GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 10
O despertar


Notas iniciais do capítulo

Enfim de volta! E que comece a segunda parte de GUMP!



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A partida repentina de Bastiam Godwhile me deixara sozinho no teatro onde nada existia. Ele dissera que eu estava saindo do meio-mundo. Não sei ao certo o que eu estava sentindo: devia estar completamente feliz por finalmente sair daquele lugar onde nenhuma lógica existia, e ao qual nenhuma razão sobrevivia, mas não conseguia confiar em Bastiam.

A cadeira onde o Dr. Godwhile estivera sentado permanecia no mesmo lugar, como uma afronta, dizendo-me: “Ele esteve aqui, mexeu com a sua cabeça e não há nada que possa fazer para evitar as dúvidas que ele criou”. Apesar de ter partido após me dar uma resposta, Bastiam havia sim plantado dúvidas excruciantes em minha mente.

Ele dissera que eu faria o que fosse necessário, como se eu estivesse incluído em uma espécie de plano maior. Que expectativas ele alimentava a meu respeito? Eu não sabia, mas não cederia tão facilmente. Enquanto eu estava divagando, algo começou a acontecer, e então se tornou evidente a ponto de me arrancar de dentro dos meus pensamentos.

O teatro da inexistência estava mudando. Tremendo. A habitual brancura do local, cujas próprias paredes pareciam emitir luz, estava escurecendo, a luz se tornando opaca. O próprio ar parecia estar dobrando-se sobre si e o teatro estava encolhendo. As fileiras de cadeiras faziam um barulho estridente e insuportável enquanto pareciam quebrar-se e desaparecer para que tudo se ajustasse à nova atmosfera que se criava. O ambiente que escurecera gradativamente encontrava-se na completa ausência de luz, e os sons da realidade se comprimindo ao meu redor era arrebatador... Terrível. Nesse momento, tive a certeza aterradora de que Bastiam me enganara, de que eu morreria soterrado pela própria realidade ao meu redor.

Caí apertando fortemente minhas mãos sobre meus ouvidos, mas os sons pareciam advir de dentro de mim. Gritei, mas não ouvi minha voz. Então uma luz acendeu-se. O que antes era uma infinidade de cadeiras de um teatro branco como a própria presença de todas as cores, havia se transformado em fileiras limitadas por paredes negras estofadas. Eu percebi que estava em um cinema, pois conseguia ver o projetor na parede oposta à que eu me encontrava.

A percepção de um fato ridiculamente inaceitável foi paulatinamente se impondo diante de mim: eu me encontrava dentro da tela do cinema. Sentia meu corpo como se o mesmo fosse bidimensional. Eu tentava me mexer em três dimensões, mas estava restrito a apenas duas. Foi extremamente agoniante.

Então serpentes negras começaram a se esgueirar no ar saindo do local onde se encontrava o projetor. Percebi que não eram serpentes, de fato, e sim as fitas as quais continham, de certa forma, a mim, pois não estava eu sendo projetado na tela daquele cinema? Elas vinham em minha direção, se aproximando rapidamente, e eu não conseguia fugir, estava arrebatado pelo momento.

As fitas, de algum modo, entraram em minha boca. Não entendia como elas puderam o fazer, visto que eu era uma espécie de figura plana, mas consegui sentir o gosto plástico e uma forte vertigem enquanto elas se arrastavam pela minha garganta abaixo. À medida que saíam de seus rolos no projetor para se alojarem em meu corpo, eu sentia meu ser desaparecer e a luz da tela se apagar. Quando tudo estava imerso na mais completa escuridão, escutei uma gargalhada fria e o som de uma porta se batendo. Esses foram os últimos sons que escutei no meio-mundo da forma como eu o conhecia.

. . .

Encontrava-me imerso na escuridão. Eu estava outra vez em uma espécie de limbo, mas esse parecia mais real. Naquele lugar, a desesperança corria nas veias de seres que preferiam estar mortos. Não sabia o estado do meu corpo, mas definitivamente minha mente estava a ponto de perder toda a lucidez. O medo se tornou incomensurável quando notei que eu ficaria louco e não teria para onde fugir, e que também não morreria por isso. Passaria milênios perdido em meio a minha própria loucura infindável. O limbo é a pior tortura, pois ele é o nada e apenas isso.

Vaguei por mais alguns instantes até perceber que meu corpo parecia viajar cada vez mais rápido. Estava acelerando... mas não possuía um destino. Entretanto, forçava-me a ter esperança de que eu sobreviveria ao terror iminente. Um ponto distante de luz surgiu, era lilás e me atraia de forma estupenda, pois eu sabia que era por lá que iria fugir.

Meu corpo aproximou-se de uma pequena esfera lilás. Toquei a superfície brilhante daquele artefato, e tal explodiu em pequenos estilhaços que apresentavam cenas do mundo que me esperava lá fora, como pequenas televisões telepáticas. A explosão começou a retroceder, a voltar no tempo, reunindo-se novamente na forma de esfera. Porém, ela estava absorvendo-me também.

Deixei-me levar. Minhas células estavam transmutando-se em pequenas partículas lilases. Primeiramente meus dedos, depois pequenas parcelas do meu rosto, começaram a se transformar em minúsculos cristais que rumavam em direção ao centro da esfera que se regenerava. Quando meu corpo estava quase totalmente absorvido, um leve desespero brotou do meu âmago. Sentia que estava deixando algo irrecuperável para trás e que não haveria volta.

Sentia que estava desvalorizando pessoas próximas a mim, mas eu não conseguia lembrar-me de suas faces. Estava jogando fora uma oportunidade épica, com a qual o destino me presenteara, e isso me deixava cada vez mais desesperado. Minhas lembranças pareciam estar sendo pintadas com tinta cinza, minha memória estava sendo manipulada! Olhei para o abismo escuro, que era mais tentador, pois o conhecia. Do novo mundo, o arrependimento sorria para mim.

Implodi e senti cada célula do meu ser tornar-se irreconhecível. Deixei o belo mundo para trás, em troca de um novo catastrófico. Gêmeas despediam-se lamuriosamente de mim. Obras-primas de um alguém esquecido. Sentia meu corpo desvanecer.

Aquilo era o início do fim.

. . .

Minhas pálpebras começaram a se abrir milímetro por milímetro. Era um processo lento e doloroso. O tempo que havia passado adormecido congelara meus olhos, porém, não me lembrava do motivo de estar naquele estado. Por que me encontrava numa cama?

Apto de minha visão, observei atônito o cômodo onde me encontrava e, como um bebê que vê o mundo pela primeira vez, não o entendia. E era exatamente isso. Não compreendia o que estava a minha volta. Sabia identificar objetos, mas não assimilava a trama nos quais estavam envolvidos. O que era aquele mundo?

Meu conhecimento mundano começou a palpitar, e o entendimento daquele lugar iniciou-se. Uma cadeira. Uma cama. Raios de sol que incidiam sobre minha pele através de uma janela. Conhecia tudo isso. Continuei a avaliar os objetos, e recobrar o significado de tais. “Isso é um hospital”, pensei. Por um minuto parei de reconhecer aquele cenário. Minhas mãos começaram a tremer e um suor frio escorreu pela minha testa.

Do fundo de minha mente, sons começaram a surgir. O volume daquele barulho aumentou gradualmente. Não sabia o que era aquilo. Os sons queriam irromper de meu corpo. Meus olhos ardiam e minha cabeça latejava. Carros. Buzinas. Afogamento. Gritos. Luzes. Morte. Morte. Morte. MORTE! Tudo aquilo retornou de uma só vez, rápido de mais para eu suportar.

De repente, aqueles barulhos aterrorizantes pararam. Certa imagem flutuava em minha mente: um rosto sem feições que queimava como carvão. Não sabia quem era e nem o sentido daquilo. Senti algo gelado tocar minha mão. Novamente a mesma sensação. Olhei para os meus dedos: algo úmido as molhara. Toquei meus olhos e os senti marejados... eu chorava. Mas por quê?

“Estou esquecendo”. Não acreditava no que estava acontecendo. A imagem começou a crepitar, definitivamente desaparecia. “Não, não, não!” Não podia perder tudo de novo. Comecei a apertar minha cabeça com muita força e a morder meu lábio a ponto de sangrar. Não podia deixar que aquilo queimasse, eu dependia daquilo para viver... Para a minha existência ter sentido!

O tempo foi insuficiente. A imagem transformou-se em cinzas que afundavam em direção ao lugar mais profundo da minha mente. Era irrecuperável. Fiquei alguns segundos em silêncio encarando a parede. Minhas mãos tremiam violentamente. Olhei através da janela com os olhos vidrados e injetados de sangue.

Um crepúsculo brilhava lá fora. Tons de laranja e amarelo riscavam o céu. Um tom lilás espectral completava o espetáculo dos céus e banhava meu rosto com raios mornos. Lilás. Minhas lágrimas se tornavam cada vez mais abundantes. Mais alguns segundos de silêncio preencheram o ambiente, até que um grito gutural desprendeu-se de minha garganta. Uma vontade primitiva de fechar aquela janela nasceu, e não entedia o motivo. Meu corpo gerava espasmos grotescos e torcia-se. Estava completamente fraco e não compreendia nada, apenas queria que aquela cor lilás desaparecesse e não tocasse em mim. Tentei dizer algo, mas minha língua parecia ácida. Gritar era a saída.

Tentava lembrar-me de coisas que não existiam em minhas recordações. Como isso era possível de acontecer? Era totalmente irracional recordar coisas que não podiam ser lembradas, pois nunca aconteceram. Meu corpo hesitava em aceitar que eu não possuía o passado que esperava e acreditava ser o meu. Aquilo era doloroso. Fui enganado de forma totalmente cruel.

O grito contínuo e bestial só foi interrompido quando minha sanidade finalmente entrou em colapso e meu corpo ficou flácido e afundou novamente na cama. Desvaneci de volta para a escuridão, mas o medo instalou-se quando percebi que alguém provavelmente me despertaria novamente. Não tinha forças para ser relutante. Apenas deixei meu corpo fugir daquele mundo incógnito e voltei para o abismo, que um dia fora reconfortante e sereno.

Um bipe tocava incessantemente. “Mas que droga é essa?”, pensei. Tinha a sensação de que pela primeira vez, após longas décadas, aquele barulho não brotava da minha cabeça. Sentia-me confortável com aquele som. Um sorriso esboçou-se no meu rosto encharcado enquanto rumava de volta ao limbo. Meu limbo, meu fardo e um sofrimento que um dia fora belo.

Fui despertado pelo ranger da porta. Não sabia quanto tempo permanecera desacordado, mas queria continuar naquele estado. Tivera medo de acordar e entrar novamente em colapso, perdendo-me completamente dentro de minha loucura. Alguém se sentara próximo a mim. Seu rosto era severo e óculos adornavam-no. Possuía cabelos que lutavam contra a velhice.

Enxergava seus lábios moverem-se, mas não compreendia o que eles tentavam dizer. Não fazia sentido para mim. Mantinha-me fragilizado e indiferente a tudo que acontecia naquele cômodo. Nada parecia importar e sentia meu corpo pesado. O homem ficou irritado e desistiu da tentativa de contato. Foi embora e eu, finalmente, estava sozinho.

Possuía o tempo e espaço necessário para pensar e colocar as coisas em ordem. Tentava entender o motivo daquele ataque tristonho que me acometera no meu primeiro despertar. Por algum motivo, eu ficara incrivelmente perturbado e a ponto de ceder à súbita loucura. Mordiscava meu lábio como se algo me intrigasse, mas também não entendia o porquê daquilo. O destino novamente fora cruel comigo, retirando-me até a as recordações de momentos infelizes. Mas... quando fora driblado por tal? Sentia-me completamente perdido, e isso piorou quando notei que os relances e flashes que permeavam minha mente desapareciam em meio ao vento cálido de um deserto que eu desconhecia, meu próprio ser. Apenas restavam sábias reflexões, as quais não possuíam fundamentos para compreender. Um entendimento mal-entendido, uma persuasão sem lábia.

Passado alguns segundos, dei menos importância aos momentos perdidos em minha mente. “Talvez isso seja um efeito colateral de algum remédio”, pensei. Queria me situar, logo, estendi meu tronco em direção á beirada da cama e recuperei meu prontuário. Ao tocar aquela ficha, tive a estranha sensação de que algo escorria pela minha boca e narinas. Toquei minha face com as pontas dos meus dedos, e descobri um líquido preto e que possuía um odor metálico. Súbito. Pisquei meus olhos, logo, notei que não havia nada manchando meus dedos.

Hesitei em encostar no prognóstico novamente, mas logo me rendi a curiosidade e o peguei-o. Um aparelho ao meu lado emitiu um bipe repentino, incentivando-me a agir. “Vai. Arrisque e descubra a verdade”. Aquele som era definitivamente reconfortante, como as palavras de um velho amigo.

Li trechos daquele texto e relembrei vagamente dos fatos que me levaram a estar naquele hospital. Uma viagem escolar. Lembrava-me que eu havia estado em uma, enquanto eu tentava recordar seu destino, a simples ironia do meu então presente trouxe a resposta: Passo da Vitória. “Em que grande vitória me encontro.”, pensei. Definitivamente, algo havia dado errado naquela viagem. Eu havia sido internado após o acidente.

Ainda me encontrava em extrema confusão, mas as minhas lembranças incertas começavam a se agrupar em um quebra-cabeça estranho, uma imagem inconcebível e distorcida, conquanto, definitivamente, uma imagem. Concomitantemente ao retorno de meu passado, dores começaram a surgir, como que para confirma-lo. As minhas costas ardiam, pareciam arranhadas por longas...

A imagem de enormes garras surgiu na minha mente, juntamente a uma risada gélida.... Eu sou aquele que perturba a noite dos inocentes... Isso é segredo! Segredo! Segredo! Rapidamente as imagens desapareceram, se dissiparam em meio a chamas lilases...

Recuperando-me do súbito acesso, tentava me lembrar do que havia escutado e visto, mas não conseguia, restava-me apenas a dor nas minhas costas. Entretanto não somente ela, meu ombro esquerdo começara a doer também, assim como diversos outros pontos do meu corpo.

Meu prontuário indicava que eu havia fraturado uma costela, mas não havia registrado nenhum procedimento que houvessem feito para restaurá-la, o que achei um pouco estranho. Havia sido registrada uma série de exames, lesões, e medicamentos aplicados intravenosamente, mas nenhum procedimento cirúrgico.

Divagava sobre o que isso poderia significar, mas minha cabeça doía, e meu raciocínio não estava completamente normal. Ainda não havia chegado à conclusão alguma, quando uma enfermeira entrou no quarto trazendo uma bandeja com alguns remédios. Com olhar severo, e preocupado, a senhora de pele mulata e cabelo acaju pendendo em grandes cachos, retirou a ficha de minhas mãos. Um nome surgiu em minha mente.

– Amymarie? – eu sussurrei com certo desespero, por algum motivo, o nome não me trazia uma boa sensação.

– Não... – ela hesitou e conferiu meu nome no prontuário. – Baldwin, certo? Você precisa descansar.

– Minha mente está um pouco confusa, – minha voz soava fraca – eu estou no Bierno Atopa, correto? – minha voz, além de fraca, soou amarga e desesperada.

– Sim. Por que esse desespero? Você está em ótimas mãos aqui. Não fique se preocupando, rapidamente as coisas devem melhorar. Receberá alta ainda nessa semana, provavelmente.

– Como você pode saber...? – já estava perguntando, quando me lembrei de que a enfermeira havia pegado o meu prontuário – Você pode me devolver a minha ficha médica?

– Baldwin, deixe que a equipe médica cuide disso. – disse ela enquanto punha o prontuário de volta à beirada da cama, ela apoiou a bandeja em cima da mesa de cabeceira que ficava do lado esquerdo de minha cama hospitalar e encheu a seringa com um dos remédios. – Tudo vai ficar bem, agora descanse.

A enfermeira injetou o medicamento no soro fisiológico que pendia ao meu lado, o qual estava conectado ao meu corpo intravenosamente. A droga possuía efeito quase imediato, minhas pálpebras foram ficando pesadas, e eu senti que estava voltando para o abismo, mas dessa vez, um pesadelo terrível me esperava lá:

Eu me encontrava de volta ao ônibus escolar, em direção ao Passo da Vitória. Estava na cadeira que se situava atrás do motorista, minha mãe estava do meu lado, ela era um dos pais que se voluntariaram a ajudar a Sra. Carmello de Almeida, afinal havia muitos estudantes em minha classe. Lá fora uma tempestade assustadora transformara o dia em noite. Um carro vermelho estava diretamente à frente do nosso ônibus, e me causava uma sensação estranha, ruim, um sentimento de medo e confusão revivido em um déjà vu. Meu estômago estava embrulhado e minha mãe notara.

– Baldwin, você está bem?

– Estou, sinto-me um pouco nauseado, entretanto, nada que necessite de atenção. – as palavras saíram de minha boca mecanicamente, como se o que eu estava vivendo não passasse de um replay.

– Tens o estômago fraco, precisa sim de atenção, eu trouxe o remédio para enjoo justamente por saber disso. O motorista me informou que ainda temos aproximadamente duas horas de viagem pela frente, a chuva atrasou-nos. – minha mãe então se desprendeu do cinto de segurança e se levantou para pegar sua bolsa, a qual continha o remédio para náusea, no guarda-bagagem.

Olhei para a janela, meio emburrado, odiava passar mal. Reparei, então, que o carro vermelho o qual estivera à nossa frente, havia se posicionado ao nosso lado na contra mão... olhos escuros... estrondo... um corpo sendo arremessado ao meu lado enquanto o mundo começava a girar...

–MÃE! – acordei com a respiração ofegante.

Olhei em volta. O quarto do hospital estava escuro, de modo que não conseguia ver muito bem as horas no relógio de parede que ficava na extremidade oposta à cama, mas eu tinha a sensação de que havia dormido por muitas horas.

O pesadelo tinha sido muito real. Uma certeza aterradora vinha ao meu encontro. Aquilo não parecera um pesadelo, era mais uma parte da imagem distorcida que se formava... uma parte do meu passado? Eu comecei a gritar. Bradava sons repletos de angústia. A mínima razão que ainda sobrevivesse em mim, desvanecia-se a cada brado de dor.

– MÃE! NÃO! QUE TIVESSEM ME DEIXADO MORRER NO ACIDENTE! NÃO POSSO EXISTIR EM UM MUNDO SEM MINHA MÃE! NÃO! - lágrimas brotavam dos meus olhos, a porta do quarto se abriu abruptamente, logo, a lâmpada se acendeu, mas eu estava indiferente a isso.

Permaneci gritando, enquanto me levantava. O acesso intravenoso do soro escapou de meu braço enquanto eu rolava para o chão, derrubando a mesa de cabeceira. Por que ela tinha direito de existir se havia sido negado o direito à vida da pessoa que eu mais amava? Eu queria quebrar todo o quarto. A tristeza e a raiva andam lado a lado.

Senti mãos se agarrando aos meus braços, me levantando do chão, tentei me desvencilhar delas, mas meu corpo estava fraco, meus braços não respondiam. Fui posicionado na cama hospitalar novamente, tentava me debater, entretanto um homem e uma mulher em roupas brancas me seguravam contra o colchão. Eles diziam coisas que eram, para mim, ininteligíveis. Nada daquilo importava, eu só queria quebrar aquela realidade inútil, pois minha mãe estava morta.

O homem, que eu imaginava ser um médico ou um enfermeiro, continuou me segurando, enquanto a mulher saía do quarto. Eu comecei a me acalmar um pouco.

– Calma! O que está acontecendo com você? – disse ele.

– Minha mãe! Ela está morta, não está?! – queria que ele dissesse não, que aquilo era apenas um pesadelo. – Eu me lembrei do acidente! NÃO! – minhas palavras tornavam-se indistintas, apenas urros de tristeza. Meu rosto estava banhado em lágrimas.

A mulher voltou então ao quarto, acompanhada por um homem de cabelos meio grisalhos, cujos olhos severos eram adornados por óculos, lembrei-me vagamente dele, tentara, sem sucesso, conversar comigo quando havia apenas começado a despertar. A enfermeira disse:

– Dr. Ivan, você me disse que era para vigiá-lo de perto, – sua respiração era ofegante – ele acordou ensandecido.

– Sim. Isso já era esperado vista a sua condição. – então ele se aproximou da mulher e sussurrou algo em seu ouvido.

Ela saiu do quarto, e voltou segurando uma seringa, que se encontrava preenchida até a metade com algum medicamento.

– Segure muito bem o garoto, Gustavo. – disse o Dr. Ivan ao enfermeiro que ainda lutava para me manter quieto.

Ele apertou ainda mais as mãos em meus braços.

– Ajude-o a mantê-lo parado, Medeia. – Ivan bradou à enfermeira, que estava parada apenas contemplando chocada a situação. – Não fique só observando.

Medeia e Gustavo me seguravam firmemente, de modo que não conseguia mover meus braços e nem minhas pernas. Ivan aplicou o conteúdo da seringa no meu antebraço. Rapidamente fui perdendo as forças de meus membros. Meu corpo já cansado não respondia, minha visão começou a escurecer...

– Preciso avisar meu pai acerca disso, – disse Ivan – ao que parece o paciente... – essa foi a última coisa que ouvi antes de cair no abismo da inconsciência.

O terceiro despertar foi o menos conturbado. Minha consciência retornou aos poucos, um processo vagaroso. Meus olhos se abriram com facilidade e se adaptaram rapidamente à luz, como se meu corpo tivesse se acostumado a tal processo. Sentia-me apático e alheio. Um boneco.

Olhei para o meu reflexo na janela, e visualizei um adolescente com olhos famintos e melancólicos. O cabelo bagunçado e a pele claríssima auxiliavam na definição daquela pessoa mórbida. “E esse sou eu.”, refleti. Estava acabado tanto psicologicamente quanto fisicamente. Tentei não encarar o reflexo, pois me sentia incomodado com aquela imagem. Você percebe que sucumbiu a completa degradação humana, quando enoja-se de si próprio. Era uma sensação horrível, porém, a verdade.

Alguém bateu a porta. Bom, acredito que tal atitude era desnecessária num hospital, já que eu poderia estar dormindo e a pessoa entraria facilmente. A pessoa adentrou o cômodo, mas ficou situada próximo à porta. Olhava-me com um olhar penoso, e isso me deixava com raiva. Acreditava que pena e solidariedade não eram sinônimos, mas sim, conceitos completamente distintos, já que pena se resumia a compreender uma situação triste e não ajudar a mudar aquele fato. Era uma atitude de pessoas fracas que não possuíam caráter suficiente ou sentiam medo de se ferirem também. Durante um instante, senti nojo daquela mulher.

Entretanto, tal sensação passou. A mulher presente no cômodo era uma pessoa de que eu gostava demais: Lilia, a irmã mais nova de minha mãe. Possuía cabelos idênticos ao de minha Lara e também outras características em comum. Minha tia não era magra, possuía algumas sardas na face, uma personalidade comum e não possuía aquele ar atemporal de Lara. Lilia era uma versão banal de minha mãe.

Não trocamos palavras, apenas gestos. Ela acariciou o meu rosto e esfregou os meus cabelos. Mesmo sentindo-me infeliz, esbocei um leve sorriso de afeto. Lilia sentou-se ao meu lado, e retribuiu meu sorriso com um abraço. Depois, levantou-se e foi embora.

Desconhecia o verdadeiro motivo de ela estar ali, pois sua vida comum era muito corrida, e isso a impedia de ir aos lugares que desejava, como ir me visitar no hospital. Há um bom tempo rezava por sair daquele lugar. Talvez fosse esse o motivo de ela estar ali? Esperava que sim.

Olhei para os céus e desejei um final feliz. Encarava-os através da janela com avidez, pois era por aquilo que meus olhos estavam famintos: luz, liberdade e felicidade. O sol do verão se derramava sobre a minha realidade, caindo sobre tudo que um dia eu conheci. Lá estava eu, perdido e agonizando, implorando para um possível deus longínquo que me ajudasse. A batida de uma música cantada por uma banda que não pertencia a essa realidade ecoava pela minha mente e simbolizava o rufar dos tambores, premeditando algo que iria acontecer.

A porta do meu quarto abriu-se, e Medeia, a Enfermeira Que Me Segurara, permaneceu lá fora. Sua passagem por ali era rápida e possuía apenas um simples motivo: salvar meu verão.

– Baldwin, hoje é seu último dia no Bierno. Sua tia Lília veio lhe buscar. Você vai para casa, garoto. Anime-se.

– Ainda bem. – respondi.

Olhei para o céu. “Obrigado, quem quer você seja.”, pensei. Sorri devido à minha reação a um possível agente primordial. Cômico, porém, uma atitude verdadeira em meio à tormenta de um novo mundo que eu ainda desconhecia.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Continuem acompanhando o/
Ah, informação importante: os capítulos não serão mais postados aqui no NYAH, visto que queremos publicar o livro. Porém, criaremos um grupo privado no Facebook e iremos adicionar os que consideramos os verdadeiros leitores. Cada um desses receberá um exemplar quando GUMP for publicado.



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