GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 3
A abandonada


Notas iniciais do capítulo

O capítulo ficou enorme e, por isso, deve ter mais erros que o normal.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/430415/chapter/3

A rua ainda nos espreitava de forma ameaçadora e sua densa escuridão parecia nos desafiar. Luna e eu decidimos continuar nosso caminho. Apesar de não haver luz ambiente expressiva, não saberia dizer se era noite ou dia, esses nomes eram inúteis naquele mundo. As convenções humanas pareciam desintegrar-se às vontades daquela atmosfera monstruosa.

Não havia sinal algum de que há poucos minutos ocorrera uma chuva torrencial. Nada restava do líquido negro, além de memórias, que apesar de serem recentes, se tornavam vagas, indistintas em minha mente, como um sonho que se esvai após o amanhecer, mas a rua ainda estava ali. As vitrines das lojas, que eram reconhecíveis, mas ao mesmo tempo não me despertavam conforto estavam quebradas. Os muros das casas, de arquitetura simples, estavam pichados, não prestei muita atenção no que as pichações diziam. A cidade era como uma pintura macabra cuja intenção era sintetizar meus medos. Ainda não me sentia pertencente a esse mundo inóspito e nunca seria, mas após ter enfrentado o medo, percebi que sentia tudo de forma diferente. Não sei explicar. Tudo se tornara mais ameaçador.

Luna andava um pouco a minha frente. Percebi que ela ainda mantinha o seu andar confiante e dei-me conta de que aquela realidade não a afetava como a mim. O simples fato de olhá-la, de alguma forma, despertava em mim o sentimento de ímpeto ou coragem que me acometera minutos antes daquele momento. Sua aura emanava desafio... Era contagiante, mas a impressão que o ambiente ao meu redor impregnava em todos os meus cinco sentidos me aterrorizava, e atenuava os efeitos entorpecentes da presença de Luna.

Havia algo a mais com o que me preocupar. Uma marca aparecera no meu antebraço logo após a batalha com o Homem sem Rosto, no momento em que surgira, havia a reconhecido como sendo um caduceu, mas não conseguia distingui-la ao certo. A estranha marca pulsava de forma preocupante, espalhando ao seu redor uma dor aguda e intensa. Feridas a envolviam, como se a mesma fosse uma tatuagem inflamada. Eu não sabia o que aquilo era... Nem mesmo Luna. Eu nem ao menos tinha a convicção de que almejava descobrir.

Divagava enquanto me locomovia, de modo que, quando Luna parou subitamente, quase esbarrei nela.

– Baldwin, preste atenção enquanto anda. – Disse secamente – Olhe em volta.

Então, por algum motivo, obedeci. O ambiente parecia totalmente diferente agora. Era uma espécie de transição entre Porto das Algas do Homem sem Rosto e... O que? Eu não tinha a mínima ideia. A cidade ainda parecia inóspita, mas as vitrines não mais se encontravam quebradas, e havia várias árvores entre as construções de alvenaria, que conservavam as paredes pichadas. Procurei por Luna. Ela havia saído do meu campo de visão, vi então que ela me esperava em uma estrada à minha esquerda.

O caminho parecia levar para um posto de gasolina abandonado, que ficava próximo de uma floresta. As árvores vistas de longe pareciam repletas de flores brancas. Havia no rosto de Luna a mesma expressão desafiadora que me encorajara a subir as escadas em direção ao quarto da minha mãe há algumas horas, ou teriam sido dias? Minutos? Não sabia ao certo. A obstinação inflou-se em meu ser.

– Vem comigo, jovem. – ela disse.

– Luna, o que é aquele lugar? – perguntei.

Ela se virou e prosseguiu. Segui-a. À medida que andávamos pela estrada, as casas, lojas e pequenos edifícios iam se tornando mais escassos, o contrário acontecia com as árvores, que se tornavam mais numerosas. Percebi que as que se encontravam mais próximas ao posto e à floresta, apresentavam uma quantidade absurda de flores, pelo menos foi o que presumi. Estava enganado.

Paramos em frente ao posto de gasolina e observamos a placa que se encontrava acima da marquise. O nome que deveria estar inscrito ali estava num estado de transição, pois algumas letras novas mesclavam-se com a ferrugem e descolorações que a completavam. Não conseguimos decifrá-las. Olhamos curiosos através das janelas e notamos que o interior do comércio estava num estado mais aceitável do que a minha casa. Ao lembrar-me dela, uma angústia assomou-se dentro de mim, como algo que fica preso na garganta e nos sufoca. Precisávamos descansar e, por isso, decidimos averiguar o local. Entramos.

A porta frontal rangeu com um ruído lamurioso, como se o fato de a locomovermos a incomodasse. Havia poeira sobre tudo que se encontrava ali e a iluminação era precária. Um feixe de luz invadia através de uma das janelas e, dessa forma, era possível ver partículas de sujeira suspensas no ar. Criou-se um ambiente peculiar, um local que mais parecia a fusão da velhice de bibliotecas antigas a uma casa de veraneio. Um chiado baixo e incessante concedia um aspecto enigmático. Parecia um lugar interessante para se passar uma noite. Fizemos uma pequena limpeza num canto, arrastamos moveis quebrados para a outra extremidade do cômodo e reunimos documentos que estavam espalhados perto de uma das janelas para forrar o chão. Criamos um espaço arejado e que não nos sujaria, e completamente útil para se passar uma noite.

Sentamo-nos e ficamos um longo tempo em completo silêncio, exceto pelo chiado. Luna estava relativamente perto de mim e encolhia-se em sua jaqueta. Não havia notado, mas começava a esfriar. Olhei para ela e percebi que a exaustão a dominava. Ela não participara da luta com o Homem sem Rosto, mas seu estado era comparável ao meu. O isqueiro de aparência rude estava no chão ao seu lado e, por isso, o peguei para analisar. A frase “Acenda a verdade” realmente estava inscrito nele. Tentei acender sua chama mais uma vez, porém, não funcionou. Indaguei:

– Acho que isso quebrou. Será que a culpa é da chuva? – A frase soou como uma forma de quebrar o gelo, mesmo não sendo essa minha intenção. – Aquilo foi incrível. O fogo literalmente dançou e matou aquele monstro. Obrigado por ter jogado isso para mim. Eu teria morrido se não fosse você. Aliás, foi um belo arremesso. – Deixei escapar um sorriso meio amarelado. O que estava dando errado? – Você está muito quieta.

– Você não vai se calar? – disse ela.

– Oh, desculpe-me. – Mantive o silêncio, pois não entendia o que estava acontecendo naquele momento.

– Por que se desculpa? Você não fez nada de errado. Só quero pensar um pouco. Aproveite e tente descansar. – ela encostou a cabeça num dos móveis que estava perto e fechou os olhos.

– Isso é seu. – inclinei-me na direção de Luna e pus o isqueiro em seu colo.

– Não é. Pode ficar. – ela me encarou com ar sério. – Você realmente não sabe o que está acontecendo, Baldwin? Você já deveria ter entendido o mínimo do que está ocorrendo lá fora.

– Não sei. – respondi. – Pode parecer uma atitude covarde, mas creio que se eu soubesse de algo ficaria com mais medo. Então acho melhor me manter alienado, pois é menos doloroso. O isqueiro também não é meu, você o tinha antes, então fique com ele. – acrescentei.

– Isso não combina nem um pouco você. – ela riu enquanto guardava o objeto que eu usara para vencer o Homem sem Rosto – Não pelo fato de ser medroso, porque você ainda é. O que acho estranho é sua alienação, já que por tantos anos tentou fugir desse tipo de coisa. É como se você jogasse o projeto de uma vida inteira no lixo.

– Você ainda não me conhece. – disse.

– Te conheço muito bem, e essa é uma das raras coisas de que tenho certeza. Não sei de onde surgi, nem quem eu sou, apenas sei meu nome. Não é estranho eu saber mais sobre você do que de mim? Isso até soa ridículo.

– Agora você tem certeza de duas coisas.

Ela não respondeu. Aquela era uma garota demasiadamente misteriosa e minha percepção dizia que ela sabia muito sobre coisas que não se podia falar. Talvez ela não conseguisse escolher as palavras certas para contar-me seus segredos. Tentei dormir, mas minha mente não parava de trabalhar desde o incidente como o Homem sem Rosto. Só que esse não era o principal motivo. Aquele chiado não havia parado! Estava quase acreditando que esse som perturbava apenas minha mente, até que Luna disse:

– Está ouvindo esse som? Que coisa mais chata. Parece que alguma coisa está ligada. – ela se levantou e começou a tirar papéis de cima das mesas e a desembalar objetos. Vasculhava o ambiente num ritmo extremamente rápido, pois sua paciência já se esgotara há muito. – Achei.

Uma TV antiga, daquelas que possuíam tubos catódicos, estava sem sinal e pontos pretos e brancos choviam rapidamente em sua tela. Luna colocou-a em cima de uma mesa, mexeu em todos os botões e até desconectou-a da tomada. Nada aconteceu.

– Droga de televisão estúpida. Você sabe consertar isso? Não conseguirei dormir com esse barulho. - disse ela dando um soco leve na lateral do eletrônico.

– Não sou técnico coisa alguma, mas tentarei dar um jeito. – Aproximei-me da televisão e encostei um único dedo em sua tela, que piscou uma... Duas vezes. Fiquei pasmo, pois Barbara Salvatore apareceu.

A imagem era ruim, mas era possível enxergar um microfone em suas mãos. Seus cabelos estavam loiros, ao invés de negros, e seus olhos agora estavam negros. Ela parecia entrevistar alguém que tinha bandagens cobrindo todo o seu corpo, exceto a parte que já estava escondida atrás de um jaleco e fazia um ciclo de perguntas que começava com a frase “Estão todos mortos?” e finalizava com “Então porque haviam corpos dilacerados naquele lugar? Lukas ficou extremamente triste com o que fizeram com ele.”, sendo que ele respondia “Não, não, não!” e ria. O ciclo se repetiu umas três vezes, e quando a quarta vez já ia começar a imagem na tela foi se reduzindo até desaparecer totalmente. Notei que a televisão finalmente tinha quebrado, pois uma nuvem de fumaça pairava sobre tal. Luna voltou para o seu canto.

– Ia te perguntar se você faz ideia do significado disso. Acha uma boa ideia? – ela perguntou.

– Sim, claro. – respondi. – Ela é uma repórter de um jornal matinal.

– Não conheço. – disse Luna.

O cabelo loiro e os olhos negros me lembraram de outra pessoa. A imagem de dedos digitando num celular e o uivar de um pneu deslizando flutuou em minha mente, mas foi rápido demais. Não era a primeira vez que isso acontecia. É como se minha mente emitisse um alerta a certas informações.

– Ela me lembrou de uma garota que vi hoje. Minha mãe pareceu bem afável na presença dela, como se ela fosse uma conhecida. Talvez uma prima, ou coisa do gênero. Só sei isso. Você deve se lembrar, já que estava transfigurada em minha mãe. – conclui.

– Nunca fui sua mãe, Baldwin. Eu estava num lugar escuro e depois andava a sua frente. Essa é a última coisa que encontro em minha memória. Creio que o Homem sem Rosto tinha razão. Você não precisa dela, pois sou eu quem você quer. Minha mente está repleta de coisas sobre você e apostaria dizer que sei mais sobre você do que sua própria mãe. – Os olhos da Luna tornaram a ficar amarelados e desafiadores.

– Acho que você está falando bobagem. Quem em sã consciência trocaria a mãe que tanto ama por uma desconhecida. Você... – repentinamente parei de falar, pois um tic reverberou através do velho aposento. Isso chamou minha atenção para a janela. Havia um gato ali. Ele olhava para mim e fugiu quando dei dois passos em sua direção. – Um gato? Foi só minha impressão o fato de ele estar nos espionando?

– Não. Conheço gatos e tenho certeza que ele estava atento em alguma coisa. – Luna se levantou e abriu a porta. – Quer me ajudar a procurá-lo?

– Ótimo. Não existe nada melhor do ir que atrás de um bicho esquisito numa cidade não tão diferente. Enfim, vamos.

Eu estava ao lado de Luna quando ela abriu a porta. Para nossa surpresa havia um gato sentando na soleira da porta, como se esperasse nossa cordialidade em recebê-lo. Seu pelo era acinzentado, meio rajado. Um de seus olhos, que nos fitavam, possuía uma tonalidade branca, fantasmagórica. Poderia jurar que seu corpo era coberto de cicatrizes, dando a ele o aspecto de um bichano completamente remendado. Abaixei-me para observá-lo melhor e tentei tocar seu pelo, mas ele me arranhou e... Falou.

– Por que raios você quer tocar em mim. Cruzes! Isso é uma grande falta de educação.

– Não estou surpreso com o fato de ele falar. Isso é normal? – perguntei a Luna.

– Se você acredita que é normal... Tudo e todos também acreditarão. Qual o seu nome, gato? Também é falta de educação não se apresentar. – disse a garota. – Vamos, ande logo.

– Tudo bem, meu nome é Kim. – Então ronronou de forma orgulhosa, se notava que ele gostava do seu nome – E você é Luna, e ele é Baldwin, vocês são...

De repente, Kim começou a tossir. Ficava arrastando a pata na própria garganta, como se algo estivesse preso ali, a resposta veio rapidamente. Uma bola de pelos saiu da boca do estranho felino.

– Maldita bola de pelos! – ele praguejou.

E continuou a mexer a boca de forma incomum, recuperando-se do inconveniente episódio. Então Luna perguntou:

– Como você sabe o meu nome?

– Humrmrmrm – O som foi uma mistura de voz humana e ronrono de gato – Gostei da atitude dessa sua amiguinha, Baldwin. Realmente muito corajosa.

Luna se sobressaltara ao ouvir aquele animal chamá-la de amiguinha. Ela agora encarava os olhos de Kim com sua expressão mais mortífera. Foi o encontro de dois pares de olhos felinos.

– Você sabe que não pode encostar um dedo em mim, Luna - disse o gato.

A frase soou estranha. Quando nos conhecemos, Luna parecia saber exatamente o que fazer, como direcionar-me, mas quando havíamos conversado no posto... A sua expressão de dúvida ainda se mostrava nítida em minhas lembranças.

– Luna? – sua expressão rígida se atenuara, mesclava-se a complacência. Ela sabia que Kim estava certo, e de alguma forma, eu também sabia, mas insisti. – Por que ele está dizendo que você não pode tocá-lo?

– Baldwin, eu sei. Você também sabe. – ela disse no mesmo tom enigmático que me irritara durante a nossa primeira conversa.

– Odeio quando se dirige a mim desse jeito. Você fala como se eu soubesse de algo. – a raiva transparecia-se em minha voz – Não tenho o mínimo vislumbre do que está acontecendo. Trata-me como se eu tivesse todas as respostas.

– Ninguém tem todas as respostas e aqui elas nem mesmo importam tanto. As perguntas. Elas sim. Somente a dúvida vai te levar para algum lugar, jovem. – Disse com convicção, desafiando-me.

– Perguntas? – indaguei – Dessas eu tenho em excesso. Quero repostas, agora! – gritei.

Luna não se alterou, mesmo diante do meu surto de ira repentino. Ela manteve firme seu olhar, que parecia ter se livrado de toda exaustão, e disse:

– Que perguntas você tem feito, Baldwin? – seus olhos começavam a me deixar desconfortável, como sempre acontecia quando tentava fitá-los em demasia – Você quer respostas? Primeiro pergunte alguma coisa que você não saiba ainda. Olhe em volta.

Olhei. Percebi que o gato não mais se encontrava entre nós.

– Luna, onde está o gato? – perguntei.

– Lá. – ela apontava para a minha esquerda, em direção à floresta, com árvores cheias de flores brancas com formatos peculiares. Pareciam retangulares.

Exaltei-me ao ver um vulto cinzento, meio rajado, entrar na floresta, cujo interior, ao menos pelo que podia de ali se vislumbrar, era muito escuro. O contraste entre o interior da floresta e o seu exterior, me fez perceber que, em algum momento, sem que eu tivesse notado, a densa escuridão havia se esvaído. Sentia-me, de certa forma, corajoso. Minha curiosidade me desafiava a partir em busca daquele felino. Quem era Kim? Por que ele parecia nos conhecer? Perguntas. Queria respostas para todas elas.

– Você vem? - perguntei à Luna.

Na urgência de não perder o felino de vista, não esperei por sua resposta. Saí correndo impetuosamente. Percebi que Luna vinha comigo. A bravura encheu minhas entranhas, e isso me perturbava. Nunca fora corajoso. Sentir aquele arrebatamento, que se nutria da aura contagiante daquela garota, me assustava. “Que irônico”, pensei.

Ao adentrarmos na floresta, a escuridão caiu sobre nós subitamente, mas foi clareando a partir de onde estávamos, até que se tornou possível enxergar. Imaginei que nossos olhos estavam se acostumando à escuridão.

Após o fim da cegueira momentânea, causada pela escuridão repentina, ter passado, passamos a procurar por Kim. Não havia sinal dele em lugar algum. Então reparei que Luna olhava para cima, primeiramente, imaginei que ela havia achado o gato perambulando pelos galhos altos das árvores, não era isso.

– Baldwin, não são flores... São cartas! – disse-me Luna, com uma expressão atônita.

Direcionei meu olhar para a copa das frondosas árvores, e pude salientar à minha percepção o que o ambiente abstruso, que retribuía o meu olhar insolente, havia despertado em Luna. Várias cartas de papel branco-amarelado se penduravam onde deveria haver flores em árvores comuns. Milhares delas! Meu olhar cintilou de cobiça, queria ter uma daquelas cartas em minhas mãos, conhecer seu conteúdo.

– Luna, precisamos escalar uma dessas árvores, arrancar algumas cartas. Sinto que devemos fazer isso. – comentei.

– Eu sei. – Ela assentiu.

As árvores nessa parte da floresta, onde nos encontrávamos, eram altas e dificilmente conseguiríamos subir em uma delas, mas isso não foi necessário. Uma brisa leve atingiu-nos, depois foi se intensificando, até tornar-se uma ventania tempestuosa, porém, não havia tempestade alguma. Várias cartas começaram a cair, as árvores pareciam ter sido acordadas pelo vento, elas se contorciam. Era nossa oportunidade.

Uma carta caiu em minha mão, uma marca de cera negra, que tinha a forma da pata de um gato, selava a carta.

– Abre logo isso. - disse Luna.

Quebrei então a cera e tirei a carta de dentro do envelope, li em voz alta:

Caríssimos Baldwin e Luna,

Vocês resolveram vir em meu encalço, mesmo depois de perceberem que, evidentemente, não é de meu agrado a vossa presença. Essa floresta é minha, aqui ardem as mentes atordoadas pelo abandono.

Posso me banquetear de suas emoções, no canto mais obscuro e taciturno do seu ser, efêmero, ao passo que eu sou eterno.

Aviso-lhes, não se embrenhem nessa, como vocês devem estar pensando, aventura, uma das vantagens dessa forma felina, são as garras retráteis, as minhas são longas e afiadas.

Com afeto,

Kim

P.S.: Fui educado o suficiente para vocês?

Um arrepio subiu pela minha espinha, a minha bravura anormal, que há pouco parecia inabalável, foi se atenuando, se esvaindo, até que nada restasse. Eu queria fugir dali naquele exato instante. Você provavelmente está se questionando: “Por que um gato gerou tanto pavor em você, Baldwin?”. Respondo que, naquele mundo, e eu já aprendera, a inconstância era a lei absoluta, a única irrevogável. Minha mãe havia, ao simples toque de gotas de chuva negra, se transfigurado em uma pessoa da qual não me lembrava. A chuva negra era parte de um medo sem rosto. Kim, apenas um gato, poderia se tornar, Kim, não apenas isso.

Levantei meus olhos, que até então estavam fixos na macabra advertência, depois de relê-la mentalmente. Luna estava com outra carta na mão.

– Leia isso aqui, Baldwin. – disse Luna.

Vi que o envelope pertencente à carta que ela me entregava naquele instante não era lacrado por cera, e sim por uma pequena área adesiva destacável na extremidade da parte superior do mesmo. O envelope era de um azul exacerbadamente claro, aspirava ao branco, assim também era a carta. Então passei a ler, dessa vez, apenas mentalmente, pois Luna já havia lido.

“Dr. I. G.,

Essa é a primeira carta que eu mando pra você. Não sei o que escrever, tenho vergonha até aqui. Você já sabe que tenho 7 anos, e tenho problemas com meus pais. Não gosto de fazer essa terapia. Eles acham que é mais fácil pedir para outra pessoa fazer o trabalho que eles tinham que fazer: Cuidar de mim.

Não sei o que escrever em final de carta.”

Naquele exato momento, ao terminar de ler a carta, a mesma começou a se transformar em cinzas, assim como todas as outras que tinham caído no momento de ventania.

– O que é isso? – perguntou Luna, que assim como eu, foi arrebatada por esse acontecimento repentino.

– Não sei... Esperava que tu soubesses ao menos essa resposta. O que se passa? – perguntei. – Quando veio em meu auxílio, você parecia ter algum tipo peculiar de sabedoria, a qual eu confiava piamente que iria me guiar...

Ela então me interrompeu.

– Eu nunca te enganei, Baldwin. Você sabe muito, mas não consegue enxergar isso.

A raiva tomou conta de mim. Afinal, o que eu poderia saber? Sentia-me como se estivesse em um navio a deriva em um mar tempestuoso, e mesmo sem saber pilotar, insistiam para que eu guiasse o leme.

– Luna... – Eu não sabia o que dizer. Calei-me.

– Baldwin, eu entendo sua raiva, mas não tenho o que dizer pra você. Está tudo aí. – Ela tocou o indicador na minha testa e disse em um tom que mesclava complacência, seu tom desafiador habitual e talvez algo oscilando entre doçura e pena.

Nós vagamos cada vez mais para o interior daquela floresta repleta de cartas. Algumas delas estavam no chão e eram recentes, enquanto outras já haviam passado da validade e, agora, apenas serviam para forrar o chão com as cinzas de um passado. Pegamos outras cartas e alguma delas eram repetidas, como lembranças que voltam a nossa mente para nos afundar quando estamos no ápice da luz ou no pico da degradação humana. Servem para perturbar nossos sentimentos em qualquer situação. Nós pisamos em cartas como se fossem folhas secas deixadas ao desejo da ventania.

Uma carta bateu em minha cabeça enquanto perambulava com Luna naquela ambiente que, no mínimo, era muito curioso. Eu a peguei.

Cara Sofia,

Para que eu possa resolver os problemas que te afligem em relação aos seus pais, eu preciso saber quais são. Mas você não precisa se sentir pressionada, com o tempo, vamos nos tornar grandes amigos. Você confia segredos aos seus amigos, certo? Você confia a eles momentos, alegrias, suas tristezas. Um amigo sempre está por perto quando a gente precisa.

Eu sempre estarei aqui. Repetindo: não me trate como um médico, eu sou seu amigo.

No final da carta, faça como eu farei agora.

Com amor,

Dr. I. G.”

A carta despertou um sentimento reconfortante: a emoção que surge ao ser ajudado por alguém que você gosta. As palavras do tal doutor despertaram em mim uma cena de meu passado, que parecia muito distante da minha realidade, do verdadeiro Baldwin. Havia uma cama e eu estava deitado nela, acredito. Alguém estava perto de mim e situava-se contra a luz que entrava por uma janela. Sua imagem estava contornada com a sombra e, dessa forma, era impossível ver seu rosto, mas eu sabia que a pessoa sorria. Ela estava dizendo algo que soava como “Você vai melhorar, juro” e segurava uma de minhas mãos. Ambos estávamos deitados em algum lugar atemporal, pois a presença dessa pessoa, mesmo não podendo distinguir quem era, fazia com que eu me sentisse infinito. Totalmente inabalável.

Luna deu um soco leve em meu ombro, me trazendo à tona.

– Você tem que parar de viajar tanto. Olhe. – ela apontou à nossa frente.

Eu olhei curioso, pois uma menina estava ali. Luna e eu andamos cautelosamente em direção à clareira em que a estranha se encontrava no centro... cercada de cartas. Ela usava um vestido branco e possuía uma pele quase tão clara quanto uma nuvem. Seus cabelos eram ruivos e longos. Exalava um ar meio estrangeiro e, definitivamente, não parecia ser do mesmo país que eu. Ela nos fitou com um olhar convidativo e disse com um sotaque bem leve de um lugar qualquer.

– Olá. Eu me chamo Sofia. – ela sorriu e continuou a nos observar.

Nós não respondemos nada. Eu pensei que apenas um de nós ficaria em silêncio, mas foi até cômico, pois ambos agimos sincronizados no ato de não falar nada. Uma carta que estava no chão chamou minha atenção. Peguei-a e chamei Luna para ler junto comigo. Essa dizia:

“Dr. I. G.,

Obrigado por tudo que tem feito por mim, há quatro anos, quando você sugeriu as cartas, amei essa ideia, assim ficou mais fácil começar a me abrir e contar para você tudo que estou sentindo, sei que é importante para o meu tratamento, e a cada carta, ainda hoje, eu acho que estou conseguindo evoluir, me abrir mais.

Meu tio continua dizendo que papai e mamãe foram assassinados por... Você sabe, não gosto de escrever sobre isso. É mentira, eu saberia, mas eu não acredito. Você acredita mesmo em mim, né? Tenho de certeza que eles foram sequestrados.

Por favor, Dr. I. G. me ajude a achar meus pais. Lembra que eu falei que tinha um gato? Ele também sumiu, mas eu nunca gostei dele, mamãe...”

Antes que terminássemos de ler a carta, ela se transformou em cinzas, as quais voaram através de meus dedos. Desapareceu de minhas mãos em questão de segundos. Eu acreditava que as cartas provavelmente pertenciam àquela garota de aspecto estrangeiro, que se chamava Sofia. O conteúdo assemelhava-se a uma conversa entre um psicólogo e sua cliente, só que a conversação era feita através de cartas. Pensei que talvez fosse uma maneira alternativa de terapia. Indaguei:

– Essas cartas são suas?

– Não todas. – ela falou com uma voz macia e infantil. – Há algumas de um amigo também. Um grande amigo.

– O que faz aqui? – perguntou Luna. Ela chegou mais perto. – Está perdida aqui nessa floresta?

– Quantas perguntas! Mas isso é normal. Quando pessoas querem se tornar amigas, vários questionamentos surgem. Não estou certa? – ela riu. Sentia nojo da presença dela.

– Não queremos ser seus amigos. – disse. – Acha mesmo que estamos nessa droga de lugar para fazer amizades e conhecer pessoas? Fizemos uma pergunta e queremos uma resposta. O que você faz aqui? – insisti.

– Meus pais me abandonaram, mas Kim continua rondando por aqui. Ele é ruim e perverso. Não me deixa sair desse lugar. – disse Sofia enquanto se engasgava com o início de uma crise de choro. – Eu só quero procurar papai e mamãe. Estou sozinha!

– Não acreditem nela. – disse uma voz já conhecida. – Ela é mentirosa.

Vasculhei o ambiente. No oposto da clareira estava Kim, o gato remendado. Ele caminhava na nossa direção, mantendo-se afastado de Sofia, e se dirigiu a nós.

– Pelo visto vocês não se assustaram com aquela carta. Mas que droga! Aquilo era um aviso para vocês saírem dessa floresta e nunca mais voltarem. Eu disse que seria perigoso. O que vocês não entenderam? – disse Kim furioso.

– Ficamos muitíssimos interessados nessas cartas. Encontramos essa garota perdida aqui... Você a conhece? – perguntei.

– Claro que conheço. Sou o responsável por mantê-la aqui para todo o sempre, mas está ficando insuportável. Eu sinto tanto ódio dela. Já não consigo controlar.

Ele encarou Sofia e ficou nítido que apenas o fato de olhá-la incendiava seu coração com um espírito assassino. Repentinamente, o corpo do gato começou a manifestar alguns espasmos de raiva e ele atacou Sofia. Pulou em seu rosto e começou a arranhar sua face. A garota gritou e desabou no chão, em meio as cartas. Pequenas partículas cinzas se espalharam pelo ar. Não sei o motivo, mas achei errado o que o gato estava fazendo e corri para ajudá-la. Dei um safanão em Kim, que caiu um pouco longe dali.

– Você está ficando louco?! – gritei. – Ela é apenas uma criança. – Olhei para o seu rosto machucado, que parecia meio sinistro. Leves respingos de sangue pintaram seu vestido.

– Baldwin, eu queria que você entendesse. Sofia é ruim. Ela não merece viver... Então deixe-me fazer isso, por favor!

Sofia começou a gritar num nível ensurdecedor, quase supersônico, e incomodou muito o gato, que pareceu agonizar. Ele correu rapidamente de volta para o conforto das árvores silenciosas. A garota chorava.

– Ele é mal, muito mal. Não entendo por que mamãe gostava dele. – seu rosto encheu-se de dúvida. – Eu não fiz aquilo... Me diz que eu não sou a culpada! – suplicava Sofia enquanto se agarrava as minhas roupas.

– Largue-me. Eu não faço ideia do que está dizendo. Luna, essa garota é maluca! – eu disse.

– É um par perfeito para você. – ela falou com um toque de ironia. – Por que não se afasta dela? Ela não parece ser alguém confiável. Prefiro o gato.

– Vocês não podem me deixar sozinha, pois Kim pode voltar! E acredito que dessa vez ele pode me matar. – seus olhos pareciam compenetrados. – Por favor... – sua voz ia se esvaindo.

– Isso não é problema meu e nem de Luna. – a frase soou mais fria do que eu pensava. – Não é exatamente isso o que eu quero dizer. Acho impossível que ele consiga te matar. Kim é um gato velho e pequeno. Que mal ele pode fazer?

Fizemos silêncio, pois parecia que algo se aproximava. Os nossos sentidos estavam aguçados graças ao som de gravetos se partindo e cartas de uma menina solitária sendo pisoteadas como folhas secas. O vento atravessou a clareira onde estávamos e varreu cinzas para o alto das copas das árvores, criando uma cortina de lembranças que viraram pó, literalmente.

Através de nossas visões periféricas, eu e Luna avistamos Kim, o algoz da floresta das cartas, prostrado num galho baixo. Ele retornara e parecia esboçar um sorriso, o que fazia suas cicatrizes protuberantes se contraírem de um jeito sinistro. Sofia começou a chorar com mais intensidade ao avistar o velho inimigo e suas lágrimas pingavam nas suas cartas favoritas, que a cercavam como uma fortaleza de papel.

– O que esse gato ingrato está fazendo aqui? – disse Sofia.

– Oh, garota. Vou te perseguir para sempre. Sempre te lembrando das coisas que seus pais não proferiram a você. Coisas como “Eu te amo”. Seu pai foi corajoso, pois ao menos tentou amar você. E o que você fez a ele? Diga! – disse Kim furioso.

– Foi culpa deles! Eles me abandonaram na solidão e deixaram-me sozinha. Gostavam mais de você do que de mim. – o choro da menina se tornara insuportável. –Eu queria que você morresse!

Eu observei atônito a tudo que aconteceu. O gato e Sophia Diniz discutiam com absurda intensidade. Eles batalhavam com palavras, se atacando mutuamente com frases carregadas de raiva e ódio. O momento em que os dois se engalfinhariam numa batalha sangrenta parecia próximo e não restavam dúvidas sobre isso. Isso só não aconteceu porque duas pessoas apareceram na clareira. Sangue intensamente rubro pintava suas roupas. Um homem e uma mulher. A garota se calou e observou eles com o rosto estampado de horror e disse:

– Papai! Mamãe! Sabia que não iam me deixar, pois eu amo tanto vocês. Estou tão feliz. – um sorriso preencheu seu rosto, o qual ainda estava úmido devido as lágrimas. – O que aconteceu? Vocês estão bem?! – ela parou por um minuto, mas logo continuou. - Foi o Kim, certo? Sabia que ele era um gato mal. Eu vou matar ele.

A Sra. Diniz era mulher de baixa estatura e possui cabelos negros e curtos. No seu abdômen havia um pequeno ferimento, parecia ter sido perfurado por uma faca. Ela parou perto de Kim, que pulou para o seu colo e ronronou com a cabeça junto ao ombro da mulher. Sr. Diniz era uma fusão de raiva e tristeza, seus cabelos não eram mais brancos e sim rubros, graças ao sangue coagulado que ali grudara. Ele apontou para a filha e disse:

– Fique longe de nós. – Sofia já estava de pé e tentava se aproximar. Suas mãos estavam atrás das costas e parecia segurar alguma coisa. – Não se aproxime! – ela continuava a andar. – Eu disse para não se aproximar.

O Sr. Diniz pegou uma pedra no chão e jogou na sua própria filha. Abriu-se um talho em sua testa de onde escorria sangue. Ela não gritou e nem se enraiveceu. Apenas continuou a encarar seus pais com olhos frios e vidrados. Olhos de um assassino meticuloso e frio.

Eu sentia medo, é claro. Ultimamente se tornara algo comum, como também se tornara a vontade de fugir, mas eu não podia. Segurei a mão de Luna e andamos juntos alguns passos para trás. Ao pararmos de andar sussurrei:

– Fuja em quanto há tempo, algo horrível está para acontecer. – não sabia exatamente o porquê, mas eu queria absurdamente proteger Luna.

– Não, eu tenho que ficar perto de você – disse a garota de olhar felino.

– Eu insisto! Afaste-se! – alterei um pouco a voz.

O olhar que Luna me lançou oscilava entre a indignação e o desdém, parecia dizer: “Faça a porcaria que quiser!”. Ela então se afastou.

Aproximei-me do estranho grupo e esperei pelo momento em que algo ia acontecer, e eu seria necessário. Sofia passou perto de onde eu estava e não se importou comigo. Continuou seu caminho. Quando ela passou por mim, pude o olhar o conteúdo que havia em suas mãos. Ela segurava uma faca de cozinha. E segurava com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos. No âmago de meu ser, surgiu uma vontade absurda de impedi-la. Foi isso que eu fiz. Incompreensível. Segurei a garota por trás, mas ela era incrivelmente forte. Empurrou-me e eu caí no chão. Pensei que ela já se considerava livre de mim. Errado. Ela enfiou a faca no meu ombro, apenas para ter certeza de que eu não a incomodaria.

A dor foi excruciante. O sangue escorria por minhas roupas, encharcando-as. Outra pontada de dor lancinante, Sofia havia retirado a faca. Ela se preparava para atacar de novo, quando algo subitâneo aconteceu. A garota parou abruptamente, com o golpe na metade.

– Não... Eu não fiz aquilo... Eu não queria! Eles me forçaram, eu não consegui me controlar... – falava de forma doentia, assustadora – Eu não sou uma pessoa ruim, eu não sou uma pessoa ruim... EU NÃO SOU UMA PESSOA RUIM! – O grito foi atroador, ribombou por toda a floresta e produziu ecos longínquos.

De repente, Sofia apontou a faca para a própria perna. Cortou-se. O vestido da garota, já salpicado pelo sangue, era de um estado vil. Agora havia um grande corte, e ao seu redor, uma marca disforme de sangue. Olhei em volta, ainda sentia-me atordoado pelo golpe, em algum lugar distante, vislumbrei outra parte de mim se ferindo, lentamente, não saberia explicar essa sensação. Luna se encontrava próxima a mim, pelo seu olhar, percebi que estaria pronta para agir, se fosse necessário, essa prontidão aumentou minha coragem.

A mãe de Sofia, ainda mantinha Kim em seu colo, acariciava-o, alheia aos eventos que se desenrolavam ao redor. O pai da garota, ainda a olhava com uma mescla de raiva e tristeza.

Sofia gritou. Um instante a mais de vogais estonteantemente estrondosas acometeu-nos, a todos.

– Eu não sou... – disse de forma pusilânime. – Vocês todos vão morrer.

Arrebatei-me. Ao ouvir as últimas quatro palavras que se moldaram pelos lábios arranhados de Sofia, um medo, como nunca havia sentido antes, matou a minha última centelha de esperança. Pedi por coragem às forças que regiam aquele universo sem deuses, se é que existiam tais forças.

Com a faca em sua mão, Sofia se lançou contra mim. Fechei os olhos esperando que, naquele último momento de dor, em que a morte parecia intransponível, me sentisse em paz. Nada aconteceu. Quando abri os olhos, vi que Luna se interpusera entre Sofia e eu, e então segurava a mão da garota. Sofia mantinha a faca a poucos centímetros do abdômen de Luna.

– Luna, essa luta é minha. Afaste-se, eu não quero que se machuque. – eu disse sinceramente, do âmago de meu ser dilacerado.

– É aí que você se engana. – percebi que toda a sua exaustão havia se esvaído, se dissolvido em sua esplêndida personalidade. Seus olhos cintilavam de contentamento, coragem... Pura energia.

– Tanto tempo aqui me deu a capacidade de ver certas coisas, sabe disso, Luna? – Disse Sofia – Aposto que vocês dois não sabem pelo que são ligados. – seu olhar brilhava de escárnio e sadismo.

Sofia começou a gargalhar friamente.

– Vocês não sabem! – gritou.

Luna então tomou a faca de suas mãos e a empurrou. Kim pulou do colo de sua dona e se juntou a luta, enquanto eu assistia estupefato. Sentia-me envergonhado, pois via a eles me defenderem, enquanto eu continuava agonizando no chão.

Sofia então correu para as árvores e desapareceu entre as sombras. A faca que estava na mão de Luna se dissolveu em cinzas. Ela e os pais de Sofia vieram em meu auxílio. Estávamos todos de pé.

– Para onde ela se dirigiu? – perguntei.

– Eu não sei, mas... – Luna não conseguiu terminar a frase.

Um som fantasmagórico e ensurdecedor pareceu advir de todos os lados. Do âmago das árvores, das cinzas, das pedras, do chão. Tudo, literalmente, emanava a essência deturbada de Sofia. Ela saiu das árvores que se encontravam às nossas costas, direção totalmente oposta àquela que havia tomado ao entrar no meio da escuridão soturna daquele lugar.

– Doutor, o senhor acredita em mim? – ela dizia. – Eu não sou uma pessoa má! – se atirou em nossa direção.

Luna ia se interpor novamente entre nós. Olhá-la me deu tamanha coragem, era uma sensação mágica: Aquela era definitivamente a mesma Luna que conhecera em minha primeira batalha.

Não tive muito tempo para pensar. Olhei à minha volta, procurando algo com que pudesse ajudar Luna. À minha esquerda, se encontrava um galho partido, que tinha uma ponta extremamente afiada. Não o havia notado até então. Joguei-me em sua direção, o agarrei. Luna não possuía arma alguma em sua defesa, podia não ter o êxito alcançado na última investida da taciturna e solitária garota. Empurrei minha amiga para o lado e impus minha presença entre a menina perturbada e seus pais. Antes que pudesse chegar à proximidade necessária para me atacar, Sofia foi ferida por minha “lança”, diretamente no lado esquerdo de seu peito.

Ao mesmo tempo em que o sangue jorrava através da pele rasgada, uma carta caía de dentro das vestes de Sofia. Luna se materializou ao meu lado, se precipitou em direção à Sofia Diniz, e pegou a carta, enquanto a garota agonizava e fazia estalidos estranhos.

Abri o envelope. A carta que se encontrava ali tinha conteúdo reconhecível.

– Essa é a carta que não terminamos de ler, jovem. – disse Luna – Aquela que se transformou em cinzas.

Assenti. De fato era aquela carta, e dizia:

Dr. I. G.,

Obrigado por tudo que tem feito por mim, há quatro anos, quando você sugeriu as cartas, amei essa ideia, assim ficou mais fácil começar a me abrir e contar para você tudo que estou sentindo, sei que é importante para o meu tratamento, e a cada carta, ainda hoje, eu acho que estou conseguindo evoluir, me abrir mais.

Meu tio continua dizendo que papai e mamãe foram assassinados por... Você sabe, não gosto de escrever sobre isso. É mentira, eu saberia, mas eu não acredito. Você acredita mesmo em mim, né? Tenho certeza de que eles foram sequestrados.

Por favor, Dr. I. G. me ajude a achar meus pais. Lembra que eu falei que tinha um gato? Ele também sumiu, mas eu nunca gostei dele, mamãe gosta mais do gato, o Kim, do que de mim.

Semana passada, a mesma em que meus pais sumiram, eu estava brincando na sala e ele começou a me arranhar, não sei por que, eu não fiz nada com ele. Eu tentei somente me defender Dr. I. G., mas mamãe achou que eu estava maltratando o Kim, ela então me bateu, gritou comigo, tudo por causa daquele gato. Eu me sinto muito sozinha. Amo muito minha mãe e o meu pai também, mas acho que eles não gostam de mim. Agora eles estão desaparecidos, e eu sinto saudades deles, até mesmo das brigas. Quero meus pais de volta Dr. I. G.

Muito obrigado.

Com amor,

Sofia Diniz

– Ela se sentia sozinha e desprezada pelos pais, Baldwin. - disse Luna. Havia uma expressão penosa em seu habitual cenho – Isso não justifica, mas explica toda essa raiva.

– Eu ainda não morri. Ainda me sinto sozinha, abandonada... – Disse Sofia.

Ela agonizava e se encontrava perto do fim. O clima era pesaroso.

– Baldwin, obrigado por nos livrar desse pesadelo, um ciclo vicioso que duraria para sempre. – disse Kim, descendo do colo de sua dona, que estava com uma expressão de alívio, ao passo que seu marido, mesclava-o com uma tristeza profunda. Ele amava sua filha - Para que entenda melhor tudo isso, fique com essa última carta, essa não irá se transformar em cinzas. – Kim me entregou um envelope.

– Obrigado. – disse – Como sabe que essa não se desfará?

– Essa carta não foi retirada desse bosque, pelo menos não dessas árvores.

– Obrigado de novo. - eu disse.

Então ouvi um gemido franzino. Ele vinha de Sofia. Segurei suas mãos, elas tremiam muito, e estavam repletas de cinzas.

– Você sofreu de mais, deixe que essa ira se esvaia e liberte-se desse pesadelo. - eu enunciei, clara, porém tenuemente.

Os olhos da garota então perderam o brilho e ela, literalmente, explodiu em cinzas, me cegando temporariamente, pois me encontrava muito perto. Depois de passado o susto, enxerguei em meio às cinzas, uma imagem de pessoas correndo de um lado para o outro em volta de um leito. Vários bipes espaçados igualmente entre si, ecoaram em minha mente, depois se uniram, formando um único e longo som supersônico.

O que veio a seguir foi um pandemônio. Os pais de Sofia e Kim começaram a desmoronar, transformando-se em cinzas. As árvores ao nosso redor também se deterioravam. O ar estava ficando cinzento. Tudo estava se tornando apenas uma grande nuvem de cinzas suspensas e amontoadas no chão.

– Baldwin! – Gritou Luna. – Temos que sair daqui, ou vamos ser sufocados.

Começamos a correr ininterruptamente, a carta de Kim ainda segura em minha mão. Ela não se transformava como todo o resto, ele disse a verdade. As cinzas não nos deixavam enxergar e o cheiro era insuportável. Minhas vias nasais queimavam. Já não se podia respirar e eu não sabia qual a distância que deveríamos ainda percorrer para sair do meio daquela nuvem mortífera. Não havia como saber para onde íamos... Nem sabia ao certo se Luna me seguia. Estava completamente perdido. Abandonado.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Não deixem de comentar :D



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.