GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 5
No centro da tormenta


Notas iniciais do capítulo

Enquanto estiverem lendo esse capítulo, perceberão novas revelações. Espero que gostem. Boa leitura. xD



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Nós ainda não tínhamos atravessado a luz, que resplandecia de forma quase onírica e nos convidava para a sua calmaria. O raro aspecto radiante de Luna roubava minha atenção. Ela não estava suja e cansada mesmo depois de tudo o que havia ocorrido. Seus olhos possuíam um tom amarelado e brilhavam de forma selvagem. Contrariamente a ela, eu estava horrível. Apesar de psicologicamente estar muito feliz, meu corpo não acompanhava tal estado. Ainda conservava em minhas costas as feridas provocadas pelo Homem sem Rosto, assim como a dor em minha costela provavelmente fraturada. Minhas roupas não estavam estraçalhadas ou rasgadas, como se apenas o meu ser tivesse sido agredido. Em meu ombro direito, ainda ardia a ferida provocada por Sofia. Estranhamente, tinha a sensação de que meus sentidos não captavam a dor daqueles ferimentos da maneira como deveriam, pois os sentia de forma mais amena.

– Sentiu saudades de mim, Baldwin? – indagou Luna com ar zombeteiro.

Não caí na brincadeira provocadora e fui absolutamente sincero.

– Você não poderia imaginar o quanto senti sua falta. Eu achei que você...

– Estava assustada com a sua atitude na floresta de Sofia. Sim, eu sei. Quanta estupidez. – ela completou.

Mas se não havia sido o arrebatamento pelo que eu havia feito na floresta que a fizera desaparecer, o que havia acontecido? Ela presenciara o surgimento de um novo assassino capaz de matar a sangue frio graças ao pavor. O possível motivo de ela ter desaparecido latejava em minha mente.

– Luna, por que me abandonou em meio às cinzas? – perguntei.

– Foi você quem me abandonou. – disse ela com um olhar que beirava a tristeza. – Novamente, faltou-lhe coragem suficiente, não é? Você precisa ser mais forte. Isso é para o bem de todos. - uma terceira voz infiltrava-se na fala de Luna e, subitamente, lembrei que eu e ela não estávamos sozinhos. A voz era de Ozzy.

– Não vou nem perguntar quem é você, pois não me interessam os relacionamentos amorosos do Baldwin. – dizia ele à Luna, ainda corajoso além de sua normal bravura. – Será que vocês podem correr logo para cá?

– O quê? Retire agora mesmo o que disse. – ela lançou um olhar ameaçador. Ninguém conseguia sustentar aqueles olhos felinos e isso foi novamente comprovado. Ozzy alterou seu comportamento para um modo mais acanhado e benevolente.

– Ddd-des-culpa. – gaguejou Helfenstein. – Eu não tive a intenção de irritar. Nem imagino como posso ter te ofendido. Mas as portas estão começando a se fechar. Se quiserem passar e se juntar a mim aqui, terão de atravessar agora.

Notei que as portas do auditório realmente começaram a se fechar. As grandes estruturas de madeira antiga se arrastavam numa velocidade gradual. Teríamos de atravessar.

– Luna, acompanhemos Ozzy. Depois te explico quem ele é. – disse.

– Baldwin, eu sei quem ele é. E tenho que te alertar, será necessário outro tipo de coragem lá fora. – disse a garota.

– Como você pode saber disso tudo? – indaguei, pois às vezes sentia que Luna sabia muito, e em outras ocasiões, ela me passava a perspectiva de tamanha desorientação, que me agoniava.

– Não sei – respondeu – Você provavelmente sabe mais que eu, mas não consegue ver e entender. Enfim, vamos atravessar. E rápido. – foi estimulante ouvir de novo aquela voz em seu tom habitual de desafio.

– Não poderia ter sugerido algo mais correto. – respondi.

Nós passamos rapidamente pelas portas do auditório em direção ao meu colega de classe antes de elas estarem completamente fechadas. O que aconteceu então foi deveras confuso. Ao atravessar, imaginei que seria tocado pela luz forte do ambiente e que me situaria na ala hospitalar que eu observara de dentro do auditório, assim como acontecera com Ozzy, porém, a situação se desembrenhou de forma caótica e completamente diferente.

Ao atravessar, eu fui surpreendido por uma escuridão completa e um silêncio perturbador. Nem o som da minha respiração estava presente. Eu não sentia meu corpo e uma matéria negra parecia se unir a mim e metamorfosear-se junto comigo, criando um único indivíduo. Então meu corpo, ou quase isso, começou a se mover rapidamente, contra a minha vontade. Não era possível identificar a direção para a qual eu estava sendo compelido. Teria vomitado, se tivesse estômago. Teria gritado, se tivesse boca. O ambiente se resumia a nada, e eu era parte do nada.

Então, a alguma distância em frente a mim, surgiram pequenas luzes, pontos brilhantes que dançavam. Eu parecia me aproximar delas, pois estavam se tornando maiores. Era possível ver que tinham o formato de olhos. À medida que me aproximava rapidamente da luz, ela parecia se ajustar, como se pretendesse encaixar no nada onde deveria estar a minha face, ou era meu corpo insubstancial que se moldava. Então chegou o momento da colisão, mas ela não ocorreu.

Acordei levantando meu tronco bruscamente. Abri meus olhos e suspirei de forma profunda e longa. Encontrava-me na ala de um hospital, parecida com a que eu visualizara pelas portas do auditório. O simples fato de lembrar-me do auditório, me trouxe a mente tudo o que acontecera lá... “Luna! Ozzy! Onde eles estão?” perguntei mentalmente. Não precisei esperar muito pela resposta. Um movimento ao meu lado, fez-me virar. Ozzy estava em um leito ao lado do meu, e parecia tão desorientado quanto.

– Ei, você tinha atravessado as portas do auditório. Como viemos parar nessas camas? Houve um momento estranho em que meu corpo parecia ter se esvaído. – disse.

– Eu não sei muito bem, estava conversando com você e com... – ele hesitou.

– Luna.

– Isso mesmo. Então vocês atravessaram e a porta se fechou. Fiquei em total escuridão e senti-me em uma espécie de limbo, como se eu não tivesse corpo. Foi uma sensação perturbadora.

– Exatamente. Aconteceu o mesmo comigo. – respondi.

Um barulho e uma movimentação a minha esquerda tiraram minha atenção do diálogo com Ozzy. Virei-me. Luna também acordava. O seu leito se encontrava em frente a uma janela, de modo que ficou contra a luz. Vendo-a coberta de sombra e penumbra, causadas pela luz que incidia contrariamente ao seu corpo e aos meus olhos, causou-me uma sensação de familiaridade. “Um déjà vu”, pensei. Em meu íntimo sabia que não era apenas isso. Uma pessoa com um véu negro a lhe encobrir. Um indivíduo que possuía a capacidade de me confortar. Ver aquela garota em um leito ao lado do meu em um quarto hospitalar causava-me uma sensação incoerente ao local, porém, perfeitamente harmoniosa para com a sua presença.

Fiquei olhando para a imagem indistinta de Luna enquanto era preenchido por um sentimento que ainda hoje não sei descrever. Desculpem-me. Na verdade acho uma estupidez existirem palavras para designarem sentimentos, pois eles não são algo que se possa definir em vocábulos, são o que se sente e o que vale a pena. Fazem-nos viver, ao invés de apenas sobrevivermos.

Baldwin! – a voz de Luna trouxe-me de volta de minhas divagações. – Por um momento achei que tivesse me deixado de novo. Eu estava em lugar escuro e agora estou aqui nesse leito de hospital.

– Eu também estive nesse lugar, assim como Ozzy. E o que você quis dizer quando proferiu “Me deixado novo”? Eu não queria te deixar, mas não conseguia te encontrar em lugar algum. – disse.

– Você me deixou. Não quis me deixar, mas fez isso quando se conformou, perdeu sua coragem. – respondeu Luna.

Uma dúvida me perturbou.

– Como você sabe que eu me conformei? Que eu... – tentei dizer. Mas não consegui, pois Ozzy me interrompeu.

– Gente! Tem alguém vindo pra cá! – ele gritou.

Absortos em nossa conversa, Luna e eu não havíamos notado o som de passos que vinha do corredor adjacente à porta do nosso quarto, que se abriu naquele instante. Por ela entrou uma enfermeira negra, que aparentava ter em torno de 25 anos, com cabelos cacheados e olhos castanhos escuros. Usava roupas brancas, que possuíam detalhes rosa, e usava um crachá de identificação onde estava gravado, em letras negras e bem desenhadas, o nome “Amymarie”.Ao ver-nos acordados a enfermeira se sobressaltou. Seus olhos surpresos demonstravam um misto de alegria e medo, o que era muito estranho. O nervosismo a invadiu, e sem nos dirigir uma palavra, saiu pelo corredor. Ouvi-a gritar:

– Os pacientes do quarto catorze do CTI acordaram!

– Eu não me lembro de ter sido internado! – disse confuso. – Sei que entramos em uma ala hospitalar ao sairmos do auditório, mas não me lembro de, em momento algum, ter ficado inconsciente! Ficamos naquela espécie de limbo apenas por alguns segundos.

– Eu também não me lembro de ter sido internada. – disse Luna.

Esperava que Ozzy dissesse algo parecido, mas isso não foi o que aconteceu. Ele mostrava um rosto bem feliz e surpreso enquanto falava.

– Eu me lembro! Baldwin, antes de o chão se desintegrar e cairmos no auditório, eu ia te dizer que depois do acidente, fomos todos internados no Bierno Atopa. Eu estava consciente antes de ser internado. Recordo-me de algumas coisas indistintas. Definitivamente eu me lembro do trajeto dentro da ambulância, eu e você viemos dentro da mesma. Você estava desacordado. – então a dúvida apareceu no semblante de Ozzy. – Eu não me lembro de você, Luna. Eu não te conheço. Você não estuda com a gente. De onde você a conhece, Baldwin?

– Eu a conheci um pouco antes de enfrentar o Homem sem Rosto. Ela me ajudou... – novamente, fui interrompido.

– O Homem sem Rosto? Mas de que droga você está falando? – perguntou Helfenstein.

– O Homem sem Rosto, uma criatura feita de medo e ódio. Ele colecionava as faces de suas vítimas. Foi antes de entrarmos na floresta de Sofia, onde me perdi de Luna, antes de te encontrar. – disse.

– Acabei de perceber algo estranho: a cidade de arranha-céus, o auditório, a plateia... Tudo deveria fazer parte de um estranho pesadelo, mas se fosse apenas isso, você não deveria saber, já que foi meu pesadelo. Parece que compartilhamos um sonho ruim, será isso possível? – indagou Ozzy, e a pergunta era muitíssimo válida.

– Não sei. – respondi.

Luna, que até então tinha permanecido calada, disse:

– Parece que a enfermeira está voltando, e dessa vez, alguém está vindo com ela.

Apurei a audição e escutei passos no corredor. Amymarie, a enfermeira, parecia estar retornando e definitivamente não estava sozinha. Uma súbita vontade de fugir despertou-se em mim. Não sabia o motivo, mas precisava sair dali. Luna também parecia sentir o mesmo, pois se mantinha inquieta e em estado de alerta. Já Ozzy, esboçava um leve sorriso em seu rosto e sentara-se na cama, como que pronto para ser analisado. Ele percebeu que eu o encarava e virou o rosto. Uma leve risadinha soou pelo ar. Seus olhos não pareciam tristes como antes, mas sim azuis e chamativos. Eram iguais aos olhos brilhantes do limbo.

– Ela chegou. - disse ele.

A tranca da porta começou a girar e era possível enxergar dois indivíduos através do vidro que existia nela. Eles adentraram o quarto hospitalar.

– Vocês acordaram. Que divertido. Isso é muito bom. Bom! – disse um médico calvo e que possuía uma altura mediana. Ele tinha inúmeros anéis. Para ser mais exato, usava um em cada dedo. Tirou-os perto de um balcão e os jogou dentro de uma pia, gerando um toque de metal batendo em porcelana. – Tudo bem. Eis a hora. Quem vai ser o primeiro?

– Eu! Por favor. – disse um Ozzy alegre e estranho. Ele estava mais animado do que o normal. – Acho que eu mereço mais, doutor.

– Está bom. Você será o primeiro. – ele olhou para a enfermeira. – Será que pode me passar a seringa? – perguntou.

– Claro. – respondeu Amymarie. Ela parecia meio nervosa e hesitante, porém, retirou uma agulha de sua bolsa, a qual eu ainda não havia visto. A agulha possuía um tamanho considerável e parecia extremamente afiada. – Aqui está. Tome cuidado para não perfurar qualquer outra coisa.

O tempo transcorreu sem falas e diálogos. O médico de aparência quase suspeita e arrogante aproximou-se de Ozzy e enfiou a agulha em uma veia. Por mais incrível que pareça, o garoto não reagiu. Não gritou, ou esperneou. Manteve-se estranhamente inflexível e feliz. O doutor aplicou o conteúdo da seringa com um único aperto no lugar onde deveria estar a marca de Asclépio. “A marca!”, exclamei mentalmente. Como tinha me esquecido? Observei meu antebraço e reparei que não havia nada escrito e nenhum desenho bizarro. Não fazia ideia se ela tinha desaparecido ou se nunca existira, de fato, pois não havia vestígios de que ela estivera gravada ali.

Virei-me para o lado de Luna. Ela estava distraída enquanto olhava para o cenário lá fora. Parecia duvidar de que isso fosse verdade. Será que isso poderia ser mais um lugar de caos e fúria? O belo sol que irradiava através das copas das árvores verdes parecia negar isso. Agarrei o pulso dela e ignorei quando ela disse:

– Ei, o que está fazendo?

A marca também não estava presente em meu antebraço. “O que raios está acontecendo?”, pensei. Querendo ou não, senti um alívio graças a toda aquela calmaria e falta de seres bizarros que pareciam sempre à espreita para me enfrentar.

Amymarie veio em direção a minha cama. Ela pretendia aplicar o que quer houvesse dentro daquela seringa. Seu rosto sereno tentava me confortar de que tudo estava bem, porém, ela agarrou meu braço com mais força do que eu imaginara. Na primeira vez que ela tentou me perfurar, eu desviei. Na segunda tentativa, eu a empurrei. E na última vez que ela tentou aplicar o medicamento, eu gritei e entrei num estado de cólera. Ralhei para que ela me soltasse e me deixasse em paz. Foi o que fez. O doutor encarou-me com certo espanto e recomendou que a enfermeira tentasse aplicar o medicamento em Luna. Mas quando ela encaminhou-se na direção da garota, eu segurei seu pulso e disse:

– Nem pense em fazer isso. Fique longe da Luna!

Médico e enfermeira reuniram-se num canto da sala e cochicharam num tom quase inaudível. Eles pareciam hesitar em desistir de nos aplicar a injeção. Será que estavam pensando em outra maneira de nos medicar? Claro que aquele hospital parecia inofensivo, mas eu não conseguia agir de forma flexível e mantinha-me desconfiado. Creio que isso era culpa dos acontecimentos anteriores. O médico aproximou-se da pia e recolheu seus anéis. Finalmente, os responsáveis por nós decidiram partir.

– Não seja assim, garoto. – disse o médico. – Não existem motivos para agirem de forma tão agitada e rude. Apenas queremos o melhor para vocês. Amymarie é uma pessoa tão boa. Você deveria se desculpar por sua atitude, no mínimo. Mas não irei insistir. Mais tarde retornaremos... Aproveitem e descansem.

Ficamos um bom tempo sem ter notícia alguma deles e, graças a isso, tivemos um bom período para conversar e entender um pouco do que estava acontecendo. Bom, deveríamos ter feito isso, ao menos. Ozzy ficou ainda mais agitado após a aplicação do medicamento e começou a conversar e gesticular sozinho. Parecia que a parede era uma amiga bem íntima dele, já que ele passara a dialogar com ela enquanto mantinha-se virado contra mim. Idiota. Por que ele havia deixado que lhe aplicassem o remédio? Isso havia sido um belo ato de estupidez que o deixara completamente incomunicável.

Luna parecia levemente adormecida. Observei seu rosto sereno e percebi que, coincidentemente, eu também me sentia calmo. Mas não deveria. Havia tanta coisa a ser discutida. Entretanto, aquela aparência tranquila, o ambiente do hospital e a luz suave que atravessava as persianas, levaram-me a um estado de despreocupação. Até sentia vontade de deitar e dormir, mas isso seria impossível, pois um bipe estridente começou a ressonar em minha mente. “Incrível como não sinto falta de você, barulho insuportável!”, pensei. E realmente havia bastante tempo que esse barulho não me incomodava. Parecia que minha mente travava quando certas sensações ou pensamentos tentavam surgir. Não era a primeira vez que eu observava Luna e tinha certeza de que uma peça faltava na minha impressão sobre aquela garota. A última peça de um gigante quebra-cabeça estava bem ao meu lado, porém, não fazia ideia do formato dela e como se encaixaria. Apenas sabia que ela estava... Ali. Luna abriu os olhos, que pareciam meio acinzentados e menos felinos.

– O que foi? – a garota perguntou. – Alguma coisa errada?

– Não. Não há nada de errado. – disse.

– Então por que está me olhando desse jeito? É raro te ver com uma aparência tão tranquila.

– Tranquilo? Não mesmo. Apenas pareço estar. – sentei-me na cama com as pernas cruzadas. – E sim, estava te observando. Eu quero saber mais sobre você.

– Errado. Quer saber mais sobre você. O problema é que me encara como uma âncora para sua memória fragmentada. Já vou logo avisando que isso não vai funcionar. Baldwin, você já sabe de tudo. E eu já lhe disse isso. – ela finalizou.

– Discordo completamente, ou ao menos creio que nossas ideias divergem nesse ponto. Como sabe que minha memória está assim? – perguntei.

– Apenas sei.

Luna levantou-se da cama e afastou um pouco as persianas. O incrível ambiente que preenchia o terreno externo do hospital revelava-se manchado com uma tonalidade cinza. Uma nuvem de tempestade encobria todas as árvores robustas e escurecia o oceano que dançava entre as pedras. Algo que não havia reparado: estávamos no litoral. A garota devolveu as persianas ao seu estado anterior e voltou para sua cama. Eu não havia reparado outro aspecto de nossa curiosa situação. Não estávamos em trajes comuns de hospitalização, nós usávamos as roupas de sempre. As mesmas não estavam sujas ou suadas. A jaqueta preta de Luna encontrava-se sobre uma cadeira, porém, não aparentava uma gota de chuva ou um vestígio de cinza. Não parecia nova, mas não parecia maltratada por tudo que passáramos. Minha blusa de uniforme estava próximo a jaqueta de Luna e apresentava o mesmo aspecto da mesma.

Novamente, escutei o barulho de passos. Apenas o médico havia retornado, não sabia se a enfermeira havia se chateado ou se tinha sido repreendida pelo seu superior. Contudo, apenas ele estava ali. O velho permanecia com uma aparência ansiosa e antiquada para a ocasião. Segurava alguns papéis em suas mãos, que brilhavam graças à absurda quantidade de anéis.

– Já que vocês não confiam em nós, julgo ser mais apropriado que vocês mesmos se mediquem. – disse ele.

O estranho doutor abriu a porta com um gesto rápido e Amymarie surgiu. Ela empurrou três suportes para soro para dentro do pequeno quarto e posicionou um ao lado da cama de Helfenstein. O garoto deixou que a enfermeira posiciona-se uma agulha em seu antebraço no mesmo lugar onde foi injetado o medicamento da seringa. O lugar onde deveria estar a marca de Asclépio. A enfermeira direcionou os outros dois suportes para mim. Peguei o primeiro e fingi aplicar a agulha em meu braço no mesmo lugar em que Ozzy o fizera. Repeti a encenação em Luna. Graças ao grosso esparadrapo, os responsáveis não tinham como saber se realmente tínhamos feito o processo corretamente.

– Bom, vocês serão levados para a sala de repouso e entretenimento. – disse Amymarie. – Talvez consigam acalmar seus ânimos, Baldwin e Luna.

– Tudo bem. – disse.

Seguimos por um corredor branquíssimo. Nós não conversávamos e isso ajudava a manter um silêncio absoluto. Eu arrastava meus pés durante o caminho, pois apesar da leve melhora, meu corpo se sentia dolorido. Será que alguém estivera cuidando de mim indiretamente? Parecia impossível, porém, meu corpo não podia melhorar sozinho. Não tão rápido. Talvez Luna tivesse cuidado de mim? Ela não parecia ter os dotes medicinais para isso. Quem sabe Ozzy? Improvável. O garoto estava ficando completamente insano. Ele começara a bater palmas sem nenhum motivo aparente, e isso comprovava ainda mais sua falta de razão. O silêncio agora era apenas parcial.

Antes de chegarmos à sala de repouso, reparei em outros quartos e percebi que estavam completamente vazios. As camas estavam perfeitamente arrumadas e pareciam inutilizadas desde sempre. Ninguém mais andava pelos corredores. Estava passando a acreditar que só havia dois funcionários naquele hospital, enfermeira e médico, cuidando de um número quase inexistente de pacientes. Paramos em frente uma porta vaivém e escutamos o último comunicado de Amymarie:

– Aqui estamos. Espero que se divirtam e se recuperem logo. Podem entrar. – disse ela enquanto forçava uma das portas a manter-se aberta.

Entramos na sala e andamos até o centro dela. Olhei em volta e percebi que havia uma estante repleta de livros, três cadeiras perto da janela, algumas poltronas e uma máquina que servia chocolate quente. Isso era o que havia de mais interessante ali, ou pelo menos o que eu considerava ser. A opinião de vocês não importa nesse quesito. O ambiente estava meio escuro graças à tempestade que se formava lá fora. Um enorme tapete branco cobria todo o chão do recinto. Escutei o barulho de um trinco se fechando e me virei. Aquelas estranhas pessoas do hospital não estavam mais lá. O tempo que transcorrera desde a nossa entrada, não parecia suficiente para que eles tivessem trancado a porta e saído, mas ignorei esse fato. Aproveitei a oportunidade e removi os suportes que acompanhavam eu e Luna. A farsa foi um sucesso.

Eu e Luna escolhemos duas poltronas, que se encontravam próximas, para nos sentarmos, porém, apenas eu afundei na confortável almofada. Ela sentou-se na beirada da poltrona e cruzou as mãos em seu colo. Parecia preocupada e frequentemente observava através das portas feitas de vidro, que levavam para uma varanda repleta de samambaias. Encarava as terríveis nuvens que viajavam vagarosamente.

– Isso não está certo. – ela comentou. – Não sente que há algo errado?

– Sim, há algo errado. Mas não são, de forma alguma, aquelas nuvens. É errado eu não saber sobre você, pois não quer me contar absolutamente coisa alguma. E sou errado por não conseguir entender o que diz quando lhe questiono. Por que é tão difícil?

– Você que é difícil, jovem. E não precisa ser tão duro consigo mesmo. – disse ela. Voltara a encarar as nuvens, mas agora com curiosidade. – O que é ser humano?

– Que pergunta repentina. Não possuo o conceito disso, mas tenho a certeza de que eu e você o somos. – respondi.

– Não me sinto humana, Baldwin. Acho que sou parte de um plano maior. Apenas uma representação menor de algo importante. Não possuo lembranças. E tudo que há em minha mente remete a você.

– Você é diferente demais para possuir alguma relação comigo. Mas se o que te faz humana é saber que alguém crê nisso, você tem a mim. Sua presença é importante e sua humanidade me dá coragem. Não sei se defenderia algo vazio. Sou naturalmente covarde, mas sei que tenho pessoas para defender e uma delas é você. E graças a isso, venci alguns difíceis obstáculos. – disse.

– Não sei se concordo com tudo o que disse, mas, obrigada. Frequentemente, penso em um garoto que se sente sozinho. Como se fosse um filme que se repetisse eternamente em minha cabeça. Eu sempre penso em dizer para ele para não se sentir sozinho e que tudo vai dar certo. Poderia dizer que é nostálgico, mas acho que não sinto isso, que não sou capaz.

– Por que tens essa opinião? Como assim não sente? – perguntei.

– É como se... Não pertencesse a mim. Droga. Lá vem você de novo me olhar assim. Sério? O que há de errado com você? – disse ela em tom de brincadeira.

– Não sei direito. Faltam coisas demais na minha cabeça e creio que você está nelas. Não sei se é um desejo meu ou um fato. – falei. - Contudo, sei que seria decepcionante se minha memória retornasse e continuasse faltando algo. Falando em memórias... Onde está o Ozzy?

– Ele está lá trás. Arranjou uma nova amiga: a fantástica máquina de chocolate. – disse ela. Luna levantou-se e partiu em direção as portas de vidro. – Deixarei vocês a sós.

Fui em direção ao meu velho conhecido e notei que ele realmente dialogava com o eletrodoméstico. Estava completamente louco. Aproximei-me dele e toquei o seu ombro para chamar-lhe a atenção. Ela virou-se sobressaltado e derrubou um pouco de chocolate quente no tapete.

– Jesus! Você quer me matar de susto? – disse o garoto. – O que você quer?

– Apenas conversar sobre o que disse anteriormente. O acidente e o fato de termos sido internados... É verdade? – perguntei.

– Depende do ponto de vista. Para falar a verdade, eu não faço ideia do que você está falando. Foi uma batidinha de leve, nada de mais. Pare de perguntar bobagens, Baldwin. Todo mundo gritou e foi bem divertido. Quer um pouco de chocolate quente? - suas falas pareciam ser oriundas de duas personalidades distintas: uma que certamente era o Ozzy e outra que eu não conhecia. Sua conversação alternada era bizarra.

– Você definitivamente enlouqueceu. Responda com sim ou não. Aconteceu um acidente?

– Sim. – respondeu ele rapidamente.

– As pessoas foram internadas?

– Sim. Não. Isso é hilário. Meu Deus, como esse chocolate é bom. – ele disse.

Ele me irritou a ponto de eu agarrar a gola de sua camisa e levantar seu corpo alguns centímetros do chão. Encarei os seus olhos. As íris possuíam cores diferentes: azul e castanho. Será que sua mente ficara dividida igual a de Sofia? Torcia para que não, pois bastavam dois assassinos. Ele esboçou um sorriso e apontou na direção da varanda.

– Acho que ela quer falar com você. – disse Ozzy.

Larguei o garoto e me virei. Luna não conseguia voltar para dentro do cômodo, pois o vento se transformara em terríveis rajadas, que para piorar, eram contrárias ao sentido de abrir da porta. Ela começou a socar o vidro, o que feriu sua mão e deixou leves manchas de sangue na porta translúcida. Parecia desesperada. Corri em sua direção. Parei em frente às portas de vidro e notei que o ambiente lá fora estava terrível: as nuvens tinham se tornado sólidas massas negras que iriam desabar a qualquer momento, relâmpagos cortavam o céu como veias elétricas e as rajadas de vento tentavam arrancar as árvores e tudo o mais. Luna gritava e olhava a cada momento para trás. O pânico estava estampado em seu rosto e logo descobri o motivo. O mar havia recuado muito e isso significava apenas uma coisa: um tsunami estava a caminho. Um tsunami! Havia aprendido isso há algum tempo, durante uma aula de geografia. Finalmente a matéria servira para alguma coisa.

Não consegui destrancar as portas e por isso pedi para que Luna se afastasse um pouco. O vidro se estilhaçou com o meu chute, porém, alguns cacos de vidro rasgaram jeans e pele. Minha calça começou a manchar-se de sangue. Inexistia o tempo para pensar nisso. Luna retornou para dentro do cômodo e fiz uma rápida verificação para ver se ela tinha se ferido. Exceto alguns arranhões em uma das faces e os nós dos dedos ensanguentados, ela estava bem. Agarrei seu pulso e comecei a correr em direção à porta de entrada. Ela realmente estava trancada. Novamente tentei chutar o vidro, mas esse era bem resistente.

Ozzy uivou de alegria. Ele parecia estranhamente tranquilo e deixava o tempo transcorrer sem medo algum. Não indicava que fosse fugir e, por isso, gritei que ele fizesse alguma coisa ou ia morrer. O garoto não pareceu ligar e começou a rir escandalosamente. Tentei forçar ele a se levantar e correr, mas ele se desvencilhou e continuou a tomar seu chocolate quente.

– Vai se ferrar! – gritei. – Não perderei meu tempo com você. Minha vida é mais importante. – disse.

– Acha mesmo? Mesmo?! Então por que está salvando aquela garota. Você mal a conhece!

– Indiferente a isso, ela é muito mais importante do que você. – finalizei.

Indiquei a Luna uma porta alternativa que havia atrás da estante de livros. Coincidentemente, olhei para os títulos. Não era o meu propósito, mas reparei que quase todos pertenciam a um mesmo autor. O nome gravado em todos era “Godwhile”. Irrelevante, então corri, apesar das inúmeras feridas que eu ainda possuía, para o corredor que aquela porta levava.

A escuridão não era completa graças a algumas lâmpadas incandescentes que estavam grudadas no teto. Havia mais uma porta e a atravessamos rapidamente. Entramos numa sala, que se assemelhava a um escritório, e notamos que havia mais livros daquele autor. Luna correu em direção a mais uma porta... Essa levava para o corredor principal. A garota gritou para que eu me apressasse. Um livro em especial, que estava sobre uma mesa centralizada no cômodo, chamou a minha atenção. Parecia uma mistura de álbuns de fotos com um diário. Eu não tive tempo para ler seu conteúdo, mas sabia que ele era importante de alguma forma. O coloquei em baixo do meu braço e voltei para o caos que atormentava o hospital.

Luna literalmente berrava para que eu corresse. Ela ainda mantinha a porta aberta, porém, Ozzy surgiu, no lado de fora da saleta, com um sorriso agora maléfico e puxou a porta enquanto fazia um sinal de adeus. Trancou-nos ali dentro. Droga. Olhei para o cenário lá fora. Fiquei boquiaberto com a parede de água que se aproximava com uma velocidade absurda. Íamos morrer de qualquer jeito, mas não desejava desistir.

– Ajude-me a empurrar isso. – disse Luna. Ela se posicionou em uma das extremidades do armário repleto de livros que estava atrás da mesa. – Vamos! Rápido!

Empurramos a estante na direção da porta e isso forçou o trinco. Ela cedeu. Estávamos livres. Corremos absurdamente rápido naquele corredor branco, que agora estava dominado por pedaços de papel, utensílios médicos que voavam aleatoriamente e pelo estrondo da água que se aproximava ameaçadoramente. Ouvi o barulho de vidro se partindo, um barulho estridente que significava que a onda havia colidido com o hospital. Pânico. No final do corredor, médico e enfermeira se abraçavam. Era o último ato de suas vidas. Não conseguia entender como tinham desistido tão fácil.

Um barulho temível de água corrente invadiu meus sentidos. O líquido chegou ao corredor com uma velocidade absurda. Destruía e carregava tudo que havia pela frente. Instintivamente, agarrei a cintura de Luna e puxei o diário rente ao meu corpo. Eram importantes a ponto de eu querer me sacrificar sem nenhum tipo de hesitação. Sentia uma vontade incoerente de dizer “Olá meu amigo, nos encontramos de novo” para todo o pânico que impregnava tudo e todos. Foi o momento em que eu precisava recomeçar e agradecer ao medo por ter me presenteado com algo para defender. Eu havia mudado de uma forma incrível, mas isso não era suficiente, pois a tormenta líquida nos levou sem piedade. Eu sabia que ia morrer, mas não me enfraqueceria em nenhum instante. A coragem era absoluta dentro de mim.


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Notas finais do capítulo

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