Uma Música De Treva E Sangue escrita por Rivotril


Capítulo 4
O criador de bonecas


Notas iniciais do capítulo

- Ponto de vista: Akira Miura; 1ª pessoa.
— Sim, é Glen ou Glenda.
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Sempre tive um fascínio cego por bonecas. Desde marionetes rústicas de madeira aos pomposos sopros angelicais de porcelana. Não foi fácil, durante a infância, esconder esse prazer pouco usual entre garotos. Como não poderia deixar de ser, naquele distante e conturbado oriente, meu mundo de cachos e bordados sangrou-me com a pesada mão da punição paterna quando descoberto. Sem ressentimentos, pois é assim quando se é criança, os pais regem o destino dos filhos como a aranha tece a teia – mas as armadilhas de moscas também estão lá, e não somos avisados disso. Claro, ter enterrado os meus ainda vivos ajudou em grande parte na aceitação - Freud estaria orgulhoso. Não que eu os culpe por todas as decisões erradas que tomei até o clímax da tragédia, isso seria um repudio de imaturidade – e uma imortalidade imatura é cancerígena. Além de que, claro, isso tiraria o mérito de meu triunfo. Entre perdas e erros, dos mais neutros aos preferidos da teoria do caos (posso ensinar-lhes como borboletas no Brasil provocam tsunamis em Tokyo, se quiserem), o topo, eventualmente, foi escalado – e os degraus manchados de sangue puro até o cume de crânios estacados têm um sabor sem igual. Mas, para esse vampiro que conquistou tudo, as bonecas ainda têm seu valor - literalmente.

– Você será um anjo especial, criança. Eternizarei sua beleza.

Bach instaura o recinto escuro e úmido com seus violoncelos mágicos, e pouco ouço do lamento das meninas – quase um sussurro distante, um afago de inocência e dor na doce melancolia da terceira suíte orquestral. Teço o silicone com maestria cirúrgica, e a boneca encara para nada em específico com olhos vazios. Desço um dedo em riste por sua face de lua, e sorrio ao atestar a maciez impecável da tez e a rigidez maxilar, como se ainda tivesse todos os dentes. Os caninos são sempre um problema, pois o fator vampírico insiste em reconstituí-los de um dia pro outro, o que pode comprometer a integridade física dos clientes – evitar intempéries como essa é muito menos trabalhoso do que eliminar um cliente insatisfeito. Um negócio comprometido é um negócio comprometido, pois a moeda da vida, o sangue, não é a única a circular no mundo dos vampiros. Posso ir a uma loja de conveniências, quebrar o pescoço do atendente e sair sem pagar pela barra de cereais. Mas, para isso, teria de desaparecer com quaisquer indícios de evidências que levassem a mim – possíveis testemunhas, uma criança desavisada, um velho perambulante, um pedinte fétido –, lidar com o interditamento de minha loja de conveniências favorita pela próxima semana e o rebuliço das câmeras de segurança com um inexplicável caso de assassinato por força invisível registrado – sombras de um ídolo muito antigo que somos, chamar a atenção para nossa escuridão significa evocar a última alvorada de cinzas. Dinheiro é um facilitador, e nos afasta da barbárie - vampiro, humano, macaco, no fim, pouco importa quando se pode pagar mais. A solução para esse inconveniente é uma pasta âmbar feita por encomenda na Humpty Dumpty Circus, que cessa a regeneração das insistentes presas de morte das minhas preciosas com uma eficiência miraculosa. Cada vez mais custosa, sim, mas bem poderia ser composta pelos fetos de meus filhos, ainda valeria o preço e meu gozo. Ademais, o lucro líquido acaba por me forçar a ignorar o abuso crescente desses parasitas – procedimentos cirúrgicos, equipamentos, artes ocultas, contatos, substâncias de origem científica ou mística... tudo – tudo - é custeado com ampla margem de folga pelo preço de mercado que imponho em minhas lolitas - afinal, elas não envelhecem, e isso tende a ser caro.

– Oh, não... não... não sorria.

Injeto contra o pescoço diminuto da boneca sua dose de fentanil daquela tarde, uma potencializada para equídeos – para as humanas, a morfina basta. Certa vez, por puro sadismo, apliquei-a nas marcas de beijo do vampiro de uma das pequenas, e observei que os efeitos foram intensificados. Desde então, assim o faço. O problema é quando são mordidas nas partes que serão amputadas – pulso, antebraço, panturrilha, todas essas descartáveis -, mas um pouco de dor excessiva, quando se trabalha com objetos de prazer, é uma experiência de engradecimento de obra – aponte-me um querubim, e despertarei a besta adormecida em seu coração; o mundo é o altar dos sádicos, uma triste verdade de partir o coração. Aos poucos, o sorriso de lábios se desmancha, e a inexpressividade volta a tomar conta da tela em branco de seu rosto. O sorriso, em muitas delas, é a resposta desenvolvida pelo corpo – o pouco que lhes restou - quando o efeito do coquetel de drogas está passando. Não quer dizer, necessariamente, que estão gostando - as sensações se confundem depois de muito se mexer dentro da cabeça de qualquer um. Bagunce os neurônios certos de algum desafortunado, e inverterá comandos básicos seus, como cumprimentar na volta e despedir-se na ida, ou, dependendo do que procura, esse terá a desconcertante dificuldade de ir ao banheiro sozinho até o fim da vida.

– Shh... shh.. certo... certo, princesa. Sem traços de emoção, é uma boneca, lembra? Papai está orgulhoso – rompo a linha de silicone com o gume do canino, e a última prótese está colocada. Todos os quatro tocos de seus membros ausentes enfeitam-se com detalhes de couro e fios de prata terminando em correntes, tudo em negro compacto, e os aros para ganchos anexados ao osso cerrado, a parte mais trabalhada das próteses, é uma reprodução da figura em pânico de O Grito de Munch – um cliente de gosto rebuscado, esses adorados desafios.

“Eu te amo”, diz a boneca, sua confissão mais íntima, o desejo de um conto de fadas, somente para mim – mas não passa de um fruto da minha doente. Ela não fala, não enxerga, não ouve – ainda sinto a textura de suas cordas vocais em meus dedos, seu calor se esvaindo, dando lugar à frieza de uma pintura de natureza morta -, garanti para que não; recriei-a sob meu direito pois sou o que sou, um gênio da criação. Abraço-a num impulso emotivo, envolvendo a fagulha restante de sua existência em meus braços paternos – e ensanguentados. Revela-se uma má ideia, pois maculo sua perfeição michelangela com a vulgaridade ainda fresca em meu grosseiro conjunto de açougueiro – as mechas e os cílios louros de ouro tingem-se de vermelho, e o rosado dos lábios e auréolas tornam-se meros borrões, emprestando-se da balbúrdia carniceira do avental e luvas de borracha. Uma risca de sangue liga um mamilo aos rechonchudos lábios de baixo, contornados numa maquiagem de tentação, deslealmente excitante, e de repente me vejo descendo o zíper das calças afobadamente, tomado pelo complexo de lolita.

– Mestre, mestre!! - uma maldição me interrompe, Glen, um assistente necessário – e servo de sangue. Recuso-me a torná-lo um de meus filhos da noite, mas a tola esperança em vãs promessas faz dele um criado fiel. Mestres em TI são cartas cruciais para efetuar as transações com que trabalho no conveniente sigilo de bitcoins e labirintos de camadas virtuais criptografadas, e nada mais apropriado do que um treinado por mim mesmo – não posso estar em todos os lugares ao mesmo tempo... ainda.

– Pelo inferno de Dante, o que é? - arfo, transbordando aflição contra a máscara cirúrgica, contrariado por ser perturbado em meu ritual – uma molestação que não tolero tão afavelmente, e seria bom para Glenda ter um motivo razoável.

– Um cliente, mestre! Disse ter levado sua boneca para tomar um banho de sol matutino e... bem... ela explodiu, um horror! Está furioso em uma das chamadas, exigindo uma posição sua, meu senhor! Parece um demônio! - sua saia escocesa balança com a euforia com que invadiu meu santuário criacional, e a caveira de Misfits por trás do macacão xadrez assume formas aleatórias sob a ferrugem do cabelo; o mesmo pensamento me ocorre toda vez em que aquelas sardas se assomam para mim: “muito velha”.

Silvo uma praga de ranger seus dentes metálicos, e lembro a Glen quem é o demônio.

– Mas que tipo de idiota leva uma loli vampira para tomar sol? Ponha-o no viva-voz, antes que eu redirecione minha raiva para sua garganta – e não me refiro a sugá-la.

– Sim, m-mestre... – Glenda realiza comandos mecanicamente em seu teclado digital - e a nova combinação de códigos é gerada. Removo a máscara enquanto a breve microfonia se dispersa. - ...contanto que o satisfizesse... eu não importaria... – ignoro seu comentário submisso, afagando compenetrado uma barba imaginária. Então, o alarde.

O sinal criptografado se sobrepõe aos violinos pesarosos de Bach, e a cacofonia esganiçada e atropelada traga consigo, engolindo palavras no idioma comum com um italiano carregado, de repente me acorda para o cenário mórbido da sala de concepção: as goteiras intercalam-se à escuridão penumbral daquelas paredes vermelhas enquanto o inglês irregular martela dentro de minha cabeça, e reluto ao ver a garota nua e mutilada diante de mim – já não parece uma boneca, mas sim um erro, um pecado.

– Miura!! Miura, é você, Akira Miura? Akira Miura, está me ouvindo? Seu filho da puta, que tipo de escrava sexual custa um milhão e explode como uma bomba relógio?! Se eu a estivesse fodendo na hora estaria com o pau carbonizado, nunca corri um risco tão grande por tanto dinheiro! - reconheço-o como um cardeal influente e de fantasias caras, dentre tantos outros da lista de sodomitas.

O asco me domina, e esse se revela um segundo muito longo – ouço choros e prantos infantis em línguas diversas, outrora ocultos pela sinfonia de Bach. No entanto, logo o volume em minha calça volta a palpitar, rijo como como uma lâmina samurai, e, do formigamento, uma gota de prazer – é o segundo seguinte, com a terceira suíte orquestral em peso infinito. Imagino como será minha próxima criação – cachos ruivos, lábios grossos de mulher, glúteos empinados, talvez? Em grande parte, dependerá da origem do novo carregamento de órfãs – a Europa é minha favorita. Guardo a lembrança do segundo perturbador em algum canto recluso da mente, e prossigo – é preciso barganhar com a imundice.

– Tezelle, Tezelle. Que exaltação é essa, meu bom cardeal? Tezelle... sol? Francamente.

– A garota estava muito branca, Miura! Ela precisava de uma cor, por Deus, me sentia um necrófilo! - sua encomenda: uma tailandesa de olhos azulados, pele amendoada e cabelos escorridos de negro. Nada muito complicado – e, agora, uma pilha de órgãos sob um gordo de 80 anos, ou cinzas ao gramado, depende de como o beijo das crianças de Apolo lhe foi dado.

– Ela era uma vampira, Tezelle, seu idiota. Natural a pigmentação escassa da pele – tão natural quanto entrar em combustão sob contato com a luz solar. E necrofilia deveria ser um sentimento esperado, enfim.

– Pros diabos, Miura! Quero meu estorno, e o quero agora! Não vou sair num prejuízo desses, me arrisquei demais ao desviar essa quantia dos cofres do Vaticano! Meu corpo jurídico, eles irão...

– Morrer - junto de suas famílias, imagino? Veja bem, Tezelle... não pode reclamar da estrutura de nosso contrato – nele está escrito em letras garrafais bastante expressivas o que pode e o que não pode ser feito, e o tipo de estupidez que significa a sua cabeça numa bandeja polida em meu café noturno. Aliás, cá estou imaginando o melhor tipo de arma para se degolar um cardeal – uma foice seria tão clichê, mas todos apreciam um clichê bem empregado, e comigo não é diferente.

– Miura! Não ouse, Miura... Miura, não, por favor... pelo menos 50%...

– Deveria ter continuado com seus meninos de saia. Sim, deveria. Sayonara, Tezelle-kun.

Um estalo de língua, e encerro a penosa transmissão. Ainda ouço a respiração entrecortada de Glen, e com um relance frio ele entende o que deve ser feito – os contatos a quem recorrer, as ligações prioritárias e os favores a serem cobrados. Antes de retirar-se após a embaraçada reverência, chamo sua atenção:

– Tem bebido bastante líquido, Glenda?

– Sim, Akira-sama. De meia em meia hora, meu corpo está sempre reposto – como me orientou.

– Ótimo. Mariana demonstrou interesse em sugar-lhe novamente. É realmente agradável essa sua devoção, Glen – continue assim. Não gostaríamos que aquele episódio fatídico se repetisse - nenhum de nós. Sabe o quanto é trabalhoso preparar alguém como o fiz com você.

– Perfeitamente, meu mestre.

– Preciso de um banho, minha preciosa – segredo, mas não para Glenda.

Estamos a sós novamente, arquiteto e escultura. Pincelo-a com a língua, contornando cada canto seu maculado de vermelho. Perco-me num mamilo, no clitóris – quando sinto o gosto do sangue escapar pelos poros, cesso a sucção violenta, recuperando o controle. Ao terminar, seu corpo está reluzente de saliva, como porcelana viva. Dispo as luvas, e encho suas madeixas claras com dedos sobressaltados. Arrasto-a pelo solo como um homem-das-cavernas ao conquistar sua fêmea, e dirijo-nos para uma porta entreaberta, aos fundos. Adentramos um aposento parcialmente ilustrado por luminárias púrpuras , o teto repleto de silhuetas, essas ganhando corpo como bruxas na forca; eis meu requintado quarto dos horrores: cerca de meia centena dessas bonecas, gêmeas em essência e propósito da que trago rusticamente pelo couro, guinchadas tais como carne refrigerada, prontas para o consumo. Os cabelos de algumas estendem-se cintura abaixo, por onde o corpo termina, pendendo em tons variáveis - uma dança macabra de arco-íris. Os traços faciais sem padrão denunciam as etnias diversas – germânicas, orientais, africanas, latinas -, e as insígnias presas ao pescoço computam os dados de maior relevância de cada uma. Suas próteses de silicone aguentam bem o peso do corpo, redirecionando-o para elas, e os ganchos envolvem os aros personalizados sem remover–lhes osso afora – um engenho de se gabar. Prendo a mais recente peça de meu talento – O Grito de Munch - sob um gancho, suspendendo-a como as outras, e despeço-me ejaculando em suas trompas vazias e estéreis, como um selvagem que marca o território.

– Para as fontes termais.

(…)

– Pedo-sama, Pedo-sama!

– Sim, criança?

O vapor e o calor acalentam minhas raízes, e entrego-me a um bem merecido torpor de relaxamento nas fontes termais no subterrâneo de meu palácio. Beberico do saquê em concha, enquanto uma loli faz do mesmo em minha intimidade sob a água escaldante. Conto os segundos, já passam dos 200, e ainda sinto seus lábios brincarem com meu prepúcio, porém mais intensamente – talvez por um início de afogamento. A de sotaque francês gracioso pula energicamente em minhas costas, laçando-se sob mim com braciihos carinhosos – me pergunto como ficaria em minha mesa de cirurgia.

– Quando vai me levar pra conhecer o mundo, Pedo-sama? - ela esfrega os pequenos seios contra mim, esperando persuadir-me carnalmente.

– Oh, mas de novo essa pergunta, Paris-chan? Será que está com saudades das punições no quarto-purpurado? Deve-me uma chibata de couro ainda, sabe, da última vez. Seu traseiro cegou a minha – esnobo-a entre um saquê e um cacho de uvas.

– Pedo-sama é tão malvado, nhu!

As bolhas se precipitam em meu colo, e empurro a loli oculta de volta para seus afazeres quando tenta escapar. Seus braços e pernas lutam, debatem-se contra as águas, tão pequenos – mas sou muito mais forte. Todas riem, chutando ondas, molhando umas às outras, apontando para a colega que se esvai. Aos poucos, o desespero às cegas diminui, e ela percebe que o melhor é se entregar. Paro de contar os segundos, e a francesa morde meu pescoço com caninos travessos – sua irmã está morta. Solto-a, e o corpo afogado flutua nas termas, sem nome e sem destino. Parece uma boneca.


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