GUERRA DE UMA MENTE PERTURBADA escrita por Salomão, Rave Donili


Capítulo 1
O início de Todo o Mal


Notas iniciais do capítulo

E que a jornada começe! Espero que gostem ;)



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Um dia todos irão saber o que realmente está acontecendo e poucos serão aqueles que conseguirão sobreviver ao terror que já nos cerca. O mundo se tornou ignorante, uniu-se o conforto de uma consciência não perturbada ao que é coerente, e todas as mentes tentam excluir aquilo que não é necessariamente real, o que é ridiculamente inaceitável. Chegará um tempo em que o irreal atacará e aqueles que não forem mentalmente fortes serão eliminados de forma fácil e impiedosa. Paremos com os rodeios, e vamos ao que realmente importa. Analise o seguinte fato: um assombro de uma criança, se possuir crença suficiente, não seria tão existente quanto um deus? Sim. Ele se tornaria real. Não estou mentindo, eu vi. E passei pelo pior terror de todos: enfrentei algo vil e aterrorizante e não possuía ninguém que acreditasse no que estava acontecendo. Foi excruciante o fato de não acreditarem em mim. Vivenciei tudo sozinho e sobrevivi. Meu nome pouco importa se comparado às vidas que foram perdidas. Nada mais faz sentido e nada é necessário. O que é real? Já não sei mais. Fique com minha história e me livre desse peso. Sonhos! Pesadelos! Leve tudo e me tire desse tormento. Eu era Baldwin, mas hoje sou nada.

Eu tinha quatorze anos quando Todo o Mal aconteceu. Foi a coisa mais aterrorizante e perturbadora que já vivenciei e sinto medo até hoje, já adulto. Ainda me lembro do pular do ônibus enquanto passávamos pelas estradas ruins que nos levariam ao Passo da Vitória. Vocês podem não entender agora, mas o nome do nosso destino é totalmente irônico ao que realmente aconteceu. Não começarei pelo meu passado, mas situarei o eu de hoje, antes de tudo. Se não fizesse isso vocês poderiam me classificar como louco, mas se eu lhe disser que estou internado em um hospício isso se torna pouco relevante, não? E isso é a verdade! Fui internado ainda adolescente pelo Dr. Ivan Godwhile, dono da instituição onde hoje me encontro, mas isso também é conversa para outro dia. A rotina daqui é péssima: acordar, tomar banho, comer, dormir, além dos inúmeros horários em que enfermeiras vestidas com aquelas irritantes roupas brancas me trazem remédios. Hoje já não consigo diferenciá-las, e não sei se é por efeito do meu ódio ou do meu tédio. Quando se chega a um nível de ócio incrivelmente alto coisas incríveis começam a acontecer, e uma delas é o fato de você não ligar mais para nada ou ninguém. Sim, já cheguei nesse estágio. Sem mais delongas sobre hospitais, percebi hoje que seria uma ótima escolha se eu passasse a usar meu tempo livre contando minha história a vocês, eu poderia arranjar alguém que acreditasse em mim e a sentença nesse lugar passaria mais rápido. Já lhe adianto: não espero que você acredite no que irei dizer, mas pelo menos procure tirar suas próprias conclusões. Entretanto, adoraria que tivesse alguém tão louco como eu a ponto de querer vir me salvar desse tormento. Seria gratificante. Enfim, eis a minha história:

“Aquele era o dia em que eu deveria viajar. Meu ânimo estava péssimo quando acordei, pois era domingo e muito cedo, seis e meia da manhã. Em Porto das Algas, cidade onde morava, esse período do dia era quase sempre frio e cinzento. Alguém gritou por mim na cozinha, então forcei-me a levantar. Meus olhos vasculharam o cômodo e era notável a bagunça. Havia camisas jogadas por todo o chão, meias perdidas perto da porta e o espelho estava totalmente torto. Já não fazia ideia do motivo de possuir esse objeto no meu quarto, mas lá estava eu frente a ele, observando o meu rosto. Eu permanecia com a pele clara, olhos castanhos e o cabelo perfeitamente bagunçado de sempre. Não ligava para nada disso. Minha aparência não possuía muitos caprichos, porém, não me considerava feio. Achava totalmente desnecessário comparado a se ter uma personalidade marcante, algo que as pessoas de hoje esquecem. Mais valia ser interiormente bom do que ser exteriormente atraente, mas eu não poderia ir a uma viagem escolar vestido com meu pijama cinzento. Tomei banho e vesti meu uniforme.

Já podia sentir o cheiro dos ovos que seriam servidos no café da manhã. Não havia uma bela família me esperando na mesa para a primeira refeição do dia, mas apenas minha mãe. Ainda jovem ela fora abandonada por seu marido, que apenas considero como parente biológico e, dessa forma, acabou por ser acostumar com a minha presença única em sua rotina. Ela não era muito fã de possuir amizades, mas isso não significava que ela vivia totalmente abandonada. Desci para a cozinha.

– Bom-dia, mãe - disse.

– Bom-dia, filho. - Ela raramente respondia mais que isso. Minha mãe era uma típica pessoa que via a vida de uma maneira sistemática, ou seja, uma resposta simples para uma pergunta ou um comentário já era o suficiente. Eu havia me acostumado com esse aspecto dela, porém, hoje era um dia diferente. - Dormiu bem? Percebi que você se manteve inquieto hoje à noite. - ela completou.

– Essa é uma das vantagens de ser ter uma casa pobre e pequena, dois quartos e de um deles você pode sempre me vigiar, certo? - Ela riu. - Mas em relação a dormir bem... Digamos que não, eu tive pesadelos. E o sonho foi real demais para mim.

– E sobre o que você sonhou? - Ela agora colocava o meu café da manhã sobre a mesa, mesmo eu possuindo 14 anos ela ainda se satisfazia ao fazer isso. - Quer suco?

– Não, obrigado. E creio que aquilo não foi exatamente um sonho. Foi uma tortura, e não gostaria de repetir o que eu vi acontecer, por favor.

Ela apenas assentiu e continuou o que estava fazendo. O meu hábito de falar de forma adulta apenas com a idade que tinha sempre fora algo comum para ela, visto que ela também tinha essa mania. Era uma característica de família. Não era tão fácil na escola porque as pessoas realmente não gostam de lidar com o "falar difícil". Mas o que eu poderia fazer? Foi um hábito que adquiri devido ao fato de meu avô contar histórias para mim, dessa maneira, quando eu ainda era uma criança. Minha mãe chamava-se Lara e, mesmo possuindo 45 anos, tinha uma beleza jovial, na qual você podia encontrar todas as fases de uma mulher. O cansaço mórbido daqueles que já tinham passado por muito aliado a naturalidade de uma moça e a curiosidade de um criança a definiam. Era uma pessoa única e incrível que não merecia ter enfrentado todas aquelas coisas de seu passado, das quais ela nunca falava e não procurava questionar, sei que isso fora doloroso para ela e não queria trazer tudo à tona depois de tanto tempo. Seus olhos eram castanhos e como já disse, era bonita ao seu jeito. E isso é apenas o que vocês precisam saber.

O pesadelo sobre o qual não quis falar havia sido terrível, pois nele vira uma pessoa que tanto amo ser torturada e ressuscitada infinitamente. Um ciclo aterrorizante no qual minha mãe sofria e eu vivenciava para todo o sempre. Não existem palavras suficientes para definir o temor que subitamente havia tomado conta de mim. O sangue pintando as paredes e os ilimitados recursos para realizar o seus assassinatos dispostos sobre bancadas lembravam-me um filme de terror. Irônico. Fora realmente isso! E quando acordei uma pergunta surgiu em minha mente: E se o que considero minha vida cotidiana for apenas um sonho e o pesadelo minha verdadeira vida? Um calafrio subiu pela minha espinha e passei a tentar esquecer.

Estava terminando de comer, e divagar, quando o noticiário passou a transmitir uma matéria intrigante: Taxista que estava inconsciente há três meses morre sem motivo aparente. A repórter se chamava Barbara Salvatore e vestia um blazer azul-escuro, possuía cabelos escuros, olhos de um caramelo único, e usava um tom de batom exageradamente chamativo, o que era moda na época. Ela situava-se em frente ao Hospital Bierno Atopa, um hospital totalmente moderno e tecnológico que brilhava de tão branco e que era liderado por um dos integrantes da família Godwhile, a qual revelara grandes médicos e psicólogos durante eras. Dr. Bastiam Godwhile era o atual presidente e era um psiquiatra famosíssimo devido às suas pesquisas sobre o subconsciente e possuía um Nobel em seu currículo, o que tornava o hospital particular de sua família referência para tratamento de pessoas pós-traumáticas ou que possuíam problemas mentais graves. A repórter começava a deixar a matéria mais interessante.

– Lukas Jornasson estava inconsciente há muito tempo após ter sido baleado próximo ao coração. Seu corpo havia se recuperado totalmente dos ferimentos, porém, não mostrava sinais de lucidez ou perspectivas de acordar. Hoje pela manhã foi encontrado morto e os exames não mostraram nenhuma alteração que poderia ter ocorrido durante a noite. O que pode ter acontecido? - Um homem apareceu ao lado de Barbara. Era o próprio Dr. Bastiam. Eu fazia ideia de que pessoas do seu calibre não apareciam em redes de televisão tão facilmente, mas lá estava ele totalmente preparado para as possíveis perguntas. A reportagem continuou:

– Enfim, doutor. Quais as conclusões que o hospital tirou sobre a morte do Sr. Jornasson?

– Bom, o assunto ainda está sendo desenvolvido entre os integrantes do comitê de ética do hospital. - começou ele de modo evasivo. Possuía um rosto severo e um olhar que brilhava de escárnio - Mas creio que é de grande necessidade que todos saibam de nossos levantamentos. Não irei contra meus companheiros da equipe médica, mas deixarei claro: Acreditamos que a morte do paciente não tenha sido por causas biológicas ou crise. Estamos supondo que Lukas Jornasson tenha sofrido complicações mentais que levaram a sobrecarrega de seu estado não-consciente. Isso é tudo. - Ele virou-se para o hospital e partiu.

– Terminamos a notícia por aqui. - Disse Barbara meio atordoada com a saída repentina de Bastiam.

– Tenham uma... Boa tarde. - Disse por fim a repórter que parecia realmente abalada. Minha mãe desligou a TV.

– Esses coadjuvantes de hoje, não sabem ao menos distinguir o dia da tarde. Não passam de meio-dia! - disse Lara com um sorriso no rosto. - Bom, agora já são oito horas. Você não deveria ir viajar, Baldwin? Hoje você vai ao Passo da Vitória.

– Sim, já estou indo. Apenas irei pegar minha bolsa. Você não achou estranho?

– O quê? - perguntou ela rapidamente.

– O médico que apareceu na reportagem. Ele parecia desconfortável e foi embora repentinamente. A entrevistadora até ficou sem falas para terminar.

– Não, isso é normal. Esses médicos atuais estão inflados de superioridade e ignorância. Agradecemos por eles salvarem vidas, mas é uma pena que possuam tal personalidade. Ou são ignorantes ou cheios de si. Agora vá, senão perderá a viagem. - concluiu ela.

Eu não disse nada, apenas joguei as sobras de comida no lixo e subi as escadas para buscar minha bolsa e escovar meus dentes. Algo insistia em minha cabeça: o olhar daquele sujeito chamado Bastiam. Qualquer pessoa que olhasse para ele veria um homem já nos seus 70 anos e saudável para sua idade, um grande e incrível grisalho salvador de vidas. Porém, havia algo de diferente, como se uma aura indomável o encobrisse, queria poder saber o que isso realmente significava. Tinha certeza: aqueles olhos não eram normais.

Com a imagem do doutor fixada em minha mente pude perceber que ele era um vilão dos mais vingativos. De forma alguma gostaria de ser tratado por ele. Tentei limpar minha mente de bobeiras e conspirações infantis e parti para a viagem ao Passo da Vitória.

. . .

Eram oito horas e trinta e seis minutos quando cheguei ao ponto de encontro descrito na autorização, uma praça chamada Vitória Carvalho, não muito distante da minha casa e que antigamente era repleta de árvores e alguns animais que os mais jovens, como eu, adoravam ver e se divertir com eles, porém, os brinquedos estavam retorcidos, as árvores secas, não existia mais nenhum resquício do córrego que por ali serpenteava e o concreto do solo estava rachado de um modo grotesco. A viagem ocorreria às nove horas, entretanto, não havia sinal de pessoas da minha idade que também viajariam dali a poucos minutos.

Eu conhecia poucas pessoas da minha turma, passei um grande tempo internado no Hospital Bierno Atopa tratando um caso de tuberculose e quando voltei não existiam amigos. Com o fim do ano letivo, várias pessoas que eram mais próximas a mim desapareceram para outras cidades e, dessa forma, fiquei sozinho porque me distanciei daqueles que sentiam nojo de mim ou que eu simplesmente não gostaria de possuir qualquer tipo de relação.

Segundo descrito na autorização da viagem, que minha mãe havia assinado duas noites atrás, o ônibus sairia da Praça Vitória Carvalho exatamente às nove da manhã, mas todos os alunos deveriam chegar pelo menos quinze minutos antes para a realização de toda a babaquice formal que se costuma fazer antes de viagens escolares. Às oito horas e quarenta e cinco minutos em ponto, a Sra. Carmello de Almeida, nossa professora de História, que sempre se vangloriava de sua pontualidade, chegou e, ao me ver só, seus olhos faiscaram de prazer, me congratulou a contragosto, como se isso fosse doloroso, e começou mais um de seus longos e tediosos discursos sobre a irresponsabilidade dos discentes, uma das únicas coisas, eu acho, que a faziam continuar ensinando, além de dar notas vermelhas, é claro.

Por volta de nove horas, o restante dos alunos começou a chegar e, como disse antes, não mantenho relações amistosas na escola, então não me convém dizer seus nomes, isso pouco importa. O que realmente pode ter feito alguma diferença, ou ao menos influenciado na forma como eu assimilaria alguns fatos os quais me perturbaram naquela manhã, vocês já os sabem, foi o fato de que mesmo que todos os alunos tivessem chegado à praça pontualmente como a Sra. Carmello de Almeida, a qual ainda discursava quando recebeu a ligação, nunca sairíamos às nove horas.

– Fui informada de que a irmã do motorista que nos levaria até Passo da Vitória acabou de falecer, o Sr. Salvatore já estava se dirigindo para cá quando recebeu a ligação e está muito abalado – Disse a Sra. Carmello de Almeida.

Nesse momento houve um burburinho meio pesaroso e animado entre os estudantes, ninguém se atrevia a dizer que estava feliz pela morte da irmã do motorista, mas todos concordavam que passar cinco horas em um ônibus com a Sra. Carmello seria uma tortura a nível inquisitorial, mas não eram essas as minhas divagações naquele momento, me ative ao sobrenome do motorista, Salvatore, que evocava algo do qual não conseguia me lembrar por completo. Após acalmar os ânimos com uma expressão meio a meio, desagrado e prazer, a professora de história pigarreou e continuou:

– A viagem não será cancelada – Mais burburinhos se levantaram, mas dessa vez, eram totalmente desapontamento – Porém, sairemos somente à tarde, às quatorze horas, para ser exata, até a empresa conseguir um motorista substituto. Espero que sejam pontuais – e seus olhos faiscaram em uma expressão severa, que não disfarçava o desdém contido em seu tom de voz esganiçado, logo, retirou-se sem mais palavras.

Sabia que se voltasse para casa, não encontraria minha mãe que provavelmente já fora trabalhar. Éramos apenas nós dois e eu não trabalhava. A quantia que recebíamos do meu cretino progenitor era miserável e claro: contas não se pagam sozinhas.

Compreenda que se a viagem não tivesse sido adiada, talvez eu não houvesse sido compelido pelo tédio a pesquisar sobre a família Godwhile. A expressão de escárnio que Bastiam demonstrara na entrevista despertou algo dentro de mim, não só curiosidade, instinto! Havia algo de errado com essa família, algo que eu precisava descobrir. Se então eu soubesse...

Eu tinha conhecimento de que a apenas duas quadras da praça onde me encontrava, havia uma lan house chamada Net Ciburbanner. O tédio, o instinto e a curiosidade permaneceram me atormentando a cada segundo que permaneci na praça. Decidi-me e parti em direção à casa de computadores. O local era pequeno e repleto de objetos e apetrechos relacionados à cultura nerd e punk, e havia leds e neons iluminando o ambiente com diversas cores inebriantes que causavam dor de cabeça. Uma música eletrônica tocava ao fundo e foi uma surpresa quando encontrei o estabelecimento quase vazio, havia apenas quatro pessoas: Live Edson Aigner, também chamado de Ed, o espinhoso gerente cujos cabelos loiros caíam-lhe sobre a testa oleosa marcada pela acne, quase chegando a esconder seus olhos azuis; E contando comigo, três clientes, sendo os outros gêmeos de cabelos castanhos, olhos escuros, quase negros, e de anatomia corpulenta, o que eu costumo chamar de ratos de academia, sem ofensas. Eles pareciam absortos em algum jogo. Fui em direção ao balcão onde Live estava.

– Olá, Ed. Gostaria de usar um computador. – disse.

– Ah, jovem Baldwin! Seja bem-vindo, garoto. – ele parecia um pouco surpreso. – Hoje é tão fácil fugir da escola? Antigamente nós tínhamos que fazer loucuras para poder sair daquele lugar maldito. – Ed terminara o ensino médio há três anos e já adorava comentar sobre o seu “antigamente”, ou seja, ridículo.

– Não fugi da escola. Nossa viagem foi adiada, e mais, hoje é domingo, mas isso pouco importa. Pode liberar um computador para mim?

– Sim! Agora mesmo. – ele digitou alguma coisa em seu computador. – O mesmo de sempre?

– Claro. – respondi secamente. – O mesmo.

– Feito. Pague-me e vá usar, garoto. Não tente me roubar... Posso ser perigoso. – ele começou a rir loucamente. O headphone preso a seu pescoço estava prestes a cair.

– Você não é. Aqui está, Ed. Obrigado.

Escolhi o computador número vinte e cinco, o mais escondido e afastado possível, ficava em um pequeno vão entre uma saleta e outra da lan house, e era normalmente minha primeira escolha. Como vocês puderam perceber, nunca fui muito bom em fazer amigos e ser social porque sou bastante introspectivo, e costumava me sentir bem assim.

Chequei se não havia alguém me observando. Os gêmeos ainda pareciam estar completamente absorvidos pelo jogo e Ed já roncava com o headphone enorme sobre seus ouvidos. Abri o site de pesquisas, e digitei primeiro “Bastiam Godwhile”, então repensei, apaguei e reescrevi, dessa vez as letras que apareceram no campo de pesquisa foram “Família Godwhile”. Depois de ter apertado o botão enter, uma lista com diversas páginas se mostrou na tela do computador, a maioria eram sites renomados referentes a medicina, inclusive o site oficial da Organização Mundial de Psiquiatria Aplicada. A rede de hospitais, principalmente os psiquiátricos, da família Godwhile, era enorme e espalhada por todos os cinco continentes. Abri vários links relacionados com os artigos mais polêmicos.

O que me levou a procurar sobre a família do Dr. Bastiam é difícil definir, acredito que algo me incomodava muito em relação a eles, pois todos pareciam ser hipócritas e ignorantes, mas claro que as primeiras impressões nem sempre são as certas. Enfim, os sites carregaram e pude perceber pelos artigos que eles eram definitivamente famosos e nada muito polêmico se destacava porque o que o site de pesquisa categorizava como “polêmico”, em sua maioria, não passavam de fotos deles na praia, jogando ou apertando mãos de ricaços não muito confiáveis. Estava quase desistindo quando um site interessante apareceu, um blog intitulado “A Verdade: Jornalismo investigativo” possuía uma matéria sobre a família Godwhile e nela estava escrito:

“Caros leitores e leitoras do A Verdade e desbravadores do mundo submerso da internet, Sorellina novamente aqui. Eis uma matéria de total autoria minha e que pode ser considerada uma de primeiro nível!

Nos últimos anos é incrivelmente perceptível a presença de notícias relacionadas aos nobres, e ridículos, Godwhile! Há uma grande possibilidade que um dos maiores institutos do mundo esteja relacionado com alguma coisa bem podre e isso vem sendo ocultado de forma excepcional… mas não o suficiente para jornalistas que sabem jogar o “esconde-esconde” dos ruins e ricos.

De uma maneira incrivelmente bela, consegui invadir a ala do hospital onde se situam os corpos dos falecidos recentes e que logo serão entregues as suas famílias, um lugar que chamo de “fonte-dos-desejos-para-aqueles-que-querem-ferrar-o-Bierno”, e sim, o nome é grande. O que encontrei lá é algo totalmente inimaginável, pois quem poderia pensar que o corpo de Lukas Jornasson estaria totalmente mutilado! Incrível! O homem que morreu, creio que a culpa é de um assassino bem sádico, na madrugada de hoje devido a um “motivo desconhecido” não apresentava nenhuma pista do que poderia ter ocorrido, porém, lá estava ele com o corpo todo arranhado e repleto de feridas. Mistério total. Para minha surpresa havia outros dois corpos no mesmo estado. Que história mais bizarra. Você pode encontrar as fotos abaixo…”

Repentinamente o navegador de internet fechou-se. Não cheguei a ver as fotos postadas pela tal Sorellina e, dessa forma, não tenho como dizer se elas realmente existiam. Dúvidas inquietantes surgiram na minha cabeça: Quem era a blogueira que se auto-intitulava “Sorellina”? As indagações feitas pela pseudo-jornalista podiam ser consideradas verossímeis? Toda essa história envolvendo os Godwhile era realmente perturbadora. Reabri o navegador e dessa vez o site não pôde ser encontrado, verifiquei se o sinal da internet havia caído, mas não, estava conectado e o computador, no geral, não alertava sobre erros. O que acabara de acontecer fora estranho e sem explicação, não dava para voltar atrás, pois o site havia desaparecido em questão de segundos. “Proposital ou apenas coincidência?” Isso insistia em minha cabeça. Levantei da cadeira e observei os gêmeos, eles não jogavam mais e faziam qualquer outra coisa. Live agora dormia profundamente e a música ambiente continuava a tocar. Eram dez horas e doze minutos da manhã e resolvi ir para casa.

Durante o percurso até minha residência, não conseguia tirar médicos, mortos, conspirações e tudo mais que estava relacionado com os incidentes do dia. Eu lia muito e adorava matérias de jornais, isso tudo me levava a pensar demais e não aceitar que tudo era apenas uma coincidência. Será que os Godwhile realmente estavam envolvidos com algo maior e pior? Não saberia responder e acreditava veementemente que nada estava para acontecer, mas no fundo da minha mente, o local que por obrigação deveria ser ignorado, eu estava absurdamente curioso em entender tudo. Uma contradição interior de decisão que me deixava pensativo e fazia-me refletir sobre minha loucura. Parei e olhei para outro lado da rua. Uma casa bem pequena se situava entre casas maiores e mais bonitas, e era ali que eu morava e me sentia feliz. Entrei e encontrei minha mãe na cozinha. Ela preparava o almoço.

– Ah, olá Baldwin. Não ouvi você chegando. E já estou sabendo sobre a mudança de horário. Eles ligaram. – disse ela.

– Pois é, aqui estou. Chegou agora, mãe? – respondi.

– Sim, claro. E já estou terminando de preparar o almoço. Sente-se. – ela preparava o mesmo prato de sempre: arroz, carne e batata, típico de nosso cotidiano. Ela sentou-se a mesa e nos serviu. – No que está pensando? – ela percebeu devido a minha expressão concentrada.

– Nada de muito importante. Apenas no que aconteceu essa manhã. Você acha que a família Godwhile pode estar envolvida numa trama?

– Uma trama? Do tipo plano diabólico para dominar o mundo? – ela fixou seus olhos nos meus – Baldwin, você precisa entender que qualquer um pode estar envolvido em algo desse tipo. Há muitas pessoas ruins nesse mundo e a grande maioria se esconde atrás de máscaras impecáveis de bondade, então por que não? Aliás, nunca gostei deles.

– Mas todos os dias eles salvam vidas, isso faz com que seja difícil de acreditar.

– Acredite em mim, querido. Meu instinto diz que eles são ruins. – concluiu Lara com os olhos brilhando de perspicácia.

. . .

Após a curta conversa com minha mãe durante o almoço, fui para o meu quarto. A excursão só sairia às quatorze horas, então estava livre. Pensei no que minha mãe dissera e isso fez com que meus devaneios sobre a família Godwhile aumentassem, mas não só isso, ler sobre os supostos corpos mutilados fez-me lembrar da terrível tortura que me assombrara na noite anterior, e imagens vieram como flashes, memórias... Tudo parecera tão real, o sangue, a pessoa tão familiar em minha frente, morrendo, uma vez, e de novo... Lágrimas surgiram nos meus olhos, eu as enxuguei e tentei levar meus pensamentos por outros rumos, pluguei o fone de ouvido no celular, dei o play na última música tocada, aumentei o volume ao máximo, e fiquei ali, olhando para as paredes pintadas de um azul desbotado, com pôsteres de minhas bandas prediletas. Meu quarto era muito desorganizado, porém, arrumado ao meu jeito. Tudo bem que roupas pendiam da maçaneta da porta ao invés de estarem dentro do velho guarda roupa marrom, mas minha mãe não se importava, então não havia com o que se preocupar.

Esperei o horário propício para sair de casa para que eu não me atrasasse para a excursão. Saí do quarto e reparei que minha mãe já havia ido trabalhar e que deixara uma chave extra para que eu trancasse a casa quando saísse, e foi o que eu fiz.

Quando estava voltando à Praça Vitória Carvalho, vi um carro vermelho passando e dentro dele estavam os dois gêmeos que vira mais cedo na lan house, imaginei que estivessem voltando de lá e pensei comigo que além de ratos de academia eles também eram nerds viciados em jogos de computadores. A combinação de gostos dos irmãos era muitíssimo estranha. Ri.

Dessa vez cheguei um pouco depois do horário marcado, algo em torno de um minuto, o que deu motivo para a odiosa Sra. Carmello de Almeida, que já estava presente, discursar mais uma vez sobre pontualidade. Escutei o sermão com a cabeça viajando em outros assuntos, por ordem de importância. Não preciso nem citá-los de novo, a música não resolvera. Tudo que eu havia lido permaneceu em minha cabeça.

Assim que o motorista chegou, todos os alunos já estavam presentes, pudemos entrar e escolher nossos assentos. Escolhi o que ficava diretamente atrás da cadeira do motorista, longe do famoso “fundão”, lar dos baderneiros. Sentei-me e coloquei o cinto de segurança.

Saímos de Porto das Algas, em direção ao Passo da Vitória, nunca havia estado lá de fato, mas sabia, através da leitura e fotos, que assim como a cidade onde eu morava, era uma zona portuária com balneários poluídos e algumas vilas de pescadores que ainda resistiam nas zonas mais afastadas, cujas casas tinham estilo rústico. A poluição se devia ao fato de a zona próxima à cidade receber diversos tubos de esgoto, e navios cargueiros, que jogavam detritos no mar, mas visitaríamos a área mais antiga, onde ainda havia algumas vilas.

O distrito se chamava Passo da Vitória porque alguma figura importante historicamente havia pisado em terra após a grande batalha conhecida como “A Guerra do Porto dos Corais”, pela primeira vez ali, após massacrar as tropas inimigas, então a Sra. Carmello talvez tenha achado interessante passarmos dois dias, sentindo cheiro de peixe podre e poluição, escutando-a falar da importância histórica local. O motorista deu partida no ônibus. Saímos em direção ao nosso destino.

Estava quase colocando o fone de ouvido quando escutei a professora conversando com o motorista sobre o Sr. Salvatore, motorista que não havia comparecido mais cedo por causa da morte da irmã. Não sou de bisbilhotar a conversa de terceiros, mas estava atrás da cadeira do motorista, então era um pouco difícil não ouvir, e, além do mais, achei que não havia mal algum.

– Fratellino, era assim que nós motoristas da companhia o chamamos, uma brincadeira da família dele, que é italiana – disse o motorista que tinha a pele clara, olhos verdes, uma barriga protuberante e um espesso bigode. Pelo crachá, vi que seu nome era César. – Ele não falava com a irmã já fazia muito tempo pois eles tiveram uma briga feia quando ela decidiu largar a faculdade de direito para tentar jornalismo. Mesmo depois de ela conseguir um contrato com aquela rede famosa, como é mesmo o nome? O canal que passa aquele jornal matinal... O “Notícias com café”.

– Ah sim, eu sei qual é. Rede Vinil TV.

– Essa aí. Como eu ia dizendo, mesmo depois de conseguir o contrato e o chamar para morarem juntos, eu sei que ela era solteira e que gostaria de ter o irmão por perto, por proteção, ela... – ele se deteve. – Não posso falar sobre isso. Prometi ao Fratellino que iria guardar o segredo sobre sua irmã. Ele quase teve um infarto quando deixou escapar isso para mim. Desculpe-me, prometi que não contaria... – a professora assentiu. Uma de suas únicas virtudes, não levando em conta sua pontualidade e responsabilidade com assuntos relacionados ao ensino, era completamente indiferente à vida alheia – A proposta e o sucesso dela pareceram piorar a relação dos dois, pois inflamou o orgulho do Fratellino, e agora que ela morreu, ele se sente muito culpado.

– Que história triste – disse a Sra. Carmello. – Deve ser muito difícil ter de dizer adeus para a irmã sem ter ao menos se desculpado – Seu rosto tomou então uma expressão de dúvida. – Como era mesmo o nome da irmã dele? Eu assisto o jornal “Notícias com café”, mas sou péssima com nomes.

– Barbara Salvatore...

Eles continuaram conversando, mas eu já não escutava, e de súbito percebi que uma tempestade que transformara, em algum momento, o dia em noite, castigava-nos, com trovões e relâmpagos, mas isso não era importante naquele momento, pois acabara de descobrir que Barbara Salvatore, a repórter que fizera a tão desconcertante entrevista com Bastiam Godwhile estava morta, então resolvi pesquisar no meu celular, com certeza já haveria agora uma reportagem sobre isso, sendo ela repórter de um famoso jornal matinal. Qual foi minha surpresa quando não achei absolutamente nada, até reescrevi o título de pesquisa, sendo mais específico, mas não havia nada, era como se nunca tivesse acontecido. Talvez a irmã do senhor Salvatore fosse outra Barbara. Percebi que era uma conclusão absurda de minha mente perturbada porque seria coincidência demais. Resolvi reclinar a poltrona e tentar dormir.

Cochilei por algum tempo. Tive o mesmo pesadelo da noite anterior e isso me fez acordar sobressaltado com todos os sentidos despertos. O sonho fora tão real, ainda mais que da última vez e meu corpo parecia cheio de adrenalina, e isso fazia com que a tempestade, a qual ainda nos açoitava, parecesse ainda mais ameaçadora, com trovões mais altos e relâmpagos que clareavam o céu de nuvens escuras. Então, por um instante que pareceu se prolongar por muitas horas, tudo parecia estar em câmera lenta e os sons da tempestade se tornaram distantes e irrelevantes. Vi um carro vermelho que estava a nossa frente entrar na contramão e desacelerar até se posicionar ao nosso lado, e quando a luz de um farol incidiu sobre o carro, pude ver pelo retrovisor, olhos muito escuros. Numa fração de segundo meus olhos se encontraram com esses, que brilhavam de satisfação e nervosismo típico de quem se prepara para fazer algo importante.

O motorista do nosso ônibus começara a dizer surpreso:

– O que estão pensando? Esses...

Nunca soube que insulto César lançaria sobre o motorista que dirigia de maneira suspeita, pois naquele momento, no qual todos os sons pareceram voltar ao normal e se intensificar, o carro vermelho chocou-se contra o nosso ônibus. O estrondo me pareceu mais poderoso do que qualquer outro som que eu já tivesse escutado.

Deslizamos no asfalto molhado, uma pequena desaceleração e um baque me indicaram que havíamos batido na cerca de contenção, então o ônibus começou a girar para o lado da cerca lentamente. Deparei-me comigo mesmo pendurado no cinto enquanto o mundo girava, agora mais rapidamente. Tudo se resumia a gritos de horror, pessoas sendo arremessadas em diversas direções, e uma minoria pendurada nos cintos como eu.

O barulho, o cheiro de sangue, de terra molhada e de metal parecia invadir meu olfato como o cheiro de um animal em decomposição. Abruptamente paramos de girar e foi possível ouvir o som da água se espalhando e outro mais agudo, esse era o vidro se partindo, e quando percebi estava submerso e preso ao cinto, algo que me ligara a vida, mas que agora arrastava-me para a morte. O mundo ficou silencioso, e tudo começou a escurecer...


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Notas finais do capítulo

Reboot e Rave Donili são pseudônimos. Não esqueçam de comentar!