GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 4
A orquestra do caos


Notas iniciais do capítulo

Está pronto! Desculpe por qualquer erro ortográfico. Semana conturbada = menos atenção na hora de corrigir. Enfim, boa leitura.



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Eu continuei fugindo do véu de fumaça que me cercava por todos os lados e limitava os meus sentidos. Uma estranha sensação de distanciamento em relação à Luna apoderava-se de mim de uma forma inexplicável. Não sabia onde ela estava, mas meu ser sentia-se cada vez menos impetuoso, será que isso tinha alguma relação com aquela garota?

Corri sem rumo, tentando fugir das cinzas que penetravam em meu corpo e pareciam queimar minhas vias respiratórias. Aquelas cinzas não continuavam a queimar graças a uma chama infindável, mas sim pelo ódio que nelas permaneceram acumuladas durante anos. Um ódio capaz de transformar tudo em cinzas e obliterar o seu passado. As cartas eram lembranças que não deveriam voltar à tona, mas da mesma forma que o gato Kim fazia, existiam naquela floresta com o único propósito de perturbar Sofia.

O barulho ritmado dos meus passos diminuiu. Eu não suportava mais correr e meu fôlego havia se esgotado há muito. Parei e ajoelhei-me no chão duro. Forcei meus olhos a se abrirem, mas uma crosta de pó e cinzas revestia as minhas pálpebras e grande parte do meu rosto. Usei a minha camisa, que agora possuía um tom indefinível, e tentei limpá-lo. Não surtiu muito efeito, mas pelo menos consegui enxergar alguma coisa. Eu estava ajoelhado na avenida de uma cidade que possuía prédios negros e enormes que preenchiam todo lugar onde eu me encontrava. Não exatamente prédios, mas sim absurdos arranha-céus, que pareciam perfurar um céu tenebroso e trovejante. As nuvens estavam vermelhas, quase rubras. Eu torcia para que gotas negras não caíssem do céu.

Prestei mais atenção ao que estava próximo a mim e notei algumas fachadas bem parecidas com aquelas normalmente encontradas em cidades de jogatina, as quais possuíam inúmeros ambientes utilizados para extorquir dinheiro de pessoas que tentavam a sorte. O azar era algo bem lucrativo nas mãos dos ricos e sem escrúpulos. As cores inebriantes das marquises e dos outdoors e uma música que tocava pelas ruas fizeram-me perder o foco. Mesmo sabendo que na minha velha “Porto das Algas”, nada disso havia, sabia que não tinha saído de minha cidade, algo estranho me trazia esse pensamento. Eu apenas estava em outra versão dela.

Repentinamente, uma preocupação surgiu dentro de mim, pois ninguém caminhava nas calçadas vandalizadas, ou me espreitava de alguma janela, ou dirigia um automóvel. O lugar estava desabitado como uma verdadeira cidade fantasma. Para piorar toda a situação, Luna também não se encontrava ali. O desespero e a solidão me dominaram.

– Luna! Luna! – gritei. - Que droga! Luna, onde você está? Responda!

Ninguém respondeu. Instantaneamente, meu corpo ficou fraco e cambaleei para longe da avenida. Joguei-me perto de um latão de lixo que se encontrava numa calçada imunda e tentei ordenar meus pensamentos para não sucumbir a sentimentos ruins.

“Nós fugimos e, devido à nuvem de cinzas e restos de árvores, acabamos nos separando.”, pensei, porém, isso não soava verdadeiro, pois algo em minha mente dizia que o motivo de nossa separação era algo diferente, quase espiritual. As duas hipóteses batalhavam em minha mente. Sentia-me triste e isso aumentava proporcionalmente ao desenvolver de uma música taciturna e suicida que perturbava a rua. Ela era melancólica para as pessoas comuns e reconfortante para os depressivos, porque há conforto na inexistência. Há conforto na morte.

Notei que alguns alto-falantes espalhados pelas ruas emitiam a canção. Prestei atenção em sua letra.

“O domingo é sombrio

As minhas horas sem sono

Queridas as inúmeras sombras

Com as quais convivo

Pequenas flores brancas

Não te acordarão.”

A melodia era triste e causava um baixo astral, mas sua composição e os arranjos eram perfeitos. Eu me sentia confortável com o ritmo da mesma. “A solidão não é tão ruim”, pensei. Acomodei mais o meu corpo de forma a ficar mais confortável e meus olhos começaram a se fechar. Meu ser começou a aceitar. Enquanto me movia, escutei o barulho de um papel sendo amassado. Vasculhei o meu bolso e encontrei a carta que Kim tinha me entregado. “Essa carta não foi retirada desse bosque, pelo menos não dessas árvores”, dissera o gato antes de também virar cinzas. Havia dito a verdade. Abri-a.

“Eu acredito em você Sofia, mas não tenho certeza se posso te ajudar. Eu sei que você não gosta de falar sobre isso, porém, todos os indícios apontam para o fato de que você matou seus pais. Os seus tios vão te trazer para a seção psiquiátrica do Bierno Atopa, esse é um fato indelével, irreversível.

Pelo menos aqui nós poderemos conversar mais e não precisaremos mais das cartas. Você confia em mim, certo?

Sei que poderá ser um pouco difícil no começo, mas tenho um bom pressentimento sobre você.

Os pesadelos virão, mas você é promissora, talvez consiga passar desse estágio.

Sei que está um pouco confusa, assustada, mas prometo tornar sua estadia em nossa seção de psiquiatria menos entediante.

Com amor,

Dr. I. G.”

Agora tudo fazia sentido. O gato, Sofia e seus pais, o “Dr. I. G”... Todos os detalhes encaixavam-se e completavam uma história bizarra. Sofia matou sua mãe por ódio e seu pai não conseguira fugir do lado assassino de sua filha, mesmo a amando, e acabou sofrendo o mesmo destino de sua esposa. Kim era maltratado por ira, pois Sofia não recebia a atenção que ela entendia ser necessário. A garota vivia num estado de duplicidade eterno, dividida entre a criança que sentia a falta dos pais e aquela que nutria a vontade de ser má, e sua mente criou a história fantasiosa de que seus pais haviam sido sequestrados para proteger a personalidade pura da jovem menina.

Sofia experimentara o próprio veneno ao ser odiada, e isso havia revivido a cena na qual ela tirava a vida de pessoas que amava, mas algo a impedira. Eu a havia matado. Ela podia ser uma assassina, porém, ainda era uma criança... Que agora estava morta. Uma imagem mental invadiu meus sentidos e mostrou-me a cena de uma cama da qual caiam gotas de sangue num piso branquíssimo. A marca em meu antebraço pulsava vivamente e um bipe tangeu minha consciência.

Nunca senti tanto desprezo por alguém. E eu era esse alguém. “O que eu fiz?! Como fui capaz?”. Transformei-me num assassino, que agora estava perdido numa cidade fantasma que cantava a trilha sonora do meu estado decadente. A música continuava a me destruir.

“Não onde o coche negro

Da dor te levou

Os anjos não pensam

Em te devolver jamais

Será que eles ficariam zangados

Se eu me juntasse a ti?

Domingo sombrio.”

– Luna fugiu de mim. Ela tem medo desse Baldwin. – disse com uma voz fraquíssima para ninguém.

– Você crê nisso? – algo respondeu.

– Creio. – respondi automaticamente, sem notar que não havia ninguém para quem responder.

Senti muito medo. Olhei para os lados e não havia um único ser, mas eu possuía a certeza que escutava o barulho de alguém caminhando... E o som vinha de trás. Corri em direção ao meio da avenida. Os passos continuavam. Virei-me, e o contorno de um corpo situava-se a alguns metros de mim. A quantidade absurda de luzes que iluminavam a rua onde eu estava atrapalhou a minha visão. Apenas quando a distância entre eu e o desconhecido diminuiu para alguns passos, pude enxergar quem era: um garoto que parecia ter a minha idade, um corpo fino e cabelos negros desgrenhados. Ele usava roupas escuras, que pareciam sujas, e olhava-me com complacência e certa timidez, ou medo. Eu não estava sozinho, mas a presença do garoto causava-me ainda mais tristeza.

– Quem é você? – perguntei.

– Meu nome é Ozzy Helfenstein. – ele disse.

Esse nome não me era estranho, assim como o semblante daquele garoto.

– Conhecemo-nos de algum lugar, Ozzy? – indaguei.

– Não sei... Pode até ser. Você não me parece estranho... Mas não, definitivamente não te reconheço. – disse, parecendo finalizar essa questão – E qual é o seu nome?

– Chamo-me Baldwin. – respondi, meio desatentamente. Eu ainda olhava em volta a procura de Luna.

– Você parece um pouco preocupado. Posso ajudar em alguma coisa? – fui surpreendido pela pergunta demasiadamente solidária.

– Eu estou procurando a minha amiga Luna, estávamos fugindo de uma enorme nuvem de cinzas quando nos desencontramos. – não revelei as aflições que acometiam o âmago do meu ser. Não fora um simples desencontro que havia separado Luna e eu. Sabia disso, mas doía admitir.

– Sinto muito... – disse de forma triste. Percebi que ele gostaria de poder me animar, mas não se encontrava em condições. Parecia tão triste e aflito quanto eu, na verdade, até mais – Eu ia mesmo te perguntar o que era aquilo.

– Uma longa história, sobre a qual prefiro não falar. – disse. Soei mais bruscamente do que pretendia, um defeito meu. – Desculpe-me, mas seria doloroso falar a respeito disso agora.

Não sei se algum dia em minha vida será fácil falar sobre o que aconteceu na floresta de Sofia, o que contei para vocês não transmite um terço de tudo que vivi lá. Naquele momento, enquanto conversava com Ozzy, todos os fatos ainda estavam frescos em minha memória, e a culpa me atormentava. Eu só havia tentado proteger Luna, mas acabara me transformando em um assassino, e esse meu lado parecia ter assustado a garota, e estava me assustando também.

– Eu acho que te entendo.

– O que está acontecendo nessa cidade? – perguntei – Por que não parece haver ninguém aqui além de nós? E essa música que não para de repetir...

A música de tom depressivo ainda tocava, e notei algo estranho, parecia que toda vez que eu voltava a prestar atenção no que dizia sua letra, ela continuava exatamente da parte onde havia parado:

“Lúgubres são os domingos

Passados nas sombras

Meu coração e eu

Decidimos acabar com tudo.”

– Está havendo alguma espécie de festival de música na cidade, é por isso que pa-pa-parece... – ele gaguejou – Que não há mais ninguém, todos foram para lá.

No momento em que Ozzy tocou no assunto do festival, ele empalideceu. Seus olhos se encheram de terror.

– Alguma coisa te aflige, Ozzy? – perguntei, afinal, ele fora gentil comigo.

– Assim como você, tenho uma longa história. Não quero falar sobre isso. – seu olhar transbordava de tristeza, vergonha e medo.

Então eu reparei em uma marca que se mostrava clara e pulsante no espaço entre o bíceps e o antebraço de Ozzy, era a logomarca do hospital Bierno Atopa.

– Você tem uma marca no seu braço também! – exclamei. – Tem uma no meu, mas ainda não consegui identificar o que é. A sua é a...

– A logomarca do Hospital Bierno Atopa. Sim. Ela apareceu em mim já há algum tempo. O estranho é que não me lembro de quando exatamente. – ele parou por um instante, pensativo – A do seu braço também é.

– Como você pode saber? A minha marca mais parece uma ferida...

– Não parece. Eu consigo a ver muito bem. Olhe por si mesmo.

Olhei para o meu antebraço e vi que a minha marca estava bem mais nítida, ainda pulsava, mas não mais parecia tão inflamada. Eu havia passado por tanta coisa que me esquecera daquilo. Agora eu conseguia vê-la claramente.

Não era um Caduceu. A logomarca do hospital da família Godwhile era uma versão modificada do símbolo de Asclépio, o Deus grego da medicina, mas em vez de se enroscar em torno de um cajado rústico, a serpente formava um espiral em volta de uma seringa. As iniciais do hospital posicionavam-se uma de cada lado da agulha da mesma.

– Você tem alguma ideia do porquê essa marca ter aparecido em nossos braços? – perguntei.

– Não – respondeu o garoto.

Olhei de novo para o símbolo e algo incomum aconteceu: as letras por um pequeno instante, pareceram se mexer, de modo que foi difícil distingui-las, depois se assentaram de novo, paradas. Acreditei, naquele momento, que aquilo havia sido apenas uma impressão causada pelo estranho jogo de luzes projetadas pelas nuvens vermelhas e pelas fachadas dos cassinos.

Ozzy me encarava e esperava alguma reação minha. Ele parecia um garoto tristonho e perdido em relação a algo, do tipo que levava uma pessoa a ajudar outra. A tristeza não deve ser enfrentada sozinha, mas nisso residia o problema: ambos estávamos naquele estado, tornando a ajuda mútua quase impossível. O festival que estava em andamento devia ser bem incrível, algo que fora capaz de levar todas as pessoas da cidade. Senti-me curioso e perguntei:

– Onde está ocorrendo o festival?

– Não lembro o nome do lugar, mas posso te levar até lá. – disse o garoto, ainda mais pálido. – Se você quiser, é claro.

– Por mim tudo bem. – disse.

Andamos pela cidade que brilhava com inúmeras cores que se misturavam com a penumbra dos lugares não iluminados, criando uma atmosfera intangível e peculiar. Algo que me lembrava o posto de gasolina próximo à floresta de Sofia, que havia ficado para trás num outro lugar. Ambos os lugares eram no mínimo diferentes, e se assemelhavam a algo oriundo da imaginação. E eu os achava perfeitos e reconfortantes, porém, dessa vez essa sensação não conseguiu se manifestar em mim.

As lembranças do último ocorrido me levavam a pensar em Luna, e eu me sentia triste, pois sua imagem, e não só sua presença, parecia cada vez mais distante. Quase não conseguia construir mentalmente os detalhes do seu rosto e retomar a sensação de encarar seus olhos felinos. Tudo havia sido jogado num poço sem fim. E cada vez mais eu me tornava apenas uma casca que perambulava sem rumo na companhia de um garoto idem a mim.

Eu encarava as fachadas e tentava identificar algum nome, porém, as letras pareciam se embaralhar e brincar no ar, tornando-se apenas símbolos que não formavam palavras e apenas brincavam de quebra-cabeça, encaixando-se e desencaixando-se em posições aleatórias. Ozzy parecia não conseguir ler também, ele olhava as vitrines e as marquises e suas sobrancelhas se contraíam expressando dúvida. Em certo momento, pareceu que ele ia me perguntar se eu entendia os nomes, mas percebeu que eu também não compreendia as letras e desistiu.

Continuamos a andar naquela avenida vazia. Todos os prédios eram muito altos e entre eles haviam becos empanturrados de lixo. Coincidentemente ou não, chegamos num local em que o som de música pesada tocando se propagava num volume acima do normal, que fazia o vidro da vitrine tremer. Eu pressentia que Ozzy não queria entrar ali, e logo desviei o caminho, seguindo na direção lateral a entrada de um auditório que se localizava num prédio que encerrava a avenida.

Nossos passos pareciam pesados e a música que nascia do lugar pareceu silenciar, ou diminuir até um volume inaudível. Minha visão periférica percebeu algumas pessoas estranhas saindo por uma porta lateral próxima a nós, mas pouco me importei. Eu não ligava para nada, pois havia me tornado um assassino e meu próprio interior tentava me afundar na escuridão. O cúmulo da depressão. Creio. Os indivíduos que notara há alguns instantes, pareciam nos seguir e aproximavam-se cada vez mais. Cutuquei Ozzy e fiz um leve movimento para trás com a cabeça, indicando para que ele olhasse também. Ele pareceu entender, e logo tornou a encarar o chão. O garoto ficava cada vez mais aflito.

A música triste, que dizia que o domingo é sombrio, parecia ter se extinguido da cidade, pois os alto-falantes não a tocavam. O barulho que agora se apresentava incessantemente era o de passos. Inúmeros deles, que vinham logo atrás. Eu estava ficando cansado de ser perseguido ou sentir a sensação de estar sendo. Uma batida ritmada pareceu brotar do meu interior, quase como um tambor. O som tristonho de um violino juntou-se ao rufar do primeiro instrumento. Parei de andar, e olhei para trás. Eu tinha que fazer isso. Espanto! Um grupo de pessoas estava em nosso encalço. Eles portavam instrumentos distintos. Era uma orquestra ambulante que nos perseguia! E o som não vinha do interior do meu ser: ele surgia do tocar dos desconhecidos e penetrava em meus sentimentos. A melodia triste que os músicos tocaram agravou ainda mais meu estado.

Observei mais atentamente, e foquei minha atenção nos rostos dos desconhecidos. Suas faces eram chupadas e elásticas, como se eles tivessem colocado máscaras e as forçado a ficarem esticadas por toda a superfície de seus rostos. Eu jurava que tufos de pelos saiam de lugares descobertos, como abaixo do queixo e próximo às orelhas. “Eles parecem bestas que tentam ser humanas”, pensei. Mais desses seres brotavam das laterais de lojas e becos imundos. Eram ratos que fugiam do esgoto para profanar pessoas com músicas terríveis. Bichos habilidosos que tocavam sem medo, ou ansiedade, e acrescentavam aquela melodia para causar pânico em presas fáceis.

Ozzy cravou os pés aos meus lados e encarou o exército que se formava e nos cercava. O garoto havia assumido um estado de puro medo, mantendo-se imóvel e imparcial a tudo que acontecia. Seus olhos pareciam injetados e vítreos. Ele fechava suas mãos com tanta força a ponto de tornar suas veias protuberantes.

– Eles me seguiram e esperaram eu cair nessa armadilha. O que eu faço? O que eu faço? – Ozzy disse. – Baldwin, o que a gente vai fazer? – duas únicas lágrimas escorreram de seus olhos. – Estou com tanto medo.

– Eu também, Ozzy. Não seria mais fácil nós deixarmos eles nos levarem? A nossa situação não tem como piorar. Talvez seja até melhor se eles nos matarem. – encarei o garoto. – Não acha?

– Não. Eu não quero morrer, por favor. Nós temos que fugir, mas não consigo me mexer. Que droga. Eles irão nos matar aqui e agora! – gritou Ozzy.

– Deixe-os fazerem isso. O que há de tão errado em querer morrer? - eu havia chegado a um ponto de acomodação no qual preferivelmente a acabar com o medo pelas reações causadas pelo próprio, era aceitar a morte, que parecia iminente.

Repentinamente, meu rosto deslocou-se um pouco para a esquerda, sem que eu tivesse a intenção de fazer isso. Uma dor percorreu o lado direito de minha face e perdi um pouco do equilíbrio. Encostei a mão em minha fronte e ela estava quente e dolorida. Olhei para o punho cerrado de Ozzy e entendi que ele havia me socado. Só que ele era tão fraco quanto eu e, por isso, sua mão se feriu tanto quanto o meu rosto.

– Como pode ser tão covarde? Droga! – ele berrou. – Isso está parecendo com o que você fez com o Aaron na quarta série.

– Espere. O que você disse? Como você pode saber sobre o que eu fiz na quarta série? Você não me conhece. – respondi.

– Eu... Lembro? – ele parecia confuso. – Sim, é claro que me lembro de você, Baldwin! Tudo ainda parece meio confuso, mas tenho memórias de uma escola e você está na nela. Nós ouvíamos música juntos e nós conversávamos às vezes. Não consigo entender grande parte das coisas escritas que lembro, pois as letras parecem embaralhadas como sempre.

Eu encarava Ozzy estupefato e confuso. Imagens dele e eu fazendo algumas coisas juntos surgiam em minha cabeça e sumiam quando um bipe agudo disparava em minha cabeça. Forcei minha mente a trabalhar, o que gerava não só o tal barulho irritante, como também causava um dor lancinante a cada vez que uma memória surgia. Lembrei-me de nós tomando sorvete e do dia em que escutamos heavy metal no volume máximo em meu quarto, e também dele jogando bolinhas de papel em mim durante a aula. Tudo voltava a minha mente em meio a dores excruciantes. Gritei de dor e arranhei o chão. Ozzy se abaixou e colocou a mão em meus ombros. Ele tentava me levantar enquanto eu apertava minha cabeça com as mãos, esperando que isso ajudasse em alguma coisa.

A orquestra estava bem mais próxima de nós e a melodia era insuportavelmente alta. Em meio à baderna dos sons, eu disse:

– Eu também me recordo de você, Ozzy. Apenas alguns flashes, mas eu lembro! – questionamentos começaram a invadir meu raciocínio, os quais estavam relacionados às memórias que ressurgiam. - Você estava no ônibus quando o carro bateu nele, certo? O que aconteceu depois?

– Eu sei o que aconteceu. Depois do acidente, tudo ocorreu muito rápido e de um modo muito confuso. Agora, todos nós estamos...

Sua frase foi interrompida quando os monstros a nossa volta começaram a gritar e a uivar enquanto tocavam. Um bipe altíssimo berrou e minha mente. Tão alto a ponto de eu desabar no chão e perder os sentidos. Ozzy tentava me levantar e falava coisas que eu não conseguia entender. Os músicos, ou quase isso, nos agarraram e mantiveram-nos grudados no chão, que começou a desintegrar e a afundar. Todos começaram a cair dentro de um poço sombrio que se formara. Era a perfeita representação do que eu sentia. Nós despencamos para o buraco escuro numa velocidade absurda. Um grand finale temível nos aguardava.

Após alguns segundos em queda livre, meus sentidos retornaram e pude ouvir os uivos dos que também caíram e notei o rosto de Ozzy, que era a fiel representação do horror. Olhei para baixo e senti o vento cortando o meu rosto. Luzes invadiram os meus olhos. Abri os braços e pensei: “Então isso é o fim”. A iluminação não era um evento espiritual, mas sim algo artificial gerado por holofotes, daqueles comuns em shows de música e teatros. Nossa velocidade pareceu diminuir no momento em que nos aproximávamos de um palco. Apenas Ozzy e eu batemos com um baque surdo na madeira, pois o resto dos que também caíram haviam desaparecido. Levantamo-nos e a única luz acesa era a do palco. A plateia permaneceu na penumbra até o momento em que das laterais do palco surgiram os músicos que constituíram uma banda a qual se formou num tablado situado próximo a nós. Eles não falavam e esperavam o momento de começar a tocar. Em frente a nós havia uma partitura com a letra da música que deveríamos interpretar, Ozzy e eu, porém, não conseguíamos entender palavra alguma.

– Ozzy! Você é disléxico! – as imagens relacionadas a ele começavam a ficar mais claras em minha mente. – Mas eu não entendo por que eu também não estou conseguindo ler. Nunca tive dislexia, pelo que me lembro.

– Você está certo, Baldwin – disse com o tom mais taciturno que eu já havia ouvido. Meu coração se contorceu e doeu de pena, fazendo-me esquecer, por um instante, dos meus próprios medos e revezes. – Eu sempre tive esse problema... Você nunca vai entender... Ou talvez entenda agora... Eu sempre sonhei em ser um músico famoso, mas por causa da minha dislexia desenvolvi outros problemas psicológicos. Eu não consigo me apresentar em público! – ele gritou. – Eu nunca vou realizar meu sonho!

Eu começava a entender mais sobre esse “meio mundo” em que nos inseríamos. Eu estava naquele lugar porque aquele era o medo do Ozzy, o seu pior pesadelo, enfrentar uma plateia ensandecida. Estava disléxico porque Ozzy era disléxico. De alguma forma estávamos conectados. Então pensei: “Se pedaços da personalidade dele podem se projetar em mim, o inverso também pode ocorrer. Eu preciso de coragem.”.

Ozzy, você é um músico incrível. – eu não mentia, sabia disso de alguma forma. Vislumbres de um menino tímido cantando e tocando uma música de heavy metal, e se libertando de suas prisões psicológicas durante a música me vieram à cabeça. – Precisa se entregar a esse momento. Precisa ter coragem.

Mas minhas palavras soavam vazias, pois eu estava tão apavorado quanto ele. A presença de Luna ainda estava distante. A plateia gritava e jogava frutas no palco, e outros objetos também.

Uma lança improvisada de madeira ensanguentada caiu ao meu lado... Virei meu rosto, não precisava ver aquilo, porém, acabei encarando as faces dos terríveis humanos que estavam na plateia. Sim, eles eram humanos! Estavam representados da maneira como o meu velho conhecido os encarava. Para Ozzy, os humanos eram seres vis e odiosos que tentavam o humilhar. Percebi que a culpa ainda corroía o meu ser de forma horrenda, mas o único modo de acabar com tudo aquilo era ajudando Ozzy.

–Ei! – eu gritei. Ele estava apavorado e olhava para a plateia como se estivesse tendo um ataque cardíaco, paralisado – Você precisa cantar.

– Baldwin, eu... Eu não consigo.

– Ozzy, a única forma de acabar com isso é enfrentando seu medo. – disse, implorando ao meu âmago por um pouco da coragem, a qual havia experimentado na floresta, quando salvei Luna e matei Sofia.

Nesse instante, por um milésimo de segundo, tive a impressão de ter visto alguém com cabelos castanhos na altura dos ombros em meio ao horrendo público e, então, uma tímida centelha de bravura se acendeu dentro de mim. Foi o suficiente.

Percebi que o público enfurecido começava a subir no palco. Sabia que tínhamos pouco tempo. Olhei para a partitura e, de repente, eu a entendia, não só às letras, mas também os símbolos musicais, que nunca havia estudado em minha vida. Uma guitarra surgira em meus braços e eu sabia exatamente o que fazer.

Fiz estrondear pelo ambiente um acorde agudíssimo. O som fez com que várias das criaturas espectadoras caíssem como se tivessem sido empurradas pela onda sonora.

– Como você fez isso, Baldwin? – perguntou um Ozzy estupefato. – De que inferno veio essa guitarra? Você nunca soube tocar.

– Não sei! Não sei! – respondi – E sim, nunca soube tocar. Eu só consigo tocar porque você pode, Ozzy. Você não ainda não entende?

Tudo parecia muito claro para mim então. Essa ligação entre Ozzy e eu tinha mão dupla, eu estava tentando projetar minha coragem momentânea e subitânea nele. Parecia estar dando certo.

– Mas e a minha dislexia? – os monstros se aproximavam mais, precisávamos agir – Eu não consigo ler essa partitura!

– Olhe para ela, eu garanto que você consegue. Quer apostar?

Então, Ozzy Helfenstein olhou para a partitura a nossa frente e seus olhos se iluminaram de surpresa, pois ele conseguia ler. Instantaneamente, uma guitarra negra como a noite surgiu em seus braços.

– Vamos colocar esse lugar abaixo, literalmente? – disse Ozzy.

– Com toda a certeza inerente a esse exímio momento. – assenti.

– Você e seu vocabulário... Talvez seja por isso que você não tem amigos.

– Não me lembro de sua popularidade esbanjada.

Rimos, e começamos a tocar. Eu ouvia a banda tocando aquela música de melodia triste que eu havia escutado mais cedo, mas Ozzy e eu nos embalávamos em outro ritmo. O destino era tudo o que tínhamos e o que nos espreitava a frente era o motivo de toda a confusão. Nós não poderíamos falhar e começar tudo de novo. Eu sentia que alguém da plateia fitava meus olhos e dizia que eu estava errado. O vazio pareceu preencher-se e o que estávamos fazendo mostrava como a união de dois renegados era indestrutível. Eu não era o único, pois nós estávamos marcados “com Asclépio” e lutávamos contra o mesmo mal.

As criaturas se desfaziam em chamas ao som das guitarras distorcidas. O ambiente regozijava ao som do heavy metal e tudo tremia. A batida de um baixo vinha de lugar algum... E Ozzy cantava. Que belíssima voz. Ele tirava de suas pregas vocais, desde sons guturais, rasgados, até notas doces e agudas. As criaturas sucumbiram todas, ardendo em labaredas incandescentes, mas continuamos tocando em frenesi até o final da partitura.

Ao som da última e aguda nota das guitarras, as grandes portas do auditório se abriram. A claridade passava fortemente entre elas. Os nossos olhos, que ainda estavam sensíveis, em função da escuridão de um pouco antes, não conseguiam distinguir o que havia lá fora.

– Baldwin, me sinto invadido por uma coragem como eu não sentia tem muito tempo. Obrigado.

– Não há de que. – Respondi.

– Outra: acho que temos de seguir em direção àquela porta, pois sinto que algumas perguntas serão respondidas para além desse auditório. Talvez possamos descobrir o porquê de tudo isso, dessa marca em nossos braços... E então, vamos?

Você nem sempre sabe onde está, e para onde quer ir, até você saber que não vai fugir. Eu não iria abandonar aquele desafio. Naquele momento, quase pude ouvir a voz de Luna em seu habitual tom desafiador.

– Vamos passar por essa porta, Ozzy.

Caminhamos no tapete vermelho que dividia o auditório em dois conjuntos de assentos, em direção à saída, os quais estavam dominados por indivíduos queimados. Alguns ainda se contorciam e gritavam, mas nada inferia na nossa atmosfera. Nosso andar era protegido por uma redoma de êxtase e confiança. A Orquestra do Caos havia sido destruída! Além, podíamos ver uma sala que lembrava muito uma ala hospitalar. Ozzy já atravessara as portas e mergulhara na claridade. Ele olhava para trás, me esperando. Eu estava no meio do caminho quando senti uma mão em meu ombro.

– Baldwin! - uma voz familiar exclamou.

Não sei o que senti naquele momento, mas olhei para trás e a vi. Olhos felinos me encaravam.

– Luna... – disse com um tom alegre. Entendi que aquele sentimento era felicidade. Mesmo no meio de todo aquele caos? Sim. Após muito tempo, sentia-me feliz.


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Notas finais do capítulo

Os trechos taciturnos que tocavam no começo de mais essa aventura de Baldwin, pertencem a música "Gloomy Sunday" de Rezso Seress, na versão de Billie Holiday. Não se esqueçam de comentar :)



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