GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 6
Sorellina


Notas iniciais do capítulo

Demorou, mas saiu. E é de longe o melhor capítulo até agora. o/



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O ambiente pacato e sem vida do hospital, havia submergido, literalmente, em desordem. Eu morria na água gelada, pois sentia meus pulmões se enchendo. Pareciam a beira de estourar. Cadeiras, mesas, medicamentos e tudo mais dançavam em meio a correnteza. Entretanto, após a confusão, a ordem adveio do caos. Encontrei-a na inconsciência. Tudo estava completamente calmo.

Nunca saberei dizer, com certeza, por quanto tempo permaneci desacordado, e nem ao certo como escapei do afogamento. Quase me senti novamente no limbo transitório entre o auditório onde a Orquestra do Caos tocara e o hospital. Tudo que havia transcorrido até então parecia parte de algo longínquo, e, o protagonista de tais acontecimentos, uma versão pusilânime de mim.

Os meus sentidos passaram a retornar paulatinamente. Sobressaltei-me ao perceber que estava morrendo de frio. Senti fracamente minha mão apertando outra, pois meu corpo encontrava-se dormente. Ambas estavam muito frias. O diário, o qual eu havia roubado instantes antes da grande parede de água me alcançar, ainda permanecia firmemente preso debaixo do meu braço. Ele ainda estava um pouco molhado e algumas letras ficaram borradas. Abri meus olhos, porém, foi como se eu não os tivesse abrido, pois o mundo permaneceu na mais completa escuridão, isso talvez tivesse assustado o antigo Baldwin, mas depois do ocorrido no hospital, sentia-me completamente diferente. Entendia e aceitava o medo. E ainda usufruía de seu principal benefício: A sobrevivência.

A mão de Luna começou a tremer, e isso me despertou para uma iminente hipotermia que se aproximava. Se aquele frio não cessasse, morreríamos. Precisávamos sair dali. Então veio a dúvida: “Onde estávamos?”.

Constatei que a falta de luz se dava pelo motivo de algo nos cobrir, a Luna e a mim. “É neve!”, percebi horrorizado. Estávamos cobertos por um manto gelado e mortal. Em nenhum momento soltei a mão de Luna e o diário. Mesmo não me livrando deles, comecei a fazer o máximo ao meu alcance para retirar o tapete branco que se encontrava em cima de nós. Meus músculos quase congelados estavam rígidos e faltava pouco para ficarem imóveis.

Após minutos de horror, eu finalmente conseguira desvencilhar-me de toda a neve, então comecei a desenterrar Luna. Ela estava, assim como eu, muito pálida, porém, diferentemente a mim, permanecia inconsciente. Parecia sussurrar algo, agucei meus ouvidos para poder ouvir.

– Você vai melhorar, Baldwin... Eu prometo. – disse fracamente.

– Luna, eu estou bem. – disse, imaginando que ela estivesse recobrando os sentidos e que se dirigia a mim.

– Você vai sair desse hospital e tudo vai dar certo... Eu... – ela parou de falar abruptamente.

Seus últimos delírios fizeram-me perceber que ela não se referia ao Baldwin de então. Imaginei se minhas divagações no hospital estariam corretas. “Teria Luna, mesmo em estado similar ao meu, cuidado de mim?”, perguntei-me em pensamento.

O vento castigava-nos sem piedade, e para onde olhava tudo era igual, como se um manto branco-acinzentado estivesse cobrindo minha visão por completo. Porém, havia fumaça saindo de algum lugar dentro de uma floresta perto dali. Era o único lugar que podia ser considerado um lugar, pois o resto se resumia a uma única palavra: nada. O frio tornara-se mais intenso, visto que estávamos expostos à nevasca. Partimos para a única direção onde algo existia.

Um uivo horrendo fez com que meus sentidos mais selvagens se atiçassem. Jurava que era oriundo do mesmo lugar de onde saía a fumaça de uma chaminé. Tentei erguer Luna em meus braços, para sairmos dali, porém, não consegui andar e carregá-la sobre a neve. Mesmo nessa situação aterradora, procurei manter a calma. Enfiei a extremidade inferior de minha camisa dentro do meu calção, de modo que pude colocar o diário pela gola sem o mesmo cair, ficando a salvo dentro de minha vestimenta. Assim, poderia usar melhor minhas duas mãos. A única forma de sair dali era caminhar arrastando Luna através da neve. Foi o que fiz.

Comecei a me locomover, puxando Luna comigo. Ela estava em tal estado de inconsciência, que nem deu sinais de que acordaria, e isso me preocupava profundamente. Continuei andando, sem saber exatamente o que esperar, até que cedi ao cansaço. Caí. Mesmo em tal situação, não me acomodei, pois nunca mais daria motivos para Luna pensar que eu a abandonara.

Comecei a gritar por socorro, o mais alto que pude. Minha garganta começou a doer. Fiquei roco, mas continuei gritando, arrancando determinação da vontade de viver e de salvar minha amiga. Minha garganta começou a sangrar. Ao cuspir o sangue na neve, o contraste entre o vermelho e o branco causou-me a sensação de algo abstrato, mas familiar... Um turbilhão de imagens invadiu minha cabeça. Eu vi pessoas mutiladas, com feridas oriundas de diversas maneiras de se morrer: mordidas, cortes que pareciam feitos por machados, corpos tão despedaçados que só poderiam ter chegado a tal ponto em um grave acidente... Enfim, foi horrível.

Um dos corpos que vi me chamou a atenção. Havia muito que não pensava nesse nome, parecia o ter escutado em outra vida. Lukas Jornasson jazia todo mutilado em um dos leitos, exatamente como eu lera na descrição que Sorellina dera em seu blog. “A lan house, a excursão, o acidente... há quanto tempo isso tudo aconteceu?”, indaguei. O que me assustava era o fato de não fazer a mínima ideia da resposta, para ser franco, não sabia mais discernir o tempo e a realidade. Afinal, o que eu poderia considerar como real?

Ozzy perguntara-me no hospital se era possível que houvéssemos compartilhado um pesadelo, pois ele acreditava que havíamos acordado da inconsciência gerada pelo acidente. Naquele momento, em retrospectiva, tentei organizar os fatos em uma sequencia razoavelmente lógica, e vi que eu não conseguia. Minhas lembranças eram deveras confusas, e o que antes considerava real, misturava-se a memórias terríveis e fantásticas tão convincentes quanto.

Um bipe, mais ensurdecedor do que qualquer um dos outros que haviam soado em minha mente, me estonteou. Meu estômago ficou em tal estado de náusea, que não pude conter o vômito. Encontrava-me ajoelhado e acabei por deixar meu corpo cair, se render. Enquanto perdia os sentidos novamente, pude ouvir uma voz conhecida gritando por mim. “Não é possível! O que ela estaria fazendo aqui? Devo estar delirando”, concluí. Porém, o vulto que se aproximava confirmava algo que parecia impossível, mas acima disso, maravilhoso. Então, antes que pudesse ver-lhe o rosto e sanar de vez minha incerteza, tudo se apagou.

. . .

Eu acordei envolvido por cobertores e sacos de água quente, ao lado de uma lareira de aspecto rústico. O amargor do vômito misturado ao gosto de ferro, característico do sangue, ainda eram, infelizmente, captados pelo meu paladar.

O ambiente no qual me encontrava, estava fracamente iluminado, e era incrivelmente aconchegante. Após o torpor da pós-inconsciência se amenizar, analisei tudo a minha volta: na decoração se incluíam diversas cortinas de cores quentes, que então se encontravam fechadas sobre as janelas, tapetes de coloração laranja-avermelhada, abajures, de onde advinha, além da lareira, a fraca iluminação. Uma televisão, que se situava rente à porta estava ligada, mas apenas chiava. Entre a televisão e um sofá de aspecto velho, porém imponente, encontrava-se uma mesinha, e, sobre ela, o diário que eu havia roubado no hospital.

Olhei para meu lado esquerdo, e, para meu imenso alívio, Luna se encontrava ali, também envolvida por cobertores e sacos de água quente. Queria falar-lhe algo e a ouvir responder, desde o incidente com o tsunami não ouvia sua voz, e isso parecia diminuir meu ímpeto, além de me afligir indescritivelmente. Luna não havia acordado ainda, de modo que não havia meios de sanar minha vontade de escutá-la.

Uma sonolência irresistível, gerada pelo conforto proporcionado por aquele ambiente onírico, apossou-se de mim. Eu cedi, e caí em profundo sono.

Quando acordei, as chamas da lareira já estavam se enfraquecendo. Como não entrava luz pelas laterais da cortina, imaginei que a noite já havia caído. Olhei para o lado, imaginando encontrar Luna, mas ela não estava ali.

– Luna! – gritei. – Luna, onde você está?!

– Então finalmente acordaste, Baldwin! – disse uma voz, a qual não era de Luna, mas que eu conhecia muito bem. – Já estava preocupadíssima.

E então ela surgiu, saindo do corredor, para que todas as minhas inseguranças se desfizessem. Não restavam mais dúvidas. Olhos castanhos, da mesma cor de seus cabelos. Uma mulher atemporal. Mal podia acreditar... Minha mãe se encontrava de pé na minha frente.

Lágrimas de felicidade vieram instantaneamente aos meus olhos. Levantei-me, mesmo sentindo dores por todo o meu corpo, e a abracei. Ela retribuiu.

– Mãe, como é bom te ver. Eu nem posso acreditar que me encontrou. – eu disse.

– Quase que me matam de preocupação, você e Luna. – ela disse.

Sobressaltei-me involuntariamente. Desvencilhei-me de seus braços e indaguei:

– De onde você conhece a Luna?

– Baldwin, você está bem? – Lara perguntou. – Qual o objetivo de tal pergunta incoerente? Você sabe muito bem de onde eu a conheço.

– Eu... – não tinha ideia.

– Não vamos dialogar sobre isso, vocês já passaram por coisas de mais hoje. – disse minha mãe. – E você sabe que ela não gosta de falar sobre essas coisas.

Naquele instante, Luna entrou na sala. Minha mãe mudou de assunto abruptamente:

– Vá comer então, Baldwin. Vê-se claramente que estás morrendo de fome. – ela disse. – Vou recolher os cobertores e os sacos de água. Os dois podem ir à cozinha que eu resolvo isso por conta própria.

Luna olhou para mim, e seu olhar dizia claramente que ela havia percebido a mudança abrupta no tópico da conversa entre minha mãe e eu, que ocorrera com sua chegada. Com certeza, me abordaria sobre isso mais tarde.

Cheguei à cozinha sem problemas, a casa era pequena e o trajeto bastante intuitivo. Surpreendi-me quando entrei no aposento. Lá se encontravam três pessoas: Um homem loiro, de olhos muito escuros, que aparentava ter seus quarenta e tantos anos; Uma mulher de cabelos castanhos, como os de Lara e uma menina loira, a qual eu já havia visto. Era a mesma que havia chamado minha mãe de “Tia” pouco tempo antes de eu enfrentar o Homem sem Rosto.

– Até que enfim você acordou, Baldwin! Seu dorminhoco. – ela disse, rindo. – estava começando a achar que você tinha ficado mais retardado do que sempre foi. – ela caiu na gargalhada. – Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos, primo.

De que ela me chamou? Primo?” pensei em meu íntimo.

– Cis Ester Bertlein! Não implique com o seu primo! – disse a mulher de cabelos castanhos. – Ele acabou de passar por um perrengue daqueles.

– Desculpa, mãe. – disse a menina a contragosto.

– Não é comigo que tem que se desculpar. Baldwin, querido, ainda bem que você e Luna estão bem. Não imagina o quanto ficamos preocupados. – disse a mãe de Cis Ester.

– O que tinha na cabeça de vocês quando resolveram sair na neve, com esse tempo? – perguntou o alto homem loiro, que imaginei ser o pai de Cis Ester.

Eu não entendi a pergunta. Havíamos chegado depois do tsunami. Nunca estivera naquela casa antes, pelo menos assim o achava. Eu estava muito confuso, Luna, em contramão, compreendera o questionamento perfeitamente.

– Quando saímos, o tempo não estava tão ruim. Baldwin que teve a brilhante ideia de explorar a neve.

– Do que você está falando, Luna? – perguntei. – Do que todos estão falando? – fez-se o silêncio. - Eu não entendo.

– Você tem certeza de que está bem, Baldwin? – indagou a Sra. Bertlein.

– Eu não sei... Só não consigo compreender... – nesse instante, Lara entrou no aposento.

– Baldwin, por que você ainda retém este diário? – disse minha mãe, segurando o objeto. – Pedi para que o deixasse no Bierno Atopa, você sabe que pertence a alguém de lá.

Fiquei desnorteado por um instante e uma forte dor de cabeça me afligiu. Uma frase provinda de alguém desconhecido invadiu meu raciocínio dizendo “Por que roubou meu diário?”. Esse questionamento repetiu-se em minha mente até se tornar fraco como um sussurro. Poderiam ser as memórias de um fantasma?

– Quando foi que você me pediu isso? – perguntei muito atordoado. – O que está acontecendo aqui? Quem são estas pessoas, mãe?

– Por que está agindo assim, Baldwin? – Lara indagou. – Você não está reconhecendo seus próprios tios e sua prima?

– Meus tios... – comecei a dizer, quando, de repente, algo aconteceu.

Milhares de imagens sobre aqueles que eu julgara serem estranhos invadiram minhas lembranças, porém, elas eram incompreensíveis. Apesar de saber que não deveriam ser estranhos, não me lembrava de seus nomes.

– Isso mesmo... Você não me reconhece? – disse a mulher de cabelos castanhos. – Sou eu, sua tia Lília.

– Desculpe-me. Apesar de minha mente estar repleta de imagens suas, não consigo lembrar-me de seu nome, ou sentir qualquer apreço em relação a você. – respondi.

– Este menino precisa de um médico, Lara. – disse o meu suposto tio. Ele estava um pouco enraivecido. – Não vê que ele está delirando?

Então, um barulho supersônico ressonou por todo o recinto. Uma dor lancinante em meu lóbulo frontal fez-me vacilar e cair. Toda a casa começou a tremer.

O diário que eu roubara no hospital, caiu ao meu lado. Quando olhei para cima para ver o porquê de minha mãe o haver soltado, horrorizei-me. Ela estava toda deformada. Suas feições joviais e belas para sua idade estavam agora tortas e cruéis. Os seus dentes estavam pontiagudos e ameaçadores. Os olhos de “minha mãe” não eram mais castanhos como os meus, mas sim, azuis e chamativos. Ela se contorcia de forma estranha e aterrorizante.

Olhei em volta, e o mesmo ocorria com os outros que estavam presentes na cozinha, inclusive com Luna. Todos tinham olhos de um azul da mesma tonalidade que os da criatura em que minha mãe se transformara.

– Baldwin! Corre para cá! – disse uma voz vinda do corredor.

Não pensei duas vezes, me levantei e corri em direção à porta da cozinha. Quando cheguei ao corredor, quem me esperava era... Luna, a verdadeira! Ela vestia roupas próprias para à neve e trazia roupas desse tipo para mim também.

– Você estava dentro da cozinha, eu a vi se transformar em um monstro... A minha mãe ela...

– Eu não estava na cozinha, Baldwin. Aquilo definitivamente não era eu, e provavelmente nem a sua mãe.

De repente, um barulho horroroso veio da cozinha. Uma espécie de grito que mesclava prazer e dor, seguido por uma risada maldosa que misturava diversos timbres de voz em um só som demoníaco e assustador.

– Luna, o que é isso? – perguntei.

Ela parecia preocupada.

– Baldwin, venha. Vista isto. – disse. – Precisamos sair daqui agora mesmo.

Já corria em sua direção quando percebi algo.

– Luna! Deixei o diário dentro da cozinha. – exasperara-me de tal forma, que havia esquecido o diário no chão.– Preciso voltar.

– Sim, ele é muito valioso. Como você pode ter o esquecido lá dentro?! – bradou Luna.

– Fui precipitado e agi antes de pensar. – disse.

– Idiota! Vai logo buscar o diário. – ordenou com um olhar mesclado de fúria e desafio.

Assenti e saí correndo de volta à cozinha. Ao entrar lá, a cena foi incrivelmente bizarra. As criaturas estavam se fundindo em um só estranho ser. Membros desconexos surgiam por todos os lados. O tronco que pertencera a minha mãe estava apoiado em quatro pernas, a cabeça de Cis Ester surgia do quadril e um braço era absorvido pelas costas da estranha massa corpórea. A criatura, ao me ver, proferiu:

– Ainda bem que voltou, Baldwin, você nem jantou, querido.

A voz era uma mistura dos timbres de minha mãe, Cis Ester, Tia Lília e seu marido. Mas havia um quinto timbre que se destacava, e eu o conhecia: Era a voz de Ozzy.

A visão era perturbadora e demasiadamente confusa, mas eu não podia me demorar. Olhei para o chão e identifiquei o diário caído onde eu o deixara. Em um movimento rápido, o apanhei. Então tive uma ideia. Para ganhar tempo, agarrei uma das cadeiras que encontrei na cozinha e a levei comigo para fora do aposento. Ao sair, fechei a porta, e pus a cadeira presa entre a parede do corredor e a maçaneta da mesma, de modo a bloquear a saída.

Luna ainda me esperava.

– Vista a sua roupa de frio, precisamos nos apressar. – ela disse.

Assenti com um gesto. O casaco era pesado e difícil de pôr, assim como o restante da vestimenta. Tive de retirar a roupa que já estava usando, e, ao ficar só de cueca, percebi o quão frio estava aquele ambiente, além de corar, pois Luna me encarava.

– Não temos tempo para pudores infantis, jovem. Seja rápido, isso é caso de vida ou morte. – ralhou.

– Tudo bem. Desculpe-me. – eu disse.

Ao terminar de me vestir, Luna e eu saímos correndo para fora daquela casa, enquanto escutávamos a porta inutilizada ser forçada pela criatura. Era difícil progredir em meio a toda aquela massa de neve, mas fizemos o máximo possível. Encaramos o vento que parecia cortar nossas faces como mais um inimigo e usamos de toda nossa força para nos embrenhar em meio a aquela floresta repleta de árvores brancas e nuas que possuíam gravetos semelhantes a ossos. Elas pareciam lamuriar quando a ventania passava em meio às mesmas.

Continuamos correndo do que definitivamente era um medo, mas eu pressentia que não estávamos conseguindo nos distanciar. Aquela criatura escapara da casa e nos perseguia numa velocidade absurda. Saímos da floresta morta e passamos a fugir em meio ao tapete branco. Não havia onde se esconder.

Paramos por um minuto, analisando o que se poderia feito. Não havia meios de escapar. Escutei o barulho de árvores sendo destroçadas. O nosso algoz era forte demais e com certeza o mais perigoso até o momento. A irracionalidade no seu mais puro sentido me alcançou. Eu não fazia ideia do que fazer e permaneci imóvel, impotente.

Distante de nós, algo parecia correr na nossa direção. Não era o monstro, mas sim um pequeno ponto que estava na linha do horizonte, à minha frente. E se aproximava rapidamente. Pude distinguir um guarda-chuva vermelho. Segundos depois, uma garota. Atrás de nós, o medo se lançou da floresta. Aquela mistura grotesca de meus familiares me observava com um ódio terrível e começou a se transfigurar novamente. Agora, sua feição era quase a forma perfeita de Ozzy.

Tentava raciocinar no que deveria ser feito para nos salvarmos, mas nada era suficientemente bom e rápido. Não houve tempo hábil e Ozzy retornou à sua fúria anterior e arrancou uma das árvores que estava próximo a ele. Seus olhos azuis brilhavam de alegria. O monstro achava que espalhar o pânico e aterrorizar pessoas inocentes era incrivelmente divertido.

Ele jogou a árvore e eu jurei que ela ia me acertar, porém, Luna me empurrou para longe do alcance de queda da mesma e desviou-se com uma agilidade quase felina. Nunca havia a visto agir com tanta perspicácia e imponência, o que me fez pensar que não era apenas eu que havia ficado mais forte. Havíamos nos desenvolvido mutuamente. Meu sangue começou a ferver e isso fez com que eu acordasse para o jogo.

Depois de ter alcançado o solo, o grande tronco branco fez com que uma cortina de neve ficasse suspensa no ar por alguns instantes. O que foi suficiente para que despistasse o monstro, que ainda não estava em posse de todas as suas faculdades mentais, e propiciasse uma brecha para que eu e Luna corrêssemos em direção à menina. Não havia alternativa melhor. Contudo, a estranha já estava bem próxima e a alcançamos rapidamente.

Pude distinguir mais claramente os aspectos da menina: ela possuía cabelos escuros e olhos castanhos. Exceto essas duas características, era idêntica a minha prima Cis Ester, que eu reencontrara minutos antes. A garota corria segurando um guarda-chuva vermelho e todas as suas vestimentas que a protegiam do frio possuíam a tonalidade negra. Enfim, nos alcançamos.

– Há necessidade de eu perguntar quem é você? Ou também vai se transformar num monstro igual aquele? – perguntei apontando para o ser que agora corria em nossa direção.

– Droga. Ele vai nos alcançar. Nós somos lentos demais... Afastem-se. – ela pareceu ignorar totalmente o que eu disse. Estava inteiramente focada no nosso terrível algoz. – Ele é meu.

A desconhecida definitivamente sabia o que fazer. Luna, esperta como sempre, havia se distanciando alguns bons metros para trás. Alcancei-a e esperei apreensivo pelo choque de forças entre medo e criança. A garota fez um leve movimento com um dos braços e juro que a ventania começou a agir de modo peculiar. Como se estivesse possuída.

Ozzy, ou qualquer outra coisa, retornara a sua forma mais estranha: uma massa corpórea que mesclava vários indivíduos que eram parte da minha família. Rostos se contorciam de uma maneira bizarra. Ele parecia mais alto... E mais assustador. Corria e fazia o chão tremer, mas isso não alterava o estado indiferente da garota, que estava compenetrada no que estava planejando.

Quando o monstro se aproximou da menina, ela fez um gesto para os céus com o seu guarda-chuva e uma onda de choque fortíssima empurrou seu inimigo para bem longe, próximo à floresta. Não hesitante, ela retornou a correr e indicou com as mãos que fizéssemos o mesmo. Seguimos a garota, que parecia saber onde estava indo. Como isso era possível em meio aquele cenário totalmente branco e vazio? Eu comecei a ficar desconfiado quando ela parou em meio à neve e chutou duas vezes um local aleatório do chão. Bom, ao menos era o que deveria ser. Uma pequena porta de madeira abriu-se e a garota se lançou para dentro dela. Fizemos o mesmo.

A passagem se fechou com um forte baque e percebi que estávamos em um ambiente totalmente escuro. Luna estava próxima a mim, mas igualmente desnorteada.

– Ei, cadê você? – perguntei.

– Aqui.

No momento em que ela respondeu, algumas pequenas lâmpadas se acenderam. O lugar se assemelhava a uma gruta e estava repleta de fotos nas paredes. Era incrível o que aquela menina havia feito sozinha. Transformara um lugar úmido e sem proteção alguma num bunker particular. Obviamente que não era tão espaçoso quanto.

– O que acharam? – perguntou a garota.

– Interessante. – respondeu Luna. – Ajeitou tudo isso sozinha? Adorei essas fotos nas paredes.

– Talvez não goste muito do que foi registrado nelas. São cenas fortes demais. Baldwin, gostei muito dessa sua amiga.

– Não creio. Mais uma pessoa que eu não lembro e que sabe meu nome? Quem raios é você? – disse. – Tu és Cis Ester, minha prima? Você se parece demais com ela.

– Errado. Aquela cópia ridícula se parecia comigo. Não o inverso. Mas também não posso dizer se sou definitivamente sua prima... Ou talvez eu seja. Não entendo mais. Enfim, me chamo Sorellina nesse meio-mundo. Seja bem-vindo, primo. – respondeu a conhecida.

– Sorellina? Li um blog uma vez, no qual a jornalista usava o pseudônimo Sorellina. – eu disse – A reportagem que li era referente a um escândalo envolvendo os Godwhile.

– Ah, você leu o meu blog, Baldwin! – ela disse animada – Achei que só eu e minha mãe líamos. – ela riu. - Tenho uma grande dívida com a Barbara... ela também lia meu blog e é uma grande jornalista! Sempre a uso como inspiração.

– Então você é a Sorellina do blog?! – disse perplexo – tenho perguntas a te fazer, muitas. Mas é você mesmo? Jura que não vai se transformar num bicho que quer me matar?

– Juro. Sobre suas perguntas, nem gaste sua saliva, teria que explicar-lhe coisas de mais, e não temos esse tempo. Aliás, aquele metamorfo é meu medo e, consequentemente, ele quer me matar. Você não é a verdadeira caça. Não entendo o motivo de ele ficar assumindo essas formas estranhas. Tudo bem com você? Parece meio desnorteado.

– É muita informação de uma vez só, e isso faz-me concordar contigo quanto as perguntas, talvez seja melhor fazê-las em outro momento. Enfim, presumo que você queira que eu seja seu herói. Estou certo?

– Errado de novo. – ela riu. - Você ainda não é tão forte quanto pensa. Ainda não conseguiu compreender metade do que está acontecendo. Ao contrário de mim, é claro. Você não fala? – ela perguntou para Luna.

– Geralmente eu assumo a parte sã do diálogo. Tento focar no que é realmente importante. – Luna saiu de seu canto e se aproximou bastante de Sorellina. – O que foi aquilo que você fez lá fora? Responda. – ela tirou o isqueiro do bolso e parecia querer usar como uma arma, caso fosse necessário.

– Sério? Tem certeza que você quer me ameaçar? Um mero sentimento? Tudo bem, não me importo. – ela revirou os olhos. - Como falei, esse é o meu meio-mundo. Investiguei o bastante para descobrir que posso alterar ele da forma que eu quiser. Claro que há limites. Existe uma espécie de centro que controla tudo isso, uma trava. Logo não há muito que eu possa fazer.

– Não passou de um mero truque? – indagou Luna.

– Exatamente.

– Compreendo. O que pretende fazer agora?

– Destruir o medo e sair daqui.

Fez-se um forte silêncio. A desconfiança de Luna somada a atitude imponente de Sorellina criou um clima bem tenso. Ambas pareciam estar se desafiando. Indiferente a elas, mantinha-me calmo e havia colocado em ordem os passos que deveriam ser seguidos. O primeiro de todos era enfrentar o monstro.

– Bom, tenho coisa mais importante a fazer. – disse enquanto empurrava a escotilha.

– Espere. – disseram as duas no mesmo instante. Elas se encararam.

– Ele é forte demais. Vamos ter que enfrentar juntos. Durante todo o tempo que estive nesse meio-mundo, no máximo o feri levemente. Junto com você, Baldwin, posso vencê-lo. – disse Sorellina.

– Junto com Baldwin. – repetiu Luna de modo irônico. – Está dizendo que não irei fazer nada? Qual o seu problema?

– Você não tem força alguma e é diferente demais. Poderia dizer que nem é humana. – disse Sorellina.

A frase dela lembrou-me dos questionamentos feitos por Luna sobre sua humanidade enquanto estávamos no hospital que fora invadido pelo tsunami. Ela ficou sem palavras e fez um gesto de “se virem” com as mãos.

O amontoado de coisas que havia naquela gruta começou a tremer, chacoalhar e pequenas pedras caíram do teto. Isso significava que o medo havia nos alcançado. Não sabia se ele conhecia o esconderijo da garota. O metamorfo urrou de forma horrenda bem acima de nós... O monstro sabia que estávamos bem perto.

– Primo! – Sorellina exclamou. – Precisamos sair e enfrentá-lo, ele não pode entrar aqui, há informações de mais. Coisas que consegui guardar do meu próprio medo.

Até então eu não havia refletido sobre as imagens que se encontravam presas às paredes: havia diversas fotos de pessoas feridas das mais variadas maneiras, ligadas umas às outras; um enorme mapa, no qual se encontravam marcados vários pontos com o símbolo da seringa de Asclépio, o qual eu notara, se encontrava, de novo, marcado em meu antebraço. Não sabia exatamente quando ele havia reaparecido, mas lá estava mais nítido que nunca.

– Está bem, mas eu exijo que Luna nos acompanhe. – disse. – Sem ela eu não consigo fazer nada direito.

– Baldwin, será que você vai continuar sendo tapado pelo resto da sua vida? – disse Sorellina. – Você ainda não entendeu que não precisa da Luna?

– Preciso sim. Sem ela, eu não duraria cinco minutos lá fora.

– Não quero que você fique mendigando minha presença para essa aí, Baldwin. – disse minha amiga, ressentida.

– Luna, eu preciso de você.

– Ok. Eu vou, mas somente porque você mesmo disse que não duraria cinco minutos lá fora sem mim. – falou em tom de deboche.

– Que seja! – disse Sorellina – Vamos logo.

Fui andando em direção à saída segurando o diário comigo, quando minha prima disse:

– Deixe isso aqui. É mais seguro. Tenho uma vaga noção do que seja, é muito óbvio.

– Baldwin, não dê ouvidos a ela. Não confio nessa garota. – Luna comentou.

– Eu... – fiquei indeciso, olhando de uma para a outra.

Quem teria a razão? Confiava plenamente em Luna, mas Sorellina parecia ter muito conhecimento sobre o meio-mundo.

– Leve-o então, mas não diga depois, que eu não te avisei. – disse Sorellina.

– Não o levarei. Vou deixar o diário aqui, parece bem seguro. – por fim, decidira confiar em minha prima.

Apesar de Luna não ter dito nada, o olhar que ela me lançou naquele momento, fez-me sentir todo o ressentimento causado pela minha decisão. Era um olhar raivoso e intenso, daqueles que só os olhos felinos de minha amiga podiam invocar. Deixei o diário em cima de uma mesa localizada abaixo do enorme mapa, e então nos dirigimos todos para a saída.

Sorellina abriu a porta de seu esconderijo. Uma rajada de vento gélido passou por nós. Naquele instante, senti como se toda a minha espinha tivesse sido submersa em nitrogênio líquido. Não era somente o efeito do vento ridiculamente frio, e sim, um agouro.

– Vamos sair logo daqui, o meu medo não está longe, e ele não pode descobrir sobre esse lugar. – disse Sorellina.

– Está bem. – assenti, pois o agourento frio em minha coluna vertebral despertara-me a mesma sensação a qual eu experimentara quando havia acordado na neve: salvar Luna, e até mesmo Sorellina, era essencial, tanto quanto minha própria sobrevivência.

Minha prima começou a correr, Eu e Luna seguíamos em seu encalço. Corríamos sem nenhum cuidado, pois urros raivosos que escutávamos cada vez mais perto indicavam que o metamorfo já estava nos seguindo. Então algo interrompeu nossa fuga. Entendam que em ambientes onde a neve impera, a impressão monocromática que a mesma imprime sobre a realidade o impede de enxergar certas coisas. Quem primeiro viu nosso obstáculo foi Sorellina.

– Parem! – gritou.

– O que foi agora? – perguntou Luna bruscamente. – Quer que aquele monstro nos alcance mais rápido?

– Não... Como você é inútil. Olhe bem para onde estávamos indo. – respondeu Sorellina secamente.

A nossa frente, quase invisível pelo efeito de camuflagem monocromática que a neve proporcionava, encontrava-se um precipício. Mesmo de onde estávamos, olhando com atenção, podíamos ver que o mesmo era altíssimo. Se tivéssemos continuado a avançar, teríamos caído e, com absoluta certeza, morrido.

– Obrigado. – eu disse à Sorellina.

– De nada, Baldwin. – respondeu a garota.

Luna nada disse. Olhei-a e, em sua expressão, vi um conflito. Apesar de minha prima ter salvado sua vida, era doloroso para Luna, admitir que a menina estivesse certa.

A circunstância não dava-nos tempo para que uma discussão fosse travada, um barulho horrendo e gutural, o qual nós já conhecíamos, alertou-nos sobre a iminente aparição do metamorfo. A hora de lutar chegara.

Ele estava transfigurado na forma que misturava meus parentes, mas em vez de possuir a cabeça de minha mãe, a face que o monstro mostrava era a do meu tio.

– Cis Ester! Você se comportou muito mal. Vá direto para o seu quarto. – disse o monstro em meio a gargalhadas. Sua voz era terrivelmente asquerosa, pois não era única e real, e sim, uma mistura criada para causar medo e dor.

– Pare de tentar usar isso contra mim. Já disse que não vai funcionar. – disse Sorellina enquanto seu semblante e seu tom de voz exclamavam exatamente o contrário. –As coisas que o meu pai faz... Você não tem ao menos o direito de usar isso contra mim.

Ver aquela garota em tal estado fez-me acreditar piamente na verdade de nosso parentesco, ela estava sendo sincera, e estivera sendo sincera comigo também, eu sabia disso, e também fez lembrar-me de meu progenitor. Um ser abominável que fizera minha mãe sofrer e que a deixara sozinha na árdua tarefa de cuidar de mim.

– Eu posso usar o que eu quiser contra você, sou um pedaço de sua mente e, por isso, posso manipulá-la da maneira que eu desejar. – disse o metamorfo.

– Reformulando, da forma que eu quiser. Eu mesma te criei, obviamente, com a ajuda de fatores externos que me fizeram ter medo.

– Você me criou, mas não tem o controle sobre mim.

Nesse instante, o monstro começou a crescer. A face do pai de Luna foi sendo substituída por formas que lembravam aglomerados de massa disforme, com vários olhos, bocas, narizes e ouvidos diferentes. O corpo ainda era um amontoado de pessoas, porém, mais membros foram surgindo dele. Por fim, o metamorfo assumira a forma de nada. Vários braços, pernas, faces, troncos diferentes ligavam-se a um centro que não se podia ver com clareza. Então ele disse com uma voz grave e alta que lembrava um trovão.

– Controle-me, Cis Ester! Se for capaz.

– Aqui, me chame de Sorellina!– ela esbravejou antes de partir para cima do monstro: Sem avisar, correu sozinha.

– Espere, Sorellina. Quero ajudar-te! – eu disse.

– Fique aqui, Baldwin. – falou Luna – Eu vou.

– Mas... – começava a dizer, quando um olhar incisivo da garota de olhos felinos encerrou a discussão.

– Droga. Me escute! Eu tenho um plano. – disse ela antes de correr em direção ao metamorfo.

Sorellina não ficou contente ao ver que Luna havia corrido em seu auxílio.

– O que você está fazendo? – disse – Não preciso de sua ajuda.

– Ah é? Acho que o mostrengo ali discorda. – disse Luna.

– Você é fraca, não tem força suficiente para me ajudar. – falou Sorellina – É óbvio que, pela lógica, você consiga ajudar o Baldwin... Você não passa de uma...

– Cala a boca, e para de me insultar. E o que você quis dizer com eu, pela lógica poder ajudar ao Baldwin, mas não a você?

– Você não sabe nada sobre si mesma, não é? Será que não percebe quem você é?

Luna ia dizer algo para revidar, quando um dos braços enormes da criatura metamórfica nocauteou-a. Um soco apenas em seu rosto foi o suficiente para jogá-la a alguns metros de distância e a fazê-la ficar inconsciente.

– Luna! – gritei. – Então esse era o seu grandioso plano? Entrar na luta e ser nocauteada antes mesmo de lutar?! – exclamei.

A criatura, com certeza atingira o ápice de seu poder. Sorellina lutava com destreza, porém conseguia apenas se esquivar de seus golpes. Então, minha prima começou a realizar o mesmo movimento com o braço que mais cedo havia feito para controlar o vento, mas antes que de fato o concretizasse, o metamorfo se transfigurou em uma mulher de cabelos escuros cujo rosto eu não conseguia ver, pois Sorellina se interpunha entre meus olhos e o mesmo. Sorellina parou o movimento, e o vento, que já começara a se rebelar, abruptamente se aquietou. A mulher disse com uma voz que me era vagamente familiar:

– Você nunca vai conseguir realizar seu sonho... – disse – Nunca será como eu. Tenho pena de você.

Sorellina começou a chorar.

– Pare! Por favor! – ela gritava – Pare!

– O seu pai já disse qual é o seu futuro, você não poderá refutar suas palavras. – ao dizer isso, a voz da mulher mesclara-se por instantes à voz do pai de Cis Ester.

– Ele nunca me forçará a isso, essa decisão é somente minha.

Enquanto elas conversavam, eu percebi que algo saía da neve, atrás de Sorellina, eram mãos, algumas seguravam facas e outros instrumentos cortantes, outras, apenas se mexiam ameaçadoramente.

– Sorellina, atrás de você! – gritei ao mesmo tempo em que corria em sua direção.

Ela se virou enquanto o metamorfo deixava de usar a forma da mulher, cujo rosto eu não vira, para voltar ao corpo grotesco de antes. O monstro agarrou minha prima por trás, segurando seus braços, ela lutava, mas não conseguia se desvencilhar do fatal abraço. Uma das mãos que havia brotado da neve segurando uma faca, se lançou em direção a Sorellina. Ela conseguiu se mover um pouco para o lado, de modo que a faca apenas atingiu seu ombro, e não o verdadeiro alvo: O coração de Sorellina.

Outra mão se preparava para esfaquear minha prima, e dessa vez, eu sabia que ela, enfraquecida pela ferida no ombro, a qual sangrava incessantemente, não conseguiria se desviar.

A criatura gargalhou arrebatadoramente, fazendo um eco enorme, ao mesmo tempo em que o vento se agitava.

Precisava fazer algo, se não, Sorellina morreria. Mas eu estava muito longe para alcançar a mão desconexa da criatura e impedi-la a tempo. Então eu pensei no efeito que eu havia causado no meiomundo de Ozzy Helfenstein. Eu ainda não tinha o controle sobre essa realidade como minha prima o possuía, mas conjurara uma guitarra do nada.

Tentei sentir a realidade do mesmo modo como havia feito no salão da Orquestra do Caos, e canalizei toda a minha vontade para os meus pés, pois, de alguma forma, eu sabia o que devia fazer. Nesse instante, a neve explodiu em baixo de mim, e fui lançado no ar em direção à batalha que se desembrenhava. Caí exatamente atrás das mãos que desconexamente brotavam da neve, e segurei-as com força.

– Baldwin, você começou a entender! – disse Sorellina, feliz e impressionada.

Ver-me começar a compreender o meio-mundo lhe deu forças. Ela desvencilhou-se dos braços do monstro, o arremessando, de alguma forma, por sobre si mesma e por sobre mim, de modo que a criatura ficou entre nós e o despenhadeiro.

O metamorfo parecia surpreso. Acredito que ele não esperava tamanho controle sobre o meio-mundo e sobre o medo que estávamos demonstrando ter. Isso não o abalou, pelo contrário, o instigou:

– Então as crianças acham que podem me derrotar usando seus pequenos truques? – disse. – Eles não são nada comparados ao que eu posso fazer.

A última frase soou com uma voz familiar, que me causou um arrepio. Um timbre o qual fazia anos que não escutava, preferia ter continuado assim.

– Isso mesmo, ele está vindo Baldwin. – disse a criatura – Mas não se preocupe, você já estará morto quando ele chegar.

Então, a neve sob nossos pés começou a se mexer, adquirira uma consistência pegajosa e tomava a forma de duas enormes serpentes brancas. Sorellina e eu tentamos correr, mas foi tarde de mais. Uma das serpentes se lançou em minha direção e se enrolou em volta do meu corpo, a outra fez o mesmo com minha prima. Elas se apertavam de modo que, se não conseguíssemos nos soltar, morreríamos sufocados.

O ar havia sido expulso de meus pulmões. Eu já não conseguia respirar e, naquele momento, acreditei que tudo estava perdido.

Eu já tinha coragem, porém, isso não era suficiente. Precisaria de mais força se quisesse sobreviver, mas até a que eu tinha parecia ter sido drenada de mim. Então algo inesperado ocorreu. Vi Luna se levantar de onde estivera até agora desacordada, ela parecia muito bem, como se nada houvesse ocorrido.

Luna começou a correr em direção ao nosso terrível algoz. Ao passar por mim ela disse: “Baldwin, me desculpe, mas essa é a única maneira de te salvar”.

Minha amiga continuou seu caminho para o terrível monstro, ele pareceu surpreso ao vê-la tão cheia de destreza. Sem entender direito o que Luna pretendia, ele não pôde prever o que ocorreu em seguida.

A criatura estava a pouco mais de um metro de distância do penhasco. Luna se lançou para cima do metamorfo. Ambos caíram em direção ao despenhadeiro, desaparecendo naquela imensidão. No exato instante em que isso aconteceu, as serpentes soltaram a mim e a Sorellina.

– Luna! – eu gritei.

– Baldwin, não se desespere, você não entende. Ela...

– Pare de falar que ela não é importante, você nem a conhece direito! – esbravejei.

– Eu a conheço melhor do que você poderia imaginar. Quer dizer, não exatamente a ela... É complicado. Nós temos que voltar para o esconderijo, eu estou com uma sensação ruim e, nesse lugar, elas não são apenas sensações. – disse minha prima com um ar preocupado.

– Não, nós temos que tentar salvar a Luna... – eu revidava, quando um barulho de explosão veio da direção do esconderijo.

– Eu falei que precisávamos voltar! Seu imbecil. – disse Sorellina, então saiu correndo.

Eu corri em seu encalço.


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Notas finais do capítulo

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