GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 2
O enaltecer do medo


Notas iniciais do capítulo

O capítulo está repleto de ação. Espero que gostem. Boa leitura.



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O mundo era escuro e isso me impedia de dizer onde eu estava, nem ao menos poderia confirmar se aquilo era realmente algum lugar. Tinha a impressão de que minha mente vagava por lugares desconhecidos, escondidos e confusos. Não existiam flashes ou partes de memórias que poderiam ajudar a me situar no tempo e espaço, apenas o silêncio e a solidão. Senti uma pontada de dor e isso era um bom sinal, pois significava que meu corpo tentava se localizar e despertar, mas com isso veio a dor do meu corpo ferido e da minha cabeça, que latejava de forma absurda, cada pontada era um prego sendo martelado no meu lóbulo frontal.

Quando meus olhos conseguiram se abrir com dificuldade, minha visão preencheu-se de uma luz intensa. Tudo doía e ainda não compreendia o que estava acontecendo. Um rosto, deformado pelos meus olhos embaçados, apareceu no meu campo de visão. Pelas roupas repletas de faixas, daquelas que brilham no escuro, e o chapéu incomum que estava plantado em sua cabeça parecia ser um bombeiro. Definitivamente apenas. Ele fazia gestos e tentava falar comigo, de uma forma que mais se assemelhava a uma pantomima do que uma tentativa de contato. Enfim o compreendi.

– Garoto, você pode me ouvir? – ele disse.

– Sim. O seu rosto está estranho. – minha voz soou bem fraca. – E engraçado. – Confesso que estava fora de minhas condições normais. É inadmissível que você acredite que uso comentários do tipo.

– Claro, por que não estaria? Você ainda não recuperou os sentidos. Sua visão está sem foco. É bom saber que não perdeu o senso de humor, isso é importante. – ele levou uma pequena lanterna aos meus olhos. Isso doeu bastante. – Olhe para a luz!

– Ei, isso dói! Tire essa lanterna daqui! – disse com a voz esganiçada. Empurrei-o com meus braços moles e fracos.

– Calma, garoto. Tente ficar de pé.

– Claro. Apenas se afaste um pouco de mim e me deixe em paz. – Consegui, sem grandes complicações, me levantar. Conclui que eu não era totalmente fraco. Olhei para as minhas roupas e notei que elas estavam encharcadas e meus tênis haviam desaparecido. - Ei, você por acaso viu meus tênis? – Eu estava olhando na direção dos meus pés, mas quando levantei a cabeça o bombeiro estranho, o qual não identificara o rosto, havia desaparecido.

Olhei ao redor e percebi que estava a alguns metros abaixo do nível da pista. A grade de contenção estava totalmente destruída, o que significava que o ônibus havia perdido a direção e caído na ribanceira. Não conseguia me lembrar do motivo de termos caído ali, num recinto de mata nativa, onde existia um lago de tamanho considerável. Espanto. Eu olhava boquiaberto para o lago, pois o ônibus estava bem ali! Encontrava-se meio inclinado e uma pequena parcela da traseira do veículo apontava para fora do lago. Na grande descida que levava até onde eu me encontrava, incontáveis árvores haviam sido arrancadas, destruídas e até carregadas devido ao impacto do ônibus com a mata virgem.

O possível acidente deveria ter sido terrível e de maneira incrível eu havia conseguido sobreviver com poucos ferimentos. Meus amigos! Quero dizer... “amigos”. Havia me esquecido deles. Será que estavam bem? Tinham sobrevivido? Vasculhei o ambiente, mas nenhum deles se encontrava ali perto. Ou não sobreviveram ou já haviam partido para suas casas. O que mais poderiam fazer após um acidente? Uma festa ao ar livre para comemorar a vida? Ridículo. Aliás, não fazia ideia de por que me importava com eles. Era apenas um grupo de pessoas comuns, com as quais eu possuía a fraca ligação de sermos apenas conhecidos. Pode parecer rude, mas não havia motivos para eu me preocupar.

No local estavam duas vans, uma pertencente a algum hospital e outra do corpo de bombeiros, três homens que pareciam ser os responsáveis pelos veículos e eu. Andei na direção deles com os meus pés descalços e disse:

– Alô, onde estão os outros? – os três estavam de costas para mim e pareciam me ignorar. – Ei, estou falando com vocês! – Uma dor lancinante atravessou minha cabeça e apoiei-me com uma mão para não desabar novamente no chão. – Droga! Obrigado pela ajuda, inúteis!

– Olha só, ele acordou. – disse um dos bombeiros. Visualizava os três com faces embaçadas, igual ao primeiro com o qual eu conversara. Não sabia se o motivo de os enxergar dessa maneira era culpa da dor que perturbava minha mente ou da exaustão física. Enfim, já que eu estava em tal estado, por que não haviam me socorrido antes? Dúvida. – Já te disse para ficar de pé, garoto. – Ele ainda insistia no termo garoto, mas não parecia ser o primeiro bombeiro que havia me atendido. Como gostaria de saber suas aparências!

– Você acha que quero ficar no chão? Crê mesmo que sou tão idiota? – Eu respondi enquanto tentava me levantar. – Aliás, obrigado pela grandíssima ajuda. Sem você eu ainda estaria todo esticado e inconsciente ali perto do lago, certo?

– Não precisa ser tão irônico, Baldwin. Você sabia que isso prejudica a sua saúde? E também a minha. Na verdade, a de todo mundo. – Sua voz se tornou incombinável com seu perfil, como se ele estivesse possuído. Começou a rir. Claro que toda essa estranheza era culpa da perda repentina dos meus sentidos. E como ele sabia meu nome?!

– Ei, do que você me chamou? – perguntei rapidamente. Eu nunca havia dito o meu nome. Novamente, ele simplesmente me ignorara. – Estou falando com você, droga. Preste atenção.

– Patrick! Holmes! Acho que esse garoto precisa de uma carona para casa. – os outros dois auxiliares ou bombeiros ou o que quer que fossem direcionaram a atenção para mim e começaram a se aproximar. – Levaremos você sob o cuidado do melhor hospital do mundo, pelo menos é o que dizem. Estou certo, Holmes? Não faça essa cara, apenas concorde! – ele continuava a rir exageradamente e agora parecia montar uma maca com ajuda dos outros dois.

– Você está sempre certo, chefe. Uhum. – disse o homem que se chamava Holmes. Ele parecia idêntico ao Chefe dos Bombeiros. A mesma voz. Os mesmos gestos. Eles tentaram me agarrar e por isso acabei tropeçando num galho. Por que eu estava com medo deles? Talvez porque não via seus rostos mesmo já podendo enxergar nitidamente todo o ambiente. Suas faces continuavam anônimas. Os estranhos tentaram me alcançar, mas pararam subitamente quando uma voz feminina ribombou pela silenciosa mata.

– Ele está comigo. Podem deixar que o levarei para casa.

– E quem é a senhora? Sabe que não podemos liberá-lo tão facilmente assim. Precisamos que se identifique. – disse o Patrick ou Holmes ou o Bombeiro Chefe.

– Meu nome é Lara e esse é o meu filho. Baldwin, vamos embora.

Os pseudo-bombeiros saíram da minha frente e pude, finalmente, enxergar um rosto. Minha mãe estava ali! Fazia tempo que não me sentia tão feliz com a presença de alguém. Acelerei meus passos na sua direção. Ela encontrava-se no meio do encosta, no caminho que o ônibus devastara.

– Como é bom te ver. Vamos para casa? – perguntei.

– Claro. Você não merece ficar perto dessa gente. Já lhe disse: tudo que está relacionado aos Godwhile não cheira bem. – Ainda não havia notado, mas uma das vans pertencia ao Hospital Bierno Atopa.

. . .

Por um minuto esquecera que não possuíamos um carro e, por isso, voltamos a pé para casa. A dor em meu corpo melhorara e minha cabeça não sofria mais com pontadas dolorosas, mas meus tênis continuavam perdidos. Seguimos pelo acostamento da pista até avistarmos a placa que mostrava o nome da cidade em letras antigas e adornadas com enfeites dourados. Com uma caminhada de poucos minutos já estávamos no centro de Porto das Algas, o cheiro do mar era muito bem-vindo. Estranhei o fato de termos chegado tão rapidamente, pois lembrava-me claramente de ter até cochilado durante algum tempo, o que sugeria que havíamos feito um percurso significativo, mas presumi que esses pensamentos fossem consequência da minha confusão pós-traumática.

Ninguém da cidade parecia conversar sobre o acidente ou estranhar o estado de minhas roupas. Não tinha ideia de como ainda não sabiam sobre algo tão grave como o que ocorrera. Muito estranho. Minha mente encontrava-se embaralhada, milhares de visões referentes a assuntos distintos navegavam sem possuírem ligação alguma.

A cidade parecia estranha: as lojas, as pessoas e todo ambiente pareciam fora do lugar, como se alguém houvesse alterado a matriz que a constituía. Cores que antes eram verdes se transformaram em um profundo azul-escuro. Pessoas que antes possuíam cabelos castanhos agora estavam loiras. Claro que eu não sabia os aspectos físicos de todos os indivíduos que viviam em Porto das Algas, mas algo me dizia que tudo estava fora do lugar e que não era para ser assim. Talvez a cidade sempre fora desse jeito. Por minha introspecção e por ser um pouco antissocial eu raramente saía de casa para vagar nas redondezas e conhecer pessoas e lugares. Não sabia se deveria acreditar que tudo estava errado, porque eu sou errado. Era certo estar ali? Não sabia a resposta para essa pergunta, e não gostaria de saber. Poderia ser doloroso. Um homem que andava de bicicleta parou perto de mim e me chamou a atenção.

– Olá. Sabe onde fica a lan house Net Simogramer? – ele usava roupas comuns para uma pessoa comum: jeans, uma camisa lisa e tênis. Ofegava enquanto tentava continuar a falar. – Eu preciso muito ir lá.

– Não conheço esse lugar. Acho que nem existe. Tem certeza que o nome é esse? – perguntei.

– Claro. Só existe essa lan house em toda a cidade. Acho que você não faz ideia de onde fica. – Ele estava certo quanto a ambas as coisas, mas era Ciburbanner e não Simogramer. Ele não era daqui. Talvez fosse um louco, ou um daqueles tipos que ficam vagando por lugares desconhecidos fazendo perguntas aos locais. – Adeus. Estou indo, Sorellina. Logo te acharei.

Poderia jurar que no momento em que ele foi embora, seu rosto pareceu... Embaçado, cinzento, louco. Já não lembrava mais de sua fisionomia. Isso estava virando uma paranoia. Procurei por Lara. Ela já estava bem na frente, e olhava a vitrine de uma loja qualquer. Provavelmente havia me visto ser abordado por alguém e esperara mais a frente, oferecendo-me, dessa forma, uma maior privacidade. Engraçado da parte dela pensar que eu poderia encontrar algum conhecido sociável nessa cidade. Caminhei até o seu lado e também olhei para a vitrine.

– O que está procurando, mãe? – perguntei. - Algum presente para mim?

– Nossa vida não nos permite o luxo de comprar presentes e você sabe muito bem disso. – ela riu e olhou para mim. Algo estava estranho em seu rosto. Percebi que seu cabelo tornara-se castanho claro e estava bem mais curto, os seus longos cabelos agora estavam na altura dos ombros.

– O que você fez com o seu cabelo?! – perguntei um pouco indignado e surpreso. Como ela poderia ter mudado todo o visual do seu corte em tão poucos minutos?

– Você está falando bobagens, pois meu cabelo sempre foi assim.

O que estava acontecendo? Todo o meu mundo parecia ter se transformado após o acidente, mas até minha própria mãe insistia em dizer que nada estava diferente. Forcei-me a acreditar. Nunca tivera motivos para duvidar dela, mas ainda assim... Lembrava-me claramente dos seus longos cabelos castanhos escuros que contrastavam com os olhos de um castanho mais brando, mas agora ambos pareciam ter a mesma cor. Minha mãe sempre tivera um aspecto jovial para os seus quarenta e cinco anos, mas essa característica agora parecia mais visível, como se ela tivesse rejuvenescido. Sabia que isso devia ser apenas impressão, mas parecia muito real.

Abruptamente ela saiu de perto da vitrine e me chamou, de modo que continuamos andando. Estávamos passando em frente a uma loja de conveniências, que se me perguntassem diria que nunca existira até aquele dia, quando uma garota que aparentava ter a minha idade abordou minha mãe.

– Tia Lara! - me sobressaltei, ela chamara minha mãe de tia com tal naturalidade e intimidade... Não me lembrava de ter uma prima que morasse em Porto das Algas – Mamãe tem perguntado por você. Sim, Baldwin, por você também, antes que pergunte. – e riu. Eu não fazia ideia de quem era essa menina, seus cabelos eram loiros, ela possuía intensos olhos escuros, que brilhavam de uma curiosidade quase infantil. Espantei-me ao ver que minha mãe a reconhecera.

– Há quanto tempo... – Sei que nesse momento minha mãe disse seu nome, mas um bipe intenso e agudo dentro da minha própria cabeça me impediu de ouvir – Estou devendo uma visita a vocês. – Minha mãe então reparou que eu havia me apoiado na vitrine da loja de conveniências. Após o estranho som, quase perdi o equilíbrio. – Você está bem, Baldwin?

– Estou. – disse de forma pouco convincente, tentando não preocupá-la, afinal, sintomas como esse deveriam ser comuns depois de todo o estresse a que eu havia me submetido.

– Vamos continuar, ainda faltam várias quadras para chegarmos em casa.

Percebi então com um espasmo de horror, que onde um segundo atrás estivera a loja de conveniências, havia agora a fachada por mim identificada como a da Net Ciburbanner, mas esse não era o nome que se podia ler em letras referentes a cultura punk, de caligrafia que já vira durante as muitas vezes em que estivera ali para me lançar no vão entre as duas salas, no computador de número vinte e cinco. O nome que se lia no banner era Net Simogramer. Meu espanto foi ainda maior, quando vi que a garota loira havia sumido.

– Mãe, onde está a menina loira? – perguntei desse modo. Não fazia, ainda, ideia do seu nome.

– Que menina? – Ela disse secamente – Baldwin, estou começando a ficar preocupada com você. Talvez seja melhor te levar ao Bierno Atopa...

Outro bipe agudo, semelhante ao primeiro, soou em minha cabeça, mas esse parecia mais intenso. Apoiei-me na fachada da Net Ciburbanner... Simogramer... Ah, que seja! Para não cair. Ouvi o som de gotas caindo em uma superfície repleta de água, que parecia vir de dentro da minha cabeça, então a chuva começou a cair, mas parecia diferente, suas gotas eram negras, apesar de que ao tocarem a superfície, não tingiam nada.

Corri para dentro da lan house. Olhei para trás e vi que minha mãe ainda se encontrava na rua, e parecia não se importar com o fato de que a chuva a encharcava. Parecia gostar disso, porque olhava para o céu com os braços abertos. Ela virou-se para mim, seus olhos haviam adquirido um tom esverdeado que não tinham antes, ou talvez eu nunca tivesse notado, eu estava confuso de mais. Ela me chamou.

– Venha Baldwin. Não temos tempo a perder, jovem.

À medida que a chuva tocava a pele da minha mãe, ela ia se transformando, ficando mais jovial, deixando para trás as fases que a caracterizavam como uma mulher quase atemporal, era como se a chuva levasse minha mãe e pintasse diante dos meus próprios olhos, que cintilavam de estupefação, outra pessoa.

– Mãe... O que está...? – A pessoa a minha frente me interrompeu.

– Não sou sua mãe Baldwin, então não me chame assim.

– Como assim? Mãe, o que está acontecendo? – senti que lágrimas vinham aos meus olhos, eram de raiva e confusão. Lágrimas de tristeza por não mais reconhecer os traços da pessoa que tanto amava.

Ela não me respondeu, foi como se não me ouvisse.

– Lara, o que está acontecendo? – Tentei.

Nada aconteceu. Ela permaneceu imóvel. Então percebi que havia um colar de ouro em seu pescoço, e que nele havia um pingente, no qual havia uma inscrição. Um nome: Luna.

– Luna? Esse é o seu nome? - Arrisquei.

– Agora você disse o meu nome corretamente... Odeio quando o erram. Tenho muitas coisas para te explicar, jovem Baldwin, mas antes, temos de chegar até a sua casa.

Fiquei feliz em finalmente a ouvir falar sobre explicações, mas uma dúvida me veio a mente, de forma que não pude contê-la:

– Lua... – ela me olhou de forma ameaçadora, havia errado seu nome – Desculpe-me, Luna. Há poucos minutos você estava transfigurada em minha mãe, se você não a é, onde ela está?

Tentei sustentar o olhar nos seus olhos castanho-esverdeados, mas não consegui. Ela se virou e disse:

– Primeiro precisamos ir para a sua casa, depois te dou explicações.

. . .

A chuva, agora torrencial, continuava a cair, cobrindo o chão com um líquido negro que definitivamente não era água. Enquanto caminhávamos pela calçada, observei as casas próximas, as pessoas e tudo mais que meu campo de visão conseguia absorver. Não era apenas no centro da cidade que tudo parecia errado, eu era perseguido pela incerteza de que a realidade tinha sido distorcida por algo, ou alguém, em qualquer lugar. Esse mundo apenas assemelhava-se ao meu, pois nada existente nele causava um mínimo de nostalgia.

Luna caminhava um pouco a minha frente. Ela usava uma jaqueta preta, jeans, botas de trilha e parecia ter dois anos a mais que eu. Possuía um andar confiante e elegante. De onde raios havia surgido essa garota?

Quando paramos em frente a minha casa, fui tomado pelo desespero. O quintal estava imundo, a frente da casa repleta de palavras riscadas com tinta vermelha, daquelas que possuem gosto azedo ao serem pronunciadas, e uma das janelas estava quebrada. A casa havia sido totalmente vandalizada sem algum motivo aparente e isso me deixou perdido em relação ao que sentir. Angústia? Tristeza? Raiva? Mas esse não era meu mundo, logo, aquela não era minha casa. Eu não pertencia a isso tudo. “Essa casa é de outra pessoa, tente não se preocupar”, pensei. Luna estava tão silenciosa que por uma fração de segundo eu a havia esquecido.

– Nós temos que entrar. Agora. – disse ela.

– Sim, claro. – respondi sem ânimo.

– Você parece perturbado. Olhe que isso ainda nem começou! – Ela sorriu e percebeu que havia me chateado. Luna continuou. – Me desculpe. Não tem graça. Com toda a certeza nós vamos encontrar os culpados.

– Porque se importa com isso? Não tem ligação alguma com você. Nada aqui tem! Eu não faço ideia de quem é você. Por que continua insistindo? – meu tom de voz estava um pouco alterado.

– Insistindo? – ela perguntou seca.

– Sim, por que você está forçando todo esse suspense? Diga agora quem você é ou não entrará na minha casa.

– Preste atenção, Baldwin. – seus olhos de aspecto felino cravaram-se em mim. – Você acha que poderia me impedir de entrar na sua casa? Não, você não iria conseguir. Me desculpe por tudo isso, mas é necessário.

Ficamos nos encarando enquanto o céu pretendia afundar tudo em suas lágrimas negras. Nossas roupas já estavam grudadas no corpo. Naquele momento, não existia mais alguém no mundo. Fez-se silêncio. Nos encaramos e uma pequena batalha de olhares foi travada. Seus olhos, definitivamente, possuíam certo aspecto felino e agora pareciam meio amarelados. Percebi que era dona de uma beleza única, os traços de seu rosto combinavam perfeitamente com seus olhos e cabelo, e o cordão dourado se destacava. Ela disse alguma coisa, mas não entendi.

– O que você disse? – perguntei atordoado.

– Idiota. – Ela riu. Seu sorriso era viciante.

– Ok. Vamos entrar.

Tomei a frente e paramos em frente a porta principal. Ela estava destrancada, é claro. O interior da casa estava totalmente bagunçado. Havia estilhaços de vidro sobre o carpete, um dos abajures encontrava-se destroçado no chão e na parede havia marcas estranhas. Aquilo eram garras?! Torcia para que não. Um cheiro estranho predominava no ar e estava quase a ponto de acreditar que realmente existia o odor chamado medo. Avançamos em direção a cozinha. Estava intacta. Mais uma coisa para colocar na lista de fatos sem sentido que ocorrem nesse lugar. Sentei-me no balcão do cômodo e ela escolheu uma das cadeiras. Um tom claro de luz inundava o lugar, destacando aquele recinto do ambiente caótico em que se encontrava toda a residência.

– Bom, conte-me tudo. Comece com quem é você. – eu disse.

– Eu sou Luna, como já te falei. E você sabe exatamente quem eu sou. – disse ela enquanto fazia a cadeira inclinar para trás e para frente. – O que mais quer saber?

– Isso é sério? Vai responder as perguntas assim?

– Estou dizendo apenas a verdade, oras. – ela riu. – Me faça uma pergunta intrigante. Vamos!

– O que é esse mundo? – perguntei.

– É o que chamam de meio-mundo. Parte pertence a você e a outra... A eles. – Ela transparecia um ar sério. Algo a incomodava.

Um flash iluminou minha mente. Foi incrivelmente rápido, mas o tique-taque de um relógio branco, em que os ponteiros corriam loucamente, ficou cravado na minha percepção. Um barulho estranho começou a vir do andar superior, algo semelhante ao rasgar de um tecido.

– O que é esse barulho? – indaguei.

– Por que você não vai lá e descobre? – Isso soou como um desafio. Não falei nada e parti em direção ao cômodo de onde o som vinha. – Essa luta não é minha, Baldwin! Você já devia saber disso! – gritava Luna ironicamente. Eu já havia me afastado.

Subi em direção ao quarto da minha mãe. Enquanto subia as escadas, o som de rasgar se tornava mais alto e nítido. Alguém estava lá. A porta estava entreaberta e um cheiro pútrido era liberado através da estreita passagem. Levei minha mão à maçaneta, ela estava suja de um líquido preto. Medo. Novamente, o tique-taque ressoou pela minha mente amedrontada. Eu reuni coragem suficiente e abri a porta. Um calafrio subiu pela minha espinha, pois um homem de terno preto e chapéu coco estava de costas para mim e rasgava o tecido da cama de minha mãe. Ele percebeu minha presença e virou-se para mim. Não era possível identificar quem aquele homem era, pois seu rosto estava embaçado, cinzento, louco!

– Olá, Baldwin. – sua voz era firme e confiante como a de um corrupto, porém, havia um toque exagerado de sagacidade. – Estava lhe esperando. Seria bem mais fácil se você tivesse aceitado minha bela oferta de te levar para casa. Isso foi bem rude, ainda mais após eu ter salvado você.

– Quem é você? – eu estava assustado, mas tentava não demonstrar.

– Eu sou aquele que perturba a noite dos inocentes. Aliás, eu adoro crianças. – ele riu. Sua voz e seu sorriso surgiram em minha cabeça, já que não possuía um rosto físico que o permitisse fazer isso. – Sou o medo!

– Ok. Acreditarei no que você diz, por mais que não existam motivos para fazer isto. Onde está minha mãe? – eu ainda me agarrava à fraca hipótese de que ela poderia estar em algum lugar nesse mundo.

– Você está certo, garoto - ele disse como se pudesse ler minha mente - Ela não existe nesse meio-mundo, porque você não a considera importante o suficiente para estar aqui. Pobre, Baldwin. Por que é tão burro? Acha mesmo que a Luna vai te ajudar? Ela é uma inútil. – a intensidade de seu sorriso aumentou na minha cabeça.

– Nisso eu não acredito. E pouco me importa aquela garota. O que faz aqui? – eu me senti seguro o suficiente para agarrar um pedaço de metal retorcido que estava próximo a mim.

– Isso é segredo! Segredo! Segredo! – a sua voz causou uma dor excruciante em minha cabeça. Ele “olhou” para o artefato que eu segurava. – Olhe para as minhas mãos. – Eu não mexi meus olhos um único milímetro. – Olhe para as minhas mãos! Agora!

Olhei. Suas mãos eram branquíssimas e dedos longos as preenchiam. Ele não possuía unhas, mas sim, garras que deixavam um líquido negro respingar no chão. As poças negras, as pesadas gotas de chuva e o céu destruidor pertenciam a esse ser maléfico. Sua voz continuava em minha cabeça.

– Acha mesmo que vai conseguir me machucar com um pedaço de metal? Irei, com essas mãos, te matar antes disso.

Meu corpo se desequilibrou. Isso já estava se tornando rotineiro porque eu não possuía capacidade mental para suportar tudo que acontecia. Eu nunca sentira tanto medo em minha vida. Sabia que ia morrer e isso iria acontecer naquele momento. Coincidentemente, olhei para o lado mais afastado do quarto. Ali, no chão, amontoavam-se diversas máscaras com rostos horrendos e agonizantes. Entendi por que ele arrancava e rasgava o tecido das camas. “Ele quer guardar tudo em uma sacola, uma embalagem amedrontadora com as faces de suas vítimas”, foi o que conclui.

– Eu sou o Homem sem Rosto. E o seu será o próximo da coleção! Não se preocupe. Isso será... Totalmente... Indolor! – ele saltou na minha direção com uma agilidade incrível, porém, eu consegui me desviar rapidamente e corri em direção à janela destruída. Ia me jogar, é claro. Só existia essa possibilidade de fugir e acreditava que ele não iria me seguir. O Homem sem Rosto mudou rapidamente de direção e jogou-se contra as minhas costas. Ele agarrou-se a elas usando suas garras. Urrei de dor. Ambos caímos através da janela, em direção ao gramado e rolamos como uma sinistra bola-de-neve. Minhas costas sangravam e tinha a total certeza de que havia fraturado uma costela. Eu estava totalmente em pânico e me arrastava pelo chão. O que estava acontecendo?! Por que comigo?! Que droga de realidade era aquela?! Minhas roupas estavam pesadas devido a lama e isso dificultava-me a fuga. Olhei para trás. Ele já estava de pé e próximo a mim.

– Você está de novo no chão? Desde o momento que comecei a te seguir você só desaba. Você é fraco, garoto. Fraco! Mais fraco do que sua mãe. Ela foi uma presa ridiculamente fácil. – Ele “falava” com raiva e agarrou minhas pernas. Começou a me arrastar pelo solo úmido.

Conclui que ele esteve me observando e me ludibriando durante todo o dia, pois ele era o Chefe de Bombeiros, Holmes, Patrick e o senhor que me abordara de bicicleta! Ele parou de me arrastar e tirou uma máscara de seu terno... Era o rosto da minha mãe! O pânico e o desespero que me dominavam chegaram a seus ápices e transformaram-se em pura fúria. Ainda caído, chutei o seu rosto e me afastei.

Tentei focar minha mente. Aquele não era o rosto da minha mãe. Ela não existia nesse mundo. Não! Comecei a correr em direção ao asfalto e parei no meio da rua. O Homem sem Rosto parecia um pouco atordoado. Creio que não esperava um chute bem no meio da “cara”. Luna estava na janela do segundo andar e me observava. Ela falou alguma coisa que não entendi. Seus lábios pareciam dizer “Não tenha medo, por favor”. A garota tirou algo do bolso e jogou na minha direção com um arremesso bem forte e preciso. Algum artefato caiu perto de mim, a poucos metros. Olhei para o ser vil e aterrorizante que me vigiava. Ele agora estava com muita raiva, eu sabia disso. Duas asas de um couro sinistro haviam brotado de suas costas, deixando seu terno todo rasgado.

Ele voou velozmente na minha direção. Joguei-me diretamente para próximo do objeto. Era um isqueiro. Sentia que todos os pelos da minha nuca estavam eriçados e parecia que um lote de adrenalina tinha sido injetado no meu sangue. O Homem Sem Rosto estava bem próximo e gritava em minha mente.

Do céu, centenas de gotículas negras começaram a perfurar o solo cinzento abaixo de mim. Eu não ligava mais para onde eu estava e nem por que estava ali. Havia um forte odor de carne apodrecida no ar e por perto ninguém e nada se encontravam. Eu segurava o isqueiro, sua cor era negra como a chuva torrencial que encharcava minhas roupas e meu cabelo, os deixando grudados em meu corpo.

“Acenda a verdade” era a frase inscrita na lateral do isqueiro que agora se encontrava sob a minha posse. Era um belo artefato e não parecia ser feito de um metal comum porque era bem mais pesado que o normal, e, por mais que fosse difícil acreditar, parecia ter uma utilidade maior do que a de um simples isqueiro.

O Homem Sem Rosto estava ali. Ele me agarrava e, em certo momento, uma pequena luz de chama começou a surgir do bocal do artefato, até que a temperatura do metal negro começou a aumentar e uma longa língua de chamas incandescentes apareceu, como fogos de artifício, e as gotas de chuva suspenderam no ar, como se o tempo tivesse parado para poder assistir ao espetáculo que aquela chama vermelha fazia na atmosfera. O corpo do medo começava a queimar e cheiro de carne apodrecida queimando dominou o ambiente. Após seu último grito de dor, que estourou em minha cabeça, notei que eu o matara.

O que eu acabara de fazer não importava comparado ao cenário onde me encontrava. Era incrível e possível tocar as gotículas de chuva tão negras quanto a noite. Tomei uma em minha mão, mais parecia uma pequena rubi negra. Ela atraía minha visão para seu interior, puxando-me... Até que me encontrei concentrado na forma da pedra de modo que era impossível fugir dessa ligação, um rosto começou a surgir dentro gota, era familiar, mas eu não conseguia o enxergar a ponto de dizer se o conhecia. A face estampava horror e medo, até que a imagem na pedra gritou e a mesma estilhaçou-se em minúsculos pedaços cristalizados.

Uma voz surgiu em minha mente dizendo “Obrigado” junto com a imagem de um garoto deitado numa maca cercada de aparelhos de hospitais que faziam bipes incessantes, como uma orquestra que tocava o ritmo da vida. Aquilo foi aterrorizante.

A imagem tinha sido apenas uma visão, e neste momento não passava de uma lembrança borrada. E de que isso importava? Muito provavelmente aquilo não passara de mais um pesadelo dentre os muitos outros que já havia presenciado... Literalmente presenciado. Eram tão reais. Ajoelhei-me no asfalto molhado e senti meu coração desacelerar. Eu começava a me acalmar. Não sabia em que momento e como isso ocorrera, mas Luna já estava ali. Ela colocou sua jaqueta sobre os meus ombros.

Nós encaramos o asfalto cinzento... Todo aquele líquido negro, tenebroso, escoava pelos bueiros, emitindo um som estranho que reverberava nas paredes de concreto, trazendo a tona o medo que eu pensara ter derrotado. A rua assemelhava-se a um corredor sem vida que nos espreitava. Olhei para o meu braço. Uma marca escura pulsava impiedosamente. Ela surgira, sem que eu percebesse, no meu antebraço e parecia um caduceu.

– Isso ainda não acabou, Luna? – perguntei.

– É apenas o começo. – ela disse. - Que isso, jovem? No seu braço.

– Esperava que você me dissesse.

Algo nascia dentro de mim. Ímpeto? Coragem? Talvez. Não fazia ideia do que nos aguardava, mas já podia sentir o cheiro da morte.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por acompanhar e ajudar na revisão. :)



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