Uma Música De Treva E Sangue escrita por Rivotril


Capítulo 3
Milady Vermelha


Notas iniciais do capítulo

- Ponto de vista: Milady e Deli; 3ª pessoa.
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Meia-noite sem luar, e os gatos entoavam sua canção libertina. Entre olhos redondos amarelos e minguantes escarlates, a bruxa despertava os desejos ocultos das marionetes humanas lançadas ao sono no conforto de lares blasés – o odor de café e cerveja atiçava seus sentidos de um modo que julgava desagradável, mas, cansada de procrastinações perpétuas, ela se manteve em seu ritual. Dias sem personalidade de um coletivo desorientado, e a bruxa manipulava as cordas foscas dos fantoches adormecidos para um caminho de fantasias perdidas e tabus viciosos que ela conhecia bem – de onde bebia de sua fonte e colhia de suas macieiras proibidas.

– Primatas orgulhosos... aposto que adorariam uma mordida...

Atrás dos caninos e bigodes inquietos, um arrepio lhe percorreu a espinha ao receber o toque gélido da brisa noturna de um modo que julgava como esquecido, e o formigamento onde batia um coração lhe lembrou de que era tão vampira quanto bruxa - como bem gostava de salientar àqueles que roubava a volúpia no mundo onírico, uma vampira por opção. De pelos negros e espessos, esmeraldas grandes e expressivas como um grito na noite e cauda longa e serpentil, uma sombra do Éden, a bruxa assumia sua forma felina no topo da torre mais alta de uma capela lusitana às ruínas, sob o ombro corroído pela impiedade do tempo de uma gárgula mascarada em cornos e caretas.

– Se me permitir a companhia... - sussurrou a noite.

A brisa revelou-se um desejado temor: um fantasma-da-ópera do passado, o vampiro conhecido como necromante e doppelgänger, demônio e curinga - mas, para ela, apenas uma cicatriz. Fantasmagórico ao uníssono coro de felinos agourentos, o macilento espectro esvoaçou, utilizando como degrau o uivo do vento até os miados de mil vozes da bruxa. Abraçou-se à estátua demoníaca, aludindo ao caduceu de Hermes, e o cheiro de sangue se sobrepôs a qualquer resquício de trivialidade humana. A cartola inclinada ocultava os traços característicos do amante secular, uma máscara difícil de interpretar, e o fraque cerimonial de mangas empoadas e cauda-de-andorinha por medir emprestava de uma generosa lufada de noite, tornando-o a réplica formal de um coveiro às portas da loucura.

– Parece que alguns costumes insistem em não morrer, como o dono – zombou a gata, referindo-se à longa dívida do vampiro para com a morte.

– Ah, claro. Não me passou pela cabeça tomá-la como o lar de outrem, Milady, apenas alimentando a boa e velha formalidade. Tampouco sou um vampiro de baixo nível para a tosca regra do convite me limitar - lembrou-lhe o óbvio, apenas por diversão e vaidade.

– Sou o lar de muitas coisas, vampiro – miou uma advertência, um gracejo felino.

– Me chama de vampiro, como se não lhe servisse tal título. Nega a própria natureza agora? - o imortal acomodou-se em lótus sob um dos ombros da gárgula, limpando com lenço xadrez o que parecia ser um sorriso de sangue seco.

– Não seria a última das negações, tal como a Última Ceia não foi necessariamente a última – pulou soturnamente sob o colo de gala e pompas, aninhando-se como um mascote faria.

– Uma súcubo, tão de repente. Não lembro de ter lhe ensinado como fazê-lo – repentinamente, pareceu melancólico. Afagava por trás das orelhas felpudas daquele corpo mirrado, percorrendo um dedo pesaroso pela fofura do negrume até a ponta da cauda, entrando naquele jogo de mestre e bola de pelos.

– Não é o senhor de todas as respostas, vampiro. Como pode convencer-se do absolutismo com tanta facilidade? - os ronrons oscilavam entre manhosos e arredios.

– Veja só, essa é uma lição que continuo lhe devendo – mas assim pareço arrogante. E persiste a dificuldade em me encontrar um bom apelido, hm? Sua vocação fica em dúvida; não que comigo fosse diferente, apenas nunca me pareceu fazer diferença.

Um silêncio venenoso se seguiu, e o coro assombrado de repente calou-se com a ausência de sua regente. Dispersaram suas sombras, e uma horda de corvos ganhou a neblina lilás do céu.

Seu nome não era Milady.

– Quantos anos se passaram? - a bruxa quebrou o espelho do silêncio.

– Não sei. 200. 150. Chega uma hora em que todos paramos de contar - as palavras bem vividas dele não foram imunes dessa vez, e Milady pôde sentir o gosto do pesar por trás da resposta indiferente e cortante.

– Todos? Sou exceção... - a cauda espessa enrolava-se contra o pescoço do amante como uma forquilha, e seus olhos selvagens vagueavam a escuridão entrecortada pelas luzes das janelas suburbanas em busca de alguma resposta urgente. Seu nome não era Milady.

– Quem está de absolutismo agora?

A sombra de Milady refletia uma mentira, ou uma verdade, contradizendo a forma felina com uma silhueta de mulher e asas de demônio ganhando as costas – as do vampiro, atravessadas como lâminas de morte. Bastou um olhar imortal, e aquele encanto desfez-se como uma miragem inocente: a bela súcubo retomou sua forma de matança e sedução, e as mãos frias de ambos se perderam intimamente nos corpos brancos um do outro.

– Durante todo aniversário de sua partida... eu me masturbo com aquele crucifixo. Não há prazer, acredite. Faço questão da seda branca, nas vestes, nos lençóis, para garantir que no final estejam todos marcados com o sangue que perverteu com suas maldições e mentiras. Isso me ajuda a recordar... e odiar – segredou, frívola, a confissão quase um sopro. A mão forte do conde de outrora encontrou um seio, tocando-o diretamente até o mamilo se destacar, roubando seu calor – do modo como apenas ele sabia fazer, encontrar os atalhos que levavam à intimidade de seu corpo de fêmea fatal.

O vestido justo em couro dançava sob ondas de cetim negro, desenhando-se conforme o molde do corpo atraente de Milady. O festim de fechos e rebites de prata terminava numa voluptuosa dupla de pernas rendadas, tornando a fartura das coxas ora visível por uma fenda, ora oculta por uma longa triagem escura, como ciumentas sombras de galhos mortos. O salto pontudo das botinas altas perdia-se no abismo entre o solo barroco e a capela gasta, perfurando a escuridão até cegá-la, e a súcubo sorriu entre presas e vermelho ao sentir as fantasias alimentadas sob a pressão rija do sexo do necromante. A brancura absoluta da tez perfeita, um capricho ao qual se permite quando se domina muitos dos segredos do mundo, destacava o rubi dos lábios e as esmeraldas severamente delineadas, carregando a maquiagem sobrenatural. Os cabelos lançavam-se numa trança obsidiana contínua por cima dos ombros pálidos, como a noite engolfando a lua, e contornavam a cintura comprimida até perder-se no oásis alvo da costas e reaver sua majestade negra sob o colo de rendas cruzadas e cintos incrustados de inscrições em latim salmão; sempre caracterizada para matar – mas Milady não era o seu nome.

– De que outra maneira eu poderia fazê-la entender o dilema do ouriço? Já fora muito prestativo de minha parte convencê-la a incendiar o convento sem recorrer a métodos ortodoxos; recorda-se também dos gritos das irmãs durante o autoflagelo? Isso me interessa... – o amante de sangue remoeu, soltando um grasnado de prazer ao sentir a pele cedida e perfurada por unhas vorazes até o vermelho brotar. Seus caninos pontiagudos reluziam em prata, compensando a ausência de lua naquele céu esmorecido.

– Pois nota-se que, afinal, você não pode ver tudo – provocou-o, lambendo o gotejar da ferida que recém provocara. - Quanta dor fora necessário para tornar-se o monstro que é? Eu trocaria todos os meus refúgios para moldar-lhe a meu bel prazer, como um homem de barro. Seria interessante vê-lo como meu brinquedo mais rebaixado.

– Eu sinto, Milady... mas esse é um jogo que não combina a dois – ele a estocou, perfurando-a entre cetim e couro. A umidade entre suas pernas era quente como seus sonhos vagos de esquife o impediam de esquecer – como cera derretida.

As garras negras e afiadas da súcubo contornavam a face fria do vampiro, maculando branco em vermelho sob o gelo até chegar aos lábios descorados – arfante, ela tomou-os entre os seus, queimando-se, roubando o que lhe fora prometido há tantas luas, e agora tinha um sabor tão indefinido. As línguas dançaram com o ardor característico da vida enquanto as presas vampíricas duelavam entre si, intensas, e logo se fez presente um sabor que não lhe falhava como familiar: o sangue. A linha vermelha correu pelo pescoço nu até o busto crescido pelo espartilho, perdendo-se na montanha dos seios como um córrego fresco de dor. Afastou-se, e os caninos manchados denunciaram a mordida - as fendas no lábio inferior do necromante uniam-se num filete sanguíneo ao rubor carnudo da boca traiçoeira, e os mil olhos de Hórus das madeixas de treva da bruxa reluziram por um segundo de satisfação dourada.

– Não faz ideia, Milady, não faz ideia... - o córrego vermelho descia e ganhava o fraque, empapando-o. Mas o vampiro sorria – sorria contra o pescoço de Milady, suave, um perfume de viúva-negra à meia-noite.

O suspiro rouco de dor e deleite da filha de Lilith enredou-se à névoa da noite sem lua, perturbando o tecido do sono daqueles que manipulava; as presas cravaram contra sua carne, perfurando, e a abrasiva miscigenação de seu sangue exótico foi sorvida – mas as inúmeras vidas não poderiam ser pagas com a mesma moeda; essa tratava-se de uma outra barganha infernal. As lanças caninas de Milady rasgaram o vampiro em resposta, bebendo-o como um cálice de vida e morte, esvaziando-o entre a tênue linha da penumbra.

Seu nome não era Milady.

A volúpia vampírica se cruzava no laço de sangue, correndo pelos trejeitos da gárgula e tingindo o calcário da capela colonial com o milagre da maldição - e o curinga fazia jus ao título: algumas das teias se moldavam conforme a sua vontade, e de repente era o titereiro oculto de uma das muitas marionetes humanas.

Somente ele a chamava assim. Milady Vermelha.

(...)


Hiatus


– Eu pensei que veria suas asas, sabe. Como súcubo, asas.

Os vampiros confabulavam, Deli e Thorn, mestres lapidados em trevas, submersos nas entranhas de algum recinto secreto de estalactites de sangue. Os cristais tilintavam sozinhos, e o sépia das bebidas convergiam numa balada ociosa e triunfante.

– Não acredito. Já caminhou por essas águas, como todo sábio entre os imortais, e não foi bem assim. Asas? Claro que não.

– Mas comigo é diferente. Não sou um eterno apaixonado, sou? Se bem que... interpretamos muitos papéis quando as cortinas jamais se fecham.

– Até pouco tempo, sim. Não me faça lembrar. Lembrar é sempre trabalhoso. Por que tem que ser diferente com vampiros? Não me vê chorando pela morte de nenhuma de minhas esposas e escravos – apesar de eu mesmo ter sido o carrasco de alguns deles.

– Que seja. A ideia foi tecida no mundo onírico, é o que nos interessa. Em breve aquele incômodo rugoso também será um passado enterrado nas areias do tempo. Sua influência e melancolia bastarão para envenenar-se, sem suspeitas sobre nós, junto de uma dúzia daqueles aristocratas insuportáveis.

– Uma boa descoberta o gosto dele por garotinhos. Foi fácil criar um cenário de orgias e perdição – um sono pesado depois é sempre garantia, se tem algo que aprendi com os bacanais gregos.

– Uma família a menos. Esses paspalhos retrógrados. Grandes como somos, não optamos por sociedades declaradas - não declaradas, claro -, por que eles? É o que nos diferencia. A classe e a soberba das sombras. Será pedir demais uma eternidade sem idiotas?

– Há sempre alguém mais poderoso do que nós. Basta saber como eliminá-lo sem deixar rastros que nos apontem – ou, se possível, apontar para terceiros. Uma resolução de problemas em massa, quem precisa de lolis?

– I'IMMORTALITÉ!

Os lordes vampiros bravejaram, cruzando as taças e bebendo do elixir um do outro. As paredes não tinham ouvidos naquele lugar, e se o tivessem, sangrariam.

– Mas e sua súcubo? Terá um destino pesaroso, conhecendo os métodos daqueles velhos como conhecemos. Despertou seu lobo invernal novamente?

– Desculpe tê-lo deixado afora dessa parte do plano, irmão. Não podia correr o risco de seu sadismo falar mais alto – teu oportunismo em situações extremas de perda íntima geralmente acaba comigo em seus lençóis sem lembranças nexas do último ano.

– Perdoo-o, sem julgamentos. Compreender e perdoar. Confesso que o coração de rinoceronte sob o membro viril foi um pouco excessivo de minha parte.

– Sim... foi. Pois bem - não foram as únicas teias que teci essa noite.

“Nunca acharão alguém com a alcunha de Milady Vermelha, eu garanto.”


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