negro, sem saber exatamente para onde estava indo. Desimportante. Não faria diferença alguma se eu soubesse. Havia um motivo para que eu tivesse conseguido entrar ali. A destinação veio como o som de vozes.

Eram vozes reais. Preenchiam todo o ambiente. Modificavam-no.

Eu estava sentado em uma cadeira. Como isso acontecera? Eu realmente não sei. Convenhamos, nunca sabemos de nada mesmo. A atmosfera não aparentava mais aquela viscosidade oleosa de antes. Ou será que eu me acostumara a ela? O nada que existe a nossa volta é um fluido com o qual já estamos habituados. Um peixe não sabe que existe água em volta de si mesmo e isso se chama ignorância.

A minha frente, encontrava-se uma tela de cinema. “Ela é feita de rubis negras”, meu inconsciente afirmava. Não parecia, de fato, uma tela de cinema. Era uma janela transparente, porém intransponível, entre dois mundos. Aquilo era outra versão da porta no auditório da Orquestra do Caos, eu poderia olhar através dela, mas nunca ultrapassá-la, não de verdade.

A imagem que surgia indistinguível na tela tinha uma característica bastante notável: ela estava de cabeça para baixo. Tive uma crise de vertigem e fechei os olhos quando o mundo girou 180° para se ajustar, porém, ao abrir minhas pálpebras, tudo parecia normal. Eu não sentia que estava de cabeça para baixo.

– É como se adaptar ao fluido que nos cerca. É a ignorância. – disse em voz alta para mim e ninguém mais.

Quando a imagem através da janela passou a ganhar foco, a clareza se espalhou por todos os meus sentidos. Eu não simplesmente via a tela, eu sentia minhas mãos tocarem algo, mas não eram minhas mãos. – “essas sãos a mãos de Aaron”, dizia a voz da insanidade, que mais uma vez invadia minha mente. Já me habituara a ela – eram as mãos de Aaron. As sensações aumentaram e, de repente, eu era a tela, mas não controlava nada, apenas podia observar.

Aaron estava em um quintal com grama verde no qual havia várias árvores que deixavam cair folhas em uma piscina vazia. Ele olhava para aquela piscina, sentado em uma cadeira de praia que fora colocada embaixo de uma das árvores para evitar o sol, enquanto lembranças roubavam-lhe o presente. Imagens daquela Porto das Algas de chuva negra e do Homem sem Rosto, apareciam como flashes. Aaron corria nessas lembranças, mas não estava sozinho. Podia escutar alguém ao lado dele, embora não conseguisse olhar para essa pessoa. Eu olhava para frente, através dos olhos daquele menino que eu sabia, era meu colega de classe. A rua na qual estávamos era a da minha casa.

– Aaron, temos que chegar a casa da Tia Lara. Foi por lá que eu cheguei ao seu meio-mundo. – a voz que chegou aos meus ouvidos eu conhecia muito bem e também entendia perfeitamente o que ela havia dito. Sem ter motivo aparente, a menina carregava uma barra de metal retorcido.

– Cis... – foi estranho o momento em que ouvi a voz de Aaron saindo da boca que eu sentia movimentar, pois era essa a sensação, apesar de não ter controle sobre o corpo do meu colega de classe.

– Aqui eu me chamo Sorellina. Já te falei isso, Aaron.

– Ok. Sorellina, mas e se aquela coisa estiver nos esperando lá? Ele parece saber das coisas. – Aaron disse assustado.

– Não vai estar. Eu tenho certeza que aquela pista falsa sobre a lan house funcionou perfeitamente. Você está completamente certo de que o nome daquele lugar é mesmo o que você me falou? Eu nunca frequentei muito a casa de computadores, mas o Baldwin é cliente há muito tempo e me falou algumas vezes sobre o lugar. Lembro-me dele dizendo que o nome era Net Ciburbanner.

– Eu também não vou muito lá. Sei não, eu sempre achei que fosse Net Simogrammer.

– Isso não importa. De qualquer maneira eu sinto que despistamos o desgraçado sem rosto.

Então as lembranças se dissiparam e minha consciência foi trazida de volta para o quintal pelo grito de uma mulher. Pelo que a voz disse, imaginei que fosse a mãe de Aaron, mas enquanto o corpo dentro do qual a minha consciência estava não olhasse para ela, não poderia ter certeza. Eu conhecia Aaron desde a quarta-série, fomos amigos por um bom tempo e então nos afastamos, e vocês irão entender por quê. Reconheceria a mãe dele se pudesse olhá-la.

– Aaron! – ela gritou – Sai do quintal e vem almoçar.

Aaron virou-se, alterando toda a imagem que eu via por seus olhos. Reconheci sua mãe na janela de vidro da cozinha que dava diretamente para o quintal e para a piscina. Amanda Schmeckel era uma mulher rechonchuda e não muito alta, com cabelos muito loiros e olhos de um azul escuro e muito bonito. O filho herdara-lhe os olhos, mas possuía cabelos negros e uma pele parda como seu pai.

– Já estou indo, mãe. – Aaron respondeu em um tom distante.

– Você disse isso meia hora atrás! Vem logo! – repetiam-se naquele diálogo, palavras de um típico sermão materno.

– Ok.

Naquele ponto dos acontecimentos, eu já começava a compreender melhor como funcionava o estranho estado no qual me encontrava. Eu conseguia olhar com minha visão periférica outros cantos da mente de meu colega de classe. O meio-mundo estava gravado nas paredes daquela consciência, o estava torturando e, conhecendo Aaron como eu o conhecia, ele não havia falado nada sobre isso com sua mãe. Ele era do tipo que escondia receios e ressentimentos. Muitos anos de prática haviam lhe conferido muita habilidade nisso.

Aaron se levantou e andou em direção à porta da cozinha, que ficava a uns dois metros a esquerda da janela de vidro. Ele adentrou o aposento, e foi sentar-se à mesa no centro do mesmo. A cozinha era muito bem organizada. As paredes do chão até a metade de sua altura eram recobertas com ladrilhos brancos, a outra metade era pintada com um bege bem sutil. Pairava no ar o cheiro delicioso de um típico prato de Porto das Algas e das regiões próximas: arroz, feijão, carne e salada. Nesse caso, identifiquei carne de frango e salada de alface e tomate.

Aaron mal havia se sentado, quando sua mãe gritou:

– Aaron Schmekel Fonseca! Vem fazer o seu prato! Você já tem quinze anos, então não espere que eu te trate como se tivesse sete.

– Ok, mãe. – ele disse – Por que você precisa ser tão chata! Eu faço a droga do prato, mas vê se para de gritar.

– Isso! Continua brigando comigo. – disse com sarcasmo – Você devia era agradecer porque ainda tem sua mãe com você.

– Não vem com esse sermão de novo, os investigadores nem sabem o que aconteceu com ela ainda, mãe.

– Tudo bem. Faz logo o seu prato e vai comer. – ela saiu resmungando em direção à área de serviço, enquanto Aaron resmungava coisas para si mesmo. “E para mim”, pensei ironicamente.

Através da análise daquela mente, percebi que meu colega de classe não estava com muita fome e, depois do que sua mãe lhe falara, seu apetite havia diminuído mais ainda. Então os pensamentos dele migraram para uma direção a qual eu não esperava e, principalmente, não entendia.

– Baldwin... Quanto tempo faz desde a última vez que conversamos como amigos? Acabamos enfrentando um destino parecido, afinal. – ele pensou – Na verdade, eu acho que me lembro muito bem... – a princípio imaginei que ele sentira minha presença e que isso estivesse voltando seus pensamentos para mim, mas sabia que não se tratava disso. Eu senti o ressentimento nos pensamentos de Aaron e me preparei para o que teria de ver.

Fui levado então para uma lembrança muito nítida.

Aaron estava ao lado de uma versão de mim mesmo com apenas nove anos de idade. Estávamos brincando com o cachorro dele próximo a um rio que corria por Porto das Algas a caminho do mar. Estudávamos a quarta série então.

– Baldwin, olha como ele corre! – ele disse alegremente para aquela imagem de meu passado.

Eles olhavam para um Husky siberiano de olhos branco-azulados, era apenas um filhote e corria todo desajeitado.

– Que nome você deu a ele? – meu eu mais novo perguntou a Aaron.

– Max! – ele disse sorrindo. O filhote, que caíra no cascalho da margem do rio, levantou a cabeça à menção de seu nome.

– Max? Mas não é muito comum?

Aaron sorriu matreiramente para o Baldwin de nove anos. Vocês não podem imaginar como isso foi estranho. A minha consciência enxergava através dos olhos de Aaron, uma versão mais nova de mim mesmo. Um paradoxo que desafiava mais a minha compreensão do que tudo que eu vira até agora no meio-mundo.

– Não! Max é só apelido. O nome dele é Maximillian Sheldon. – disse. – Ele está comigo já faz dois meses, mas não quis mostrar para ninguém... Até hoje. Acho que eu estava curtindo sozinho o meu cachorrinho.

Caíram na risada juntos. Somente as crianças conseguem ter esse senso de humor tão simples e sincero. Não havia motivo real para risada, somente a vontade de rir. Isso bastava.

– Aaron, o Maximillian Sheldon é muito maneiro! – disse o meu eu mais novo.

– Eu agradeço e ele também.

Caíram de novo em uma crise de riso. Eu sabia que esta não duraria tanto quanto a primeira. Eu já vivera aquilo. O tempo é implacável como o maldito rio que se encontrava a nossa frente.

A princípio, Aaron e meu eu mais novo escutaram apenas um grupo de vozes vindo das árvores da floresta ciliar que se encontrava atrás de nós. À medida que as vozes iam ficando mais altas, a crise de riso a qual acometera os dois amigos que haviam se conhecido no início daquele ano ia ficando mais baixa e pontilhada de curiosa aflição. Da margem do rio, agora era possível se entender frases inteiras.

– Eu vi aqueles dois pirralhos vindo para cá. – disse uma voz meio aguda e meio grave, típica de um adolescente. O tom era de quem procurava algo errado para fazer.

– Tem certeza? – disse uma segunda voz autoritariamente. Essa era um pouco mais madura.

– Tenho. – disse a primeira voz.

– Eu também vi, Marcus. Eles vieram para cá. – falou uma terceira voz.

– Então vamos nos divertir um pouco. – disse Marcus.

– Eu vi que eles estavam com um filhote de Husky Siberiano, talvez você possa ficar com ele, Ferdinando. Você gosta de cachorros, certo? – perguntou a primeira voz.

– Talvez, Eric. Talvez... – Ferdinando respondeu.

Os três riram.

Algo interessante sobre ter escutado tudo isso novamente, porém, através dos ouvidos de Aaron, foi perceber como tudo soara diferente. Através dos olhos de meu amigo, eu via como aquele Baldwin mais novo parecera assustado ao ouvir a conversa entre Marcus, Ferdinando e Eric. O seu semblante, até então brincalhão, estava muito sério e grave. O meu eu mais novo estava pálido.

Eu sabia o que aconteceria em poucos minutos, mas minha mente tentava, de algum modo, acreditar que dessa vez seria diferente. Não seria. O que eu via era o passado. Imutável. Um borrão acidental de tinta vermelha em uma pintura: é possível disfarçar o passado, o que lembramos é condicional, porém, a nitidez com que eu via tudo, através da visão de Aaron, dizia-me que ele não esquecera ou mascarara detalhe algum.

– Precisamos sair daqui. Agora. Pelo que acabamos de ouvir, creio que é aquele tal de Marcus. Ouvi minha tia Lília dizendo ao tio Bert que a Lívia da sétima série saiu da escola por causa dele. Marcus fez algo terrível com ela. – disse o assustado Baldwin de nove anos.

– O que ele fez? – Aaron perguntou.

– Não quiseram me contar, disseram que sou muito novo para saber. Preferi não tentar descobrir desde então.

– Ok. Deixa eu pegar o Max. Maximilli... – Aaron gritava o nome do cachorrinho até que a mão do meu eu mais novo, a minha mão, tapou sua boca.

– Não grita. – disse o Baldwin de nove anos – Quer os fazer correrem para cá agora mesmo? Não dá mais tempo de pegar o Max. – eu ouvia aquilo através da mente de Aaron e sentia vergonha da minha covardia, falta de compreensão... Crueldade – E outra, um deles parece estar bastante interessado num filhotinho de Husky, se o deixarmos para trás, talvez nada aconteça conosco. – “maldito covarde!”, eu gritava dentro da cabeça de Aaron, tentando de alguma forma alcançar a versão mais nova de mim mesmo – E se ele começar a latir? Eles nos achariam.

– Eu não saio daqui sem o Maximillian Sheldon. – disse Aaron. Ele não era muito corajoso, mas nunca abandonaria um amigo – Covarde! Já que está com tanto medo, vai embora sem mim.

– Você é insano! Tenho nove anos e você dez. Não temos chance contra eles. Eu vou mesmo. – meu eu mais novo disse. “Insano é você! Seu canalha covarde! A sua idade não é desculpa para estar dizendo essas coisas”, eu esbravejava dentro da mente do meu colega de classe enquanto via através de seus olhos aquele Baldwin mais novo correndo pela margem do rio.

Aaron nunca soube disso, mas no presente em que ocorrera aquela lembrança, eu me escondera após desaparecer entre os arbustos e vira tudo o que lhe acontecera.

Ver o que Marcus e seus dois capangas haviam feito com Aaron e Max, através dos olhos de meu colega e sentir como se fosse em minha própria pele, foi perturbador. Fiquei com tanta vergonha de minha existência... Não adiantava nada ter vencido o Homem sem Rosto para Aaron, porque não fora então que ele mais precisara de mim, mas sim, naquele dia o qual me torturava através de uma lembrança. Aaron tentou resistir, mas não conseguiu, eram três carrascos mais velhos e mais fortes que ele.

Quando Marcus terminou de se “divertir”, muitas coisas jaziam irremediavelmente perdidas e esquecidas: Maximillian Sheldon, o doce filhote de Husky siberiano jazia morto, afogado e espancado naquele maldito rio, sangue se misturava à água em volta de seu pequeno corpo; Aaron jazia chorando na margem, olhava aos berros para a pobre figura de Max; as roupas de Aaron estavam meio amarrotadas e rasgadas. Vários hematomas faziam seu corpo estremecer de dor.

A inocência e a capacidade de fazer amigos daquele Baldwin mais novo, cruel e covarde, estavam irreversivelmente prejudicadas, eu sei, afinal, vivi tudo aquilo, estive atrás daquele arbusto, pelo menos uma parte do que sou hoje.

Via tudo através dos olhos de Aaron, sentia tudo através do coração dele, sentia até mesmo as dores físicas que ele relembrava. No vislumbre daquela lembrança, chacinaram-se partes da minha alma, que cada vez mais enchia-se de ódio: odiava os deuses daquele mundo, a figura de meu pai e, acima de tudo, a mim mesmo.

Lembrava-me de tudo que havia acontecido, mas sob a visão da mente daquele Baldwin de nove anos e suas lembranças eram como um borrão de tinta disfarçado. Haviam sido amenizadas pela vontade de perdão próprio e, mesmo assim, minha mãe tivera de pagar sessões no psicólogo para mim. Reviver tudo, vendo sob a perspectiva de Aaron era infinitamente pior. Minha mente estava fragmentada.

Aaron foi levado de volta à cozinha por uma frase muito fútil, que destoava da lembrança nítida que acabara de reviver. Eu o acompanhei.

– Você nem tocou a sua comida ainda, Aaron Schmekel. – disse Amanda.

– Está bem, mãe. Vou comer. – o tom de Aaron era tristonho.

– Tudo bem, meu filho? – O tom dela mudou abruptamente de sermão para preocupação e amor materno.

– Sim, mãe. Eu só estava lembrando daquilo. – era como se referiam ao ocorrido na quarta série. Aaron sabia que, apesar de ter grande habilidade em esconder aflições, era incapaz de esconder a expressão de quando se lembrava daquilo, para sua mãe.

– Ah, meu filho... Não precisa ficar se torturando. Isso está no passado e... – ela não sabia o que dizer.

– Tudo bem, mãe. Já passou. – não passara.

– Então tudo bem. – ela sabia que não. – Pode comer no seu quarto, se quiser. Ligue a TV e espaireça um pouco.

– Ok. Obrigado, mãe. – ele não perderia aquela oportunidade de ficar sozinho.

Minha consciência foi andando com Aaron até o seu quarto. Ele se sentou na cama, apoiou o prato no colo enquanto esticava o braço e pegava o controle da televisão. Apertou o botão de liga.

Vi através dos olhos de meu colega que estava passando um noticiário regional. Eu sei que Aaron teria mudado de canal se a notícia que se anunciava fosse outra. Eu que estava dentro daquela mente, não conseguia acreditar no que ouvia e via... Como era apenas consciência, o único coração que senti bater mais forte, foi o de Aaron, mas a notícia era mais terrível para mim.

“... Lara está desaparecida há dez dias e nenhum de seus familiares tem quaisquer pistas sobre o seu paradeiro. Enquanto isso, o seu filho, Baldwin, permanece internado desde o terrível acidente com um ônibus escolar que acabou matando dez estudantes no mês passado. Se alguém tiver notícias sobre o paradeiro de Lara, peço que entre em contato com a polícia. Sua identidade permanecerá um segredo e você também pode...”

Eu já não escutava, dentro da mente de Aaron. Sentia a pena que ele tinha de mim, mesmo depois de tudo. Mas na minha própria consciência, eu só conseguia reviver um pesadelo de muitas noites atrás. Agora, mais que nunca: “E se aquilo tudo fosse real?”, perguntava-me, enquanto aquilo tudo voltava avassaladoramente para o foco de meus pensamentos. Minha mãe, sendo torturada e morta, depois voltando a viver apenas para morrer de maneira mais terrível. “Dessa vez, se ela morrer, nunca mais voltará...”, essa não era a voz da insanidade, essa já se fundira com minha mente e se difundira por toda a minha existência... Era a voz da certeza, muito mais terrível.

– Eu tenho que admitir que devo agradecer por ter minha mãe ainda comigo. – Aaron disse em voz alta, como que se dando uma bronca – E o Baldwin continua internado sem saber de nada, talvez seja até melhor assim.

Então uma voz, que não era a da certeza e muito menos a de Aaron alçou-se de todos os lados.

– Você já viu o suficiente.

A voz referia-se a mim, mas tive a impressão de que até mesmo Aaron pôde a ouvir dentro de si mesmo.

Então estava sentado de novo em uma cadeira, eu não era mais a tela. Tudo se afastava, a escuridão se afastava, eu era o centro de um universo em expansão e tudo ficou branco e roxo – “... como tudo o é na terra do verão eterno.” – e eu me incluía nesse tudo.

Se Downrio era o inferno, para onde Todo o Mal convergia, eu estava sendo arrebatado para o céu, mas quando o céu é a morada do Deus do Caos, isso não faz diferença alguma.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. E não deixem de comentar.



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