GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 7
Deus do caos


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo o/ Para finalizar o anterior. Divirtam-se.



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Minha mente não conseguiu absorver tudo o que acontecia naquele momento. O cheiro de fumaça no ar, o urro que misturava o pânico de um monstro e o grito heroico e selvagem de uma garota. A velocidade dos fatos me deixou desnorteado e sem ação.

Queria socorrer Luna, ou ao menos fingir que isso era possível. Ela havia despencando para uma imensidão branca e infinita junto com aquele medo. Imagens dela dizendo “Você me abandonou de novo, Baldwin” criavam um ciclo infinito que me torturava.Tentava com todas as minhas forças acreditar que eu não a havia perdido, pois toda uma guerra dependia não de mim, mas dela.

Sorellina me puxou com tanto vigor a ponto de eu tropeçar na neve. Ela queria que eu corresse mais rápido do que minha constituição física permitia. Sem mais delongas, alcançamos a escotilha do esconderijo. Na verdade, parte dela. Alguém explodira o interior do recinto e danificara todas as importantíssimas informações que minha prima reunira ao longo de dias, ou anos, ou décadas. O conforto do tempo não existia no meio-mundo.

Uma cortina de neve limitava nossa visão para os lugares além de onde estávamos. Isso gerava uma ansiedade absurda e uma pressa inevitável. Sentia-me observado por alguém e não acreditava que o monstro havia sido derrotado no seu território. O pavor crescia dentro de mim, pois eu não me sentia preparado para lutar. “Eu tenho que ser forte... por ela”, pensei. Uma sensação de nostalgia abateu o meu ser, que acreditava ser a segunda vez que um ímpeto tão forte crescia dentro de mim.

Minha prima chutava a neve com raiva e caminhava em círculos. Parecia arquitetar algum plano mirabolante. Ela parou e observou o solo com muito interesse... Havia notado alguma coisa. Aproximei-me por trás dela e observei. Pegadas! Várias delas! E todas apontavam para o mesmo lugar: a floresta que circundava o chalé.

Bem distante de nós, alguma coisa parecia se movimentar rapidamente em direção à floresta. Não era tão grande quanto o medo, logo, havia mais um personagem nessa dança perigosa num cenário tão hostil. Eu tentava forçar minha visão no ponto que parecia cada vez mais distante, quando Sorellina chamou-me a atenção.

– Ei, Baldwin. Alguém tem que correr atrás dele. – disse ela apressadamente. – Vou analisar se é possível salvar alguma coisa do esconderijo.

– Sore, calma! – respondi. – Uma coisa de cada vez, por favor. Primeiramente, como assim “correr atrás dele”? Dessa distância é impossível identificar alguma coisa.

– Não se esse for o meu mundo. Enfim, consegui apurar minha visão e percebi que é um homem, porém, só tive força suficiente para isso. Mas aquela presença... Desconfio de sua identidade.

– Tudo bem. Eu fico responsável por isso...

– Ele está carregando alguma coisa. – ela interrompeu. – É o diário que estava com você. Devia correr atrás dele. E rápido.

– O diário?! Droga. Será que o monstro ainda está por aí? Sem Luna não vou conseguir lutar.

Sorellina agarrou o meu rosto e encarou firmemente os meus olhos. Ela tentava passar algum tipo de segurança, mas isso não estava funcionando, pois ela sabia que eu era fraco por natureza. Um conflito resplandecia em seus olhos. A certeza e a esperança batalhavam com imensa ferocidade. Seus dedos apertaram ainda mais minhas faces e ela conseguiu sustentar o olhar.

– Primo, até quando você vai acreditar nisso tudo? – ela disse. – Você vai acabar machucando as pessoas que ama se continuar com essa fantasia tola. Luna é passado. Passado! Você não faz ideia de como nós sofremos ao te ver obcecado por essa garota.

– O que você está dizendo? Estou cansando de não entender, Sore. O que mais importa não faz sentido. Por que está ficando cada vez mais difícil? Isso está me matando.

– É culpa da sua amnésia. Grande parte da memória retornou, mas a peça que mais importa está se desintegrando. Você tem que se lembrar. Por favor! Isso pode destruir você.

– Eu tento, mas isso está se tornando impossível. E eu não sou obcecado por aquela garota. Aliás, há coisas que eu odeio nela. Mas ela é importante, pois sua presença me dá a coragem para matar os medos. O que você não entende disso? – perguntei.

– Eu não sei mais o que lhe dizer. Sinto-me impotente para discutir com você quando o assunto é ela. Só me responda uma coisa... Você jogaria fora toda a sua existência por causa dela?

Hesitei. Obviamente, eu ia dizer não, porém, uma parte minha ligada ao passado se lembrou de uma frase que por mim foi dita há muitos anos. Algo nostálgico que acionava o bipe irritante e quase rotineiro.

– “Vou defendê-la até quando eu perecer. Eu prometi.”. – disse.

A frase causou certo espanto em Sorellina, que não esperava por isso.

– Sim, mas isso não significa que você... Morreria por ela. Estou certa? – perguntou minha prima com certa ansiedade. Como se isso a relembrasse algum ocorrido que não poderia se repetir.

Eu não respondi e isso causou certa aflição em Sorellina. Não tinha certeza do que responder. Meu senso se dividiu, o que me deixou deveras confuso. Apenas saberia se eu morreria, ou não, por Luna, caso nós chegássemos a esse ponto. Ela era importante demais, mas duvidava de minha atitude em situação parecida.

Beijei a testa de Sorellina e comecei a correr em direção à floresta, mas, por instinto, dei uma última olhadela para trás. Minha prima parecia um pouco abatida. Observou-me e disse:

– Se ela te prejudicar, ou levar você a sucumbir... Não sei exatamente o que irei fazer. – ela riu nervosamente enquanto falava. - Mas não deixarei que tudo se repita... Nunca.

. . .

Meus passos rápidos tornavam-se cada vez mais pesados graças à neve. A fadiga gerada pelo exercício triplicava devido aquele terreno, mas, de alguma forma, eu tentava avançar o mais depressa possível. Mantinha minha visão alternadamente para todas as direções, precavendo o aparecimento do medo. “Será que Luna conseguiu matá-lo?”, pensei. Mas achava pouquíssimo provável.

Ao longe, o pequeno ponto se aproximava rapidamente da floresta. Ele parecia avançar com certas interrupções, como se teletransportasse pequenas distâncias. Pensei que talvez conseguisse fazer isso se me concentrasse o suficiente, porém, não deu certo. Eu não possuía a capacidade mental de minha prima, o que levantava dúvidas sobre como ela havia adquirido tanto conhecimento sobre esse lugar. “Definitivamente ela era uma grande investigadora.”

Retornei a fitar o meu alvo e percebi que ele parara de se distanciar. Encontrava-se em pé próximo a floresta e me observava. Levantou um de seus braços e uma lufada de vento deslocou-me um pouco para a direita. Um som de risada percorreu minha mente e um calafrio subiu pela minha espinha. Algo terrível se aproximava. O chão tremia com raiva e uma parede branca vinha com uma velocidade absurda em minha direção. Indiscutivelmente, aquilo era uma avalanche! “De onde raios isso surgiu?!” pensei.

O homem, que parecia se camuflar junto à neve, penetrara para o interior da floresta. Ele não era mais o problema principal, pois uma coluna branca estava a poucos metros de mim. Olhei para os lados, instintivamente, a procura de Luna. Precisava ser forte sem a presença dela. Tinha que acreditar em meus instintos e sobreviver... Para o bem de muitos.

Canalizei força mental a ponto de minha cabeça estourar de dor. Primeiramente, não funcionou. Não haveria tempo suficiente para uma segunda chance, mas eu tentei. Pensei em tudo: Luna, Sorellina, coisas que eu odiava e até em meu pai. E como mágica, a coluna de neve se dividiu em duas. O contraste junto com o céu criava mais um daqueles ambientes que a mente humana não consegue compreender. A neve parecia viajar em câmera lenta e eu a atravesseicom extrema facilidade.

Quando sai da cortina de neve, tal retornou a sua velocidade normal e continuou seu caminho em direção ao nada. Encontrava-me em frente à floresta de árvores de aspecto estranho. Algumas pareciam ter fios instalados e antenas de TV em suas copas. Bizarro.

Entrei e comecei a investigar aquele ambiente. Independente da direção em que eu olhava, tudo parecia igual. Árvores e mais neve... Apenas isso existia naquele lugar, que era uma armadilha que passava despercebida. Uma escolha errada e eu poderia até cair de um abismo.

Tentei seguir meus instintos e escolhi uma direção aleatória. Parecia me aproximar de algum lugar. Um barulho de graveto se quebrando acionou os meus sentidos e pude enxergar alguma coisa a alguns metros de mim, em meio a árvores cristalizadas e raízes protuberantes. “Seria o medo?”, pensei. Droga. Ele me encontrara. Mais gravetos se partindo. As batidas de meu coração ficavam cada vez mais intensas e suor escorria pelo meu rosto.

Fui me afastando sem tirar os olhos da direção em que algo surgira e acabei tropeçando numa raiz. Cambaleei para dentro de uma clareira, onde se encontrava o chalé. Eu estava exposto demais e precisava me esconder rapidamente, porém, pensar sobre isso não foi de grande ajuda, pois um homem, que vestia um terno branquíssimo, me observava. Lembrava-me alguém que eu vira na televisão. Uma dor lancinante em minha cabeça fez-me desabar.

Tentei levantar os olhos em direção ao homem... Ele estava em pé na minha frente. E chutou a boca de meu estômago. Não saiu grito algum, pois eu estava sem ar. Perdi todo o meu fôlego. O tal indivíduo riu com muita intensidade, como se estivesse adorando aquilo. Maldito. Num lance repentino de força consegui me levantar e encarei o rosto dele.

Minha mente latejava de dor, porém, eu insistia em sustentar o olhar. Forçava o meu corpo a reagir, mesmo que isso me enfraquecesse cada vez mais. Urrei de dor e clamei por coragem e vigor. Eu tinha que lembrar! Sim, eu sabia quem era aquele homem. Sorellina estava certa sobre a sua aura, que era a de um ser importante. Aquele era Bastiam Godwhile!

– Oh, parece que se lembrou de mim! – ele disse com tom de escárnio costumeiro. – Você ficou forte, garoto. Olha só você... Ainda está vivo!

– O que você está fazendo aqui? – perguntei.

– Oras, não seja indelicado. Sou o anfitrião de tudo isso. Não cabe a você sair perguntando o que bem entende.

– Droga, responda de uma vez. – disse com raiva. – Você pode se arrepender, doutor.

– Me arrepender? Tem certeza? Eu estou adorando tudo isso. A dor, o sofrimento e a angústia... São sentimentos que me deixam cada vez mais forte. Alías, o que você é capaz de fazer?

– Eu vou te matar. Sei que você é o culpado!

Bastiam se aproximou de mim e segurou o meu pescoço com uma força absurda. Ele disse com uma voz sibilante bem próximo ao meu ouvido: Sei sobre seu segredo, Baldwin. A garota! Ela não está aqui. A fragmentação fez isso com você! Suas memórias. Você é fraco sem ela. Ainda acha que pode me ameaçar? Em?!

Olhava para o céu nublado enquanto esperava pela morte, quando algum felino pulou da copa de uma das árvores e chutou o rosto do doutor. Consegui me livrar dele e dei alguns passos para trás. O tal indivíduo que invadira a clareira usava o capuz de sua blusa de frio e cercava Bastiam.

Ele não teve reação alguma, quando o seu novo algoz saltou em sua direção e cravou alguma coisa em seu peito. Fiquei sem reação. O corpo de Bastiam Godwhile despedaçou-se em pequenos estilhaços graças a uma explosão de labaredas incandescentes. Em meio aquela confusão vitral, um diário deslizou pelo chão congelado.

Não consegui acreditar na minha sorte. Porém, foi passageiro. A presença daquele ser era a mesma que eu havia encarado alguns instantes atrás em meio as árvores. Será que ele também queria me matar?! Ele veio e minha direção e retirou o capuz. Reparei que ele segurava um isqueiro que reconheci. Nunca senti tanto alívio em toda a minha vida.

– Você está bem?

– Luna!

– Você está bem? – ela repetiu a pergunta.

– Sim, eu estou. Melhor agora, inclusive. – eu disse. – Achei que havia te perdido.

– Fico feliz que esteja bem. O que você fazia deitado no chão enquanto o Dr. Frankenstein se preparava para te atacar? – ela disse em um tom debochado – Você está fora de forma, Baldwin. Cadê aquele garoto que matava garotas psicóticas e assassinas em uma floresta repleta de cartas, gatos remendados e pais angustiados? – disse Luna rindo.

Apesar de que assunto que ela usara para fazer troça fosse um pouco perturbador, o seu tom, o qual era matreiro e severo, ao mesmo tempo, fez-me rir. Somente Luna tinha o poder de despertar minha alegria em momentos como esse.

– Como você escapou da morte? – perguntei a minha amiga. – Você caiu do despenhadeiro. Isso deveria ter te matado.

– Baldwin, isso é algo que não pode ser explicado, pelo menos não agora. – disse – Eu sei tanto quanto você. Já se aproxima da resposta, não?

– Pare com essa atitude! – eu gritei – Essa é a parte que menos gosto em ti. Alternas sua personalidade em duas: uma Luna que tudo sabe, ou pelo menos assim o aparenta, e a outra, uma Luna que faz perguntas sobre sua humanidade e que não tem certeza de nada.

– Eu nunca menti para você. Não confunda minha confiança com onisciência divina, ou algo do tipo. – disse um pouco alterada.

– Desculpe-me. – falei um pouco culpado. – Mas não é exatamente isso. Não que eu queira acreditar que você possui onisciência, mas gostaria que possuísse mais respostas.

Luna olhou-me. Seu olhar felino aquietou meu ser por completo. Eu já não desejava respostas. “O que eu estou fazendo?” pensei, “Acabo de descobri que ela está viva e a aborreço com perguntas idiotas”.

– Luna, desculpe-me, mas entenda que estou muito confuso. Não suporto mais esse lugar... Não suporto mais tudo o que está acontecendo. E mal tenho ideia do que isso concretamente seja.

– Eu estou aqui, Baldwin. Passaremos por isso, ok? Tudo vai dar certo.

– Como você pode saber? – indaguei.

– Eu simplesmente sei. – ela disse ao mesmo tempo em que me lançava um olhar confiante. O brilho de seus olhos felinos me deu a certeza, naquele momento, de que eu estava preparado para tudo que teria de enfrentar.

Então, sem apelar para a razão, abracei Luna. As lágrimas surgiam em meus olhos, vindas de algum lugar distante. Aquelas lágrimas não pertenciam ao momento de então, vinham de outro tempo. Um bipe, daqueles aos quais já me habituara, soou por toda a extensão de minha mente, e nesse momento eu tive a sensação de que já havia abraçado Luna como então acontecia.

– Luna, falta uma peça em minha memória. – disse – Agora tenho absoluta certeza de que já te conhecia desde muito antes de enfrentar o Homem sem Rosto.

– Eu tenho a mesma sensação, Baldwin. – ela disse – Como eu te falei uma vez, a minha mente é repleta de imagens que dizem a seu respeito.

Interrompi o nosso abraço e indaguei à Luna:

– O que significa tudo isso? Sorellina... – os olhos felinos de minha amiga reviraram-se de aborrecimento ao ouvir o nome de minha prima, elas compartilhavam um sentimento mútuo de antipatia –... Disse-me que eu estou em um estado de amnésia. Isso explicaria muitas coisas.

– Não devia acreditar em tudo que alguém como ela fica dizendo pra você.

– Pensa bem: explicaria as imagens desconexas que ficam aparecendo em minha mente – disse, ignorando a frase ofensiva que Luna lançara em relação à Sorellina. – e também o fato de sentir nostalgia quando te vejo em certas situações.

– Sim, parece lógico. – disse a contragosto.

Nesse instante, um movimento nas árvores atrás de nós, fez-me virar instantaneamente. Eu já me preparara para lutar contra o metamorfo, quando Sorellina apareceu dentre os arbustos.

– Baldwin, você está bem. Graças! – disse minha prima, então notou a presença de Luna – O que ela está fazendo aqui?!

– Não seria melhor você dizer: “Obrigada, Luna. Por ter salvado a vida do Baldwin, mais uma vez” – eu disse. – Sim, Sore, a Luna me salvou de novo. Vocês poderiam pelo menos fingirem suportarem uma a outra? – disse, me dirigindo às duas.

Elas se entreolharam em uma batalha épica de olhares raivosos e, quando finalmente pararam de se encarar, Sorellina me perguntou:

– Aquele era Bastiam Godwhile, certo? O que se fez dele?

– Sim, era ele mesmo. A Luna o matou. Como você sabe que o senhor de terno branco era o Dr. Bastiam?

– Duvido muito. – percebi que se referia ao fato de Luna ter matado o Dr. Bastiam. – E você, conseguiu recuperar o diário? – disse, ignorando minhas dúvidas.

– A Luna conseguiu quando o matou. Está ali. – eu apontei em direção aonde o diário caíra. O mesmo havia desaparecido.

– Tem certeza que o recuperou? Parece que não. – Sorellina exibia uma expressão que misturava preocupação e raiva. - Diga-me que não ficou perdendo o seu tempo em perguntas à Luna, e que por isso, não viu quando alguém, que ambos consideravam já morto, roubava o diário de vocês?

– Como pode saber se foi realmente o Bastiam que pegou o diário? – disse. – Eu vi quando ele se fragmentou em milhares de pedaços até desaparecer. Seria impossível.

– Vem me falar de impossível? No meio-mundo? É óbvio que foi o Bastiam, o diário pertence a ele, seu imbecil. – disse Sorellina.

– Mas como ele poderia ter...? – dizia quando Luna me interrompeu.

– Não fale com o Baldwin dessa maneira! – disse. - Só eu posso falar com ele assim.

– Você não tem o direito de lhe dirigir a palavra, visto a sua real condição, quanto mais de lhe dar sermões! – gritou Sore. – Eu sou a prima dele, eu sou a única família que ele tem nesse lugar, e eu falo com ele como eu bem achar melhor!

Luna ia revidar as últimas frases raivosas proferidas por Sorellina, quando algo inesperado aconteceu.

De todas as árvores, surgiam como estranhos parasitas, várias televisões. Elas estavam chiando, mas de vez em quando, ouviam-se frases comumente ditas por narradores em uma partida de futebol, assim como os gritos de torcida. Misturados aos mesms, um urro agudo, pertencente a uma mulher ecoou, e depois, uma risada grave.

Aqueles sons despertaram algo dentro de mim. Eu sabia o que estava por vir. Lembrei-me do que o metamorfo dissera: “Isso mesmo, ele está vindo Baldwin.”. Eu sabia muito bem quem estava vindo e isso me aterrorizou.

Então uma voz, que parecia vir do meio dos sons que se misturavam com o chiado contínuo das televisões, disse:

– Você está errada, pequena Ester. – Sorellina congelou, ela sabia que somente uma pessoa a chamava assim – Você não é a única família do Baldwin aqui nesse lugar.

Então a voz riu absurdamente, gargalhou enquanto o chiado das televisões aumentava continuamente. Caí no chão e coloquei a minha mão sobre meus ouvidos, apertando fortemente, enquanto lágrimas de horror e raiva brotavam de meus olhos.

– Não, você não pode estar aqui! – eu gritei. – É impossível... Vá embora!

– Fraco como sempre, Baldwin! – disse a voz, que eu conhecia muito bem. – Tenho vergonha de dizer que você é meu filho.

A última frase confirmou dolorosamente quem havia chegado: era o meu odioso pai. Então eu não pude me conter, a raiva sobrepujou o medo, fazendo-me levantar, abrir os olhos e dizer:

– Odeio-te com todas as minhas forças! – gritei. – Você não é meu pai, é um mero progenitor maldito que causou lamúria a minha mãe, assim como a mim.

– Esse seu vocabulário rebuscado. – ele gargalhou – Patético, assim como seu avô e sua mãe.

Então um líquido rubro como sangue começou a escorrer de cada televisão, indo se juntar no centro da clareira, próximo ao chalé, e da mancha rubra no assoalho branquíssimo da neve, brotou, como uma medonha planta, uma massa maligna que transformou-se na figura odiosa de meu pai.

Ele apareceu assim como me lembrava. Um homem que tinha por volta de seus trinta e seis anos, a idade que ele possuía quando abandonou a mim e a minha mãe, de cabelos negros, olhos cor de caramelo, pele parda e barba malfeita sobre um rosto de aspecto severo e quadrado. Seu porte era alto, e ele possuía uma altivez arrogante e cruel, tal crueldade que se manifestava também em seu olhar.

– Ele é o seu pai, Baldwin? – perguntou Luna.

– Não, sua idiota. É um entregador de pizza expressa do meio-mundo. – disse Sorellina. – É óbvio que aquele é o pai do Baldwin, mas isso não é bom. Primo, você tem que se controlar, ele foi criado pelo meio-mundo para te causar medo e raiva, por favor, se...

– Pare! Você tem que me deixar resolver isso por mim mesmo! – gritei para Sore, mas olhei também para Luna e, pela primeira vez, a venci em uma batalha de olhares. Ambas sabiam que eu tinha razão.

– Então você acha que não precisa ter medo de mim, Baldwin? – meu progenitor disse. – Por acaso não se lembra?

Gritos vieram em minha cabeça. Gritos de raiva e medo de uma mulher e de uma criança... Obviamente eu me lembrava.

– Lembro-me e isso só me faz ter mais raiva de ti. – era verdade, mas o medo também se fazia presente de forma arrebatadora, e não conseguia controla-lo, minhas pernas começaram a tremer.

– Você está com medo, Baldwin? O Baldwinzinho do papai está com medo? – ele gargalhou em escárnio e prazer.

– Não se refira a si mesmo como meu pai, como se você tivesse o direito! – eu gritei.

– Não vou me cansar lutando com vocês, estou com preguiça e está quase na hora do futebol. – lembranças dolorosas advinham dessa frase. – Mas eu tenho um colega que adoraria matar vocês agora.

Ele assobiou, e então eu soube o que se aproximava. Um vento gélido passou por nós enquanto uma presença maligna se fazia sentir... Então um urro grave e poderoso como um trovão estremeceu toda a floresta: o metamorfo não havia morrido, ele estava voltando. Tive a sensação de que o mesmo estava ainda mais poderoso e lembrei-me do que Sorellina dissera, provavelmente, não era apenas uma sensação.

O telhado do chalé rangeu e se partiu, e de dentro daquele lugar, dentro do qual eu havia me sentido seguro, surgiu a criatura, o medo de Sorellina.

Ele estava transfigurado em sua forma mais grotesca, aquela em que só se viam membros desconexos saindo de todas as partes de um centro que não se podia ver. Um dos rostos presentes naquela criatura pertencia a ninguém mais, ninguém menos, que Barbara Salvatore. E quando a criatura falou, foi a boca na face de Barbara que se mexeu, e foi a voz dela que mais sobressaiu-se a miscelânea de timbres.

– Olá, Sorellina. – ela riu em escárnio. – Pronta para me enfrentar? Ou vai pedir a terceiros para se jogarem de despenhadeiros comigo de novo?

– Eu não pedi àquela idiota da Luna para me ajudar. A escolha não foi minha! – ela olhou para mim ao dizer isso, não entendi, então, o porquê.

– Eu só vim aqui para lhe dizer que você nunca será como Barbara Salvatore, esses seus cabelos negros, a mudança na tonalidade de seus olhos, isso não significa que...

– Pare de falar, sua criatura horrenda. Eu perdi o meu medo por você, pois sei que existem coisas piores. – disse Sore.

– Então por que eu ainda existo, se não tem medo de mim?

– Este é o meu meio-mundo. Você existe apenas para que eu possa te matar.

Então a expressão do monstro, se é que era possível captar alguma dentre todas aquelas faces deformadas, adquiriu certo teor de medo, o que foi bastante irônico e estranho.

Sorellina correu em direção à criatura, essa lançou diversos de seus braços para agarrar minha prima, ela, no entanto, se desviou de cada um com uma destreza sobre-humana. Sore levantou a mão e simultaneamente ao seu movimento, uma parede de neve se ergueu na sua frente e caiu sobre o metamorfo.

Enquanto a criatura se desvencilhava do manto branco que a cobria, Sorellina correu em direção às árvores de aspecto metálico, e arrancou um de seus galhos, nesse instante a televisão que se agarrava ao tronco da mesma, explodiu, como forma de protesto. Minha prima retirou uma faca de dentro de suas roupas de frio, e criou, com aquele galho, uma lança improvisada, o som que isso causou foi excruciante, metal contra metal.

O monstro já havia se desvencilhado por completo da neve que o cobria, quando minha prima avançou sobre o mesmo como um algoz de aspecto selvagem, e cravou-lhe a lança no centro para o qual convergiam todos os membros.

Um grito formado por mil vozes ressonou por todos os cantos. Eu sabia que de algum modo minha prima havia derrotado o seu medo. O medonho grito da criatura era absurdamente alto e, por mais que eu tentasse abafar o som com minhas mãos, ele parecia advir de dentro de mim.

Então o metamorfo explodiu em labaredas e sumiu, porém o grito continuou. Todas as televisões explodiram e o mundo parecia tremer. Avalanches vinham de todas as direções e a confusão era absoluta. Aquele era o último ato de ódio e vingança daquela criatura horrenda.

A neve cobriu a todos nós com um impacto tamanho que todo o meu corpo sucumbiu em dor. Então todo o mundo pareceu cair, como se um vácuo puxasse todo o universo para baixo. Não sabia exatamente o porquê de aquilo estar acontecendo, mas sendo coincidência ou não, não mais senti a presença de Sorellina. A mão de Luna surgiu de algum lugar em meio ao caos, apertei-a na minha e encaramos juntos o desconhecido.


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Notas finais do capítulo

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