Nerikia - Arco I escrita por Rauker


Capítulo 4
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Acabei demorando cinco semanas para atualizar a história, e prometo que irei me esforçar para manter uma periodicidade de 4 ou até 3 semanas.

Estou preparando um blog para a série onde postarei, além dos capítulos, outras informações relevantes. Ele deverá ser lançado até o final do mês.

Enfim, boa leitura! :)



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A primeira existência sente a segunda e vice-versa

Somente assim esta e aquela podem existir.

Mas quando uma delas se extinguir

Mostrar-se-á a verdadeira realidade perversa.

— Mirella Greime.

Nenhuma voz respondeu, e o próximo nome foi seguido por um sonoro “presente”. Érika olhou de soslaio para Anna e Priscilla, ambas, uma atrás da outra, na fileira ao lado. Pouco antes da turma se aquietar com a chegada do Professor Élder, elas discutiram a respeito do falso remetente que convencera Mirella a ir até o clube de Teatro. Érika ficara mais intranquila que as amigas, probabilizando as piores situações, desde um encontro imprevisível com um rapaz secretamente apaixonado até uma pregação de peça de Violleta, cuja rivalidade e antipatia por Mirella principiara nos primeiros anos de vida acadêmica. No final, o trio feminino não chegara à conclusão alguma sobre a pessoa ou grupo envolvido nesse encontro, nem Willian, que pouco participara da discussão por estar concentrado demais em sua escrita criativa.

Ao finalizar a chamada, o Professor aprumou-se da cadeira e atraiu a atenção dos alunos para o quadro negro. Élder era um homem calvo, de rosto comprido e adornado por uma cicatriz que começava na testa, descia à esquerda do olho, e terminava na bochecha. Às vezes isso lhe dava uma expressão mais séria da que realmente esboçava, mas não era o tipo de Professor que exigia severamente dos alunos.

Ele desenhou um círculo, depois um círculo concêntrico, com metade do diâmetro do primeiro, e um terceiro bem pequeno dentro do segundo. Em seguida, dividiu o segundo círculo em quatro partes congruentes, sem riscar o interior do última circunferência, deixando esta última incólume. Feito isso, abotoou o último botão de seu blêizer cinza, ocultando a camisa alva e parte da gravata verde, enfiou as mãos nos bolsos da calça, cuja tonalidade cinzenta era mais forte que a do blêizer, e começou a lecionar de maneira bem direta, com a voz pausada e segura.

— Recapitulando o que vimos na última aula, Nerikia é um território de formato perfeitamente circular e envolto pela cordilheira Leviatã, nossa principal defesa natural contra as Terras Decaídas e os países onde residem outras raças mágicas com as quais sustentamos relações pacíficas, na medida do possível. No mapa que vocês têm em mãos, as linhas em vermelho indicam a jurisdição de cada região de Nerikia, cinco no total: o Norte, o Sul, o Leste, o Oeste, e a Capital cujo formato circular está centralizado entre essas quatro regiões. — Élder apontou para o desenho na lousa — Sabe-se que há três séculos…

A voz docente foi extinguindo-se na mente de Érika. Seus olhos verdes fitavam o tampo branco de sua mesa, uma brancura que estimulava inúmeras probabilidades. Ela queria pensar da seguinte maneira: “Não é nada de mais. Depois da aula iremos nos encontrar e ouviremos o que aconteceu, quem sabe até rir do que aconteceu.” Mas um pressentimento ruim borrava esse corriqueiro final. Algo de extraordinário poderia estar em curso, algo imprevisível, algo em que Mirella carecia de ajuda para se safar, enquanto ela se conformava com as lições de Élder.

Decidida, procurou os olhares das amigas para expressar silenciosamente o que faria em seguida. Anna e Priscilla assentiram com a cabeça e, simultaneamente, o trio recolocou folhas, cadernos e canetas de volta nas pastas de couro. A ação foi percebida pela turma inteira — pouco menos de vinte alunos —, e o Professor continuou a aula como se não se importasse com a iminente saída delas. Priscilla demorou-se um pouco mais e olhou para o jovem de cabelos castanhos e bem penteados que também estava a par da situação.

— Você não vem, Willian? — sussurrou ela.

— Prefiro beber de um bom mistério — respondeu ele.

Pelo o que Priscilla conhecia dele em cinco anos de convivência acadêmica, já era uma decisão esperada. Willian desenvolvia sua curiosidade pautando-se no “mistério das coisas”. Pelo menos, foi o que ela e as amigas deduziram com base nas palavras do próprio Willian, quando lhe perguntaram sobre certa noite em que ele as encontrara — Mirella, Érika, Anna, Priscilla e mais algumas outras meninas — dormindo às escondidas na biblioteca, altas horas da noite, e não quisera saber o motivo: “É muito mais salutar a minha criatividade não saber a verdade, pois a verdade extingue outras verdades”. No dia seguinte àquele, Willian mostrara a elas uma significativa quantidade de poemas e contos escritos a partir do mote “mistério das amigas dormindo secretamente na biblioteca” e nunca quisera saber o que, de fato, estiveram fazendo.

Priscilla sorriu para o colega e alcançou o grupo no corredor. Érika, um pouco na frente, liderava a passada.

— Vamos para o clube de Teatro. Não passou muito tempo desde a hora do encontro. Talvez a Mirella ainda esteja por lá.

As meninas, então, saíram do Bloco D e tomaram a pérgula através do jardim. Nesse caminho, avistaram, andando na direção oposta, um grupo peculiar de cinco garotas lideradas por uma jovem que despertava aversão no trio. Era Violleta. Ela tinha os cabelos cor de carvão com mechas cobrindo-lhe os olhos cujo lilás de tonalidade forte parecia ser excitado pela escuridão das madeixas. A fisionomia exalava um ar de superioridade gratuita, e arrogância, quando necessário. O corpo era tão bem curvado e preenchido quanto o de Priscilla, particularidade arrematadora para chamar a atenção do sexo oposto. Quase nunca usava o blêizer escuro, preferindo mostrar sua camisa branca desabotoada até um pouco acima dos seios para formar um decote atraente. De certo ponto de vista, soma-se isso ao seu olhar sensual e o jeito atirado em relação aos homens, e tinha-se uma…

— Ei, piriguete! Você viu a Mirella por aí? — inquiriu Érika, desconfiando que a outra pudesse estar envolvida com o recadeiro.

— A encalhada? Já procurou nos banheiros? Ela adora choramingar por lá — retrucou Violleta com um sorriso debochado.

“Pra que fui perguntar?”, pensou Érika, passando pelo grupo, em silêncio, alvejada pelas seguidoras de Violleta que davam risadinhas. Se Violleta realmente não tinha nada a ver com o caso, não valia a pena perder tempo com aquele tipo de gente. Só importava saber em que enrascada a Mirella se metera. Ela e as amigas continuaram o percurso e finalmente chegaram ao clube de Teatro.

Érika girou uma das maçanetas da porta dupla. As três entraram no recinto e encararam a solidão dele. Nem sinal de Mirella ou de qualquer outra pessoa, apenas cadeiras dispostas em arco do lado esquerdo.

— Será que foram pra outro lugar? — perguntou Érika.

— E se ela não encontrou ninguém aqui? — supôs Priscilla, que recebeu a resposta de Anna:

— Ela teria retornado à classe se não houvesse encontrado alguém. Acho que ela não mataria aula.

— Em suma, não sabemos onde ela está — disse Érika, frustrada. A ausência de Mirella lhe dava calafrios por algum motivo.

— Só nos resta uma opção — disse Anna, aproximando-se de uma das cadeiras. Sob olhares curiosos, ela retirou um recadeiro da pasta de estudo. Érika e Priscilla compreenderam. — Os pássaros de papel conseguem identificar o nome do destinatário no alcance de um quilômetro. Esse raio compreende todo o campus e os quarteirões adjacentes. Não se passaram nem vinte minutos desde que ela entrou nesta sala. Então, se ela ainda estiver na Academia, iremos achá-la.

Anna não viu necessidade de inserir o nome das remetentes, pois Mirella certamente adivinharia, e escreveu uma breve mensagem dizendo que sabia sobre a farsa daquela mensagem e que queriam saber onde ela estava. No final do recado, escreveu o nome da amiga no campo indicador do destinatário e esperou. O papel começou a dobrar-se rápido e sucessivamente como se invisíveis mãos exímias na arte do origami, em quatro segundos, fossem capaz de criar um pássaro. E tão logo concebido, o pássaro adejou e elevou-se à altura dos olhos de Anna. No entanto, diferente do que aconteceria normalmente, que era a ave de papel rumar por conta própria ao destinatário, ela começou a se desfazer no ar e caiu sobre a mesa, regredindo novamente a uma simples folha de papel.

As garotas olharam incrédulas para o recadeiro incapaz de ser entregue.

— É sério mesmo? — Érika franziu a testa. — Isso significa que a Mirella está fora da zona de alcance, não é?

— Ela não está na Academia — concluiu Anna, tão confusa quanto às demais.

— Deixem-me tentar uma coisa — disse Priscilla, colocando sua pasta de couro sobre uma das cadeiras. Um pouco apressada e até meio nervosa, retirou um estojo de plástico e um mini-borrifador.

— O que vai fazer? — indagou Érika, que diferente da amiga, entendia muito pouco de poções para saber que utilidade aquilo teria na atual situação.

— Confirmar se a Mirella esteve mesmo aqui. — Depois de responder, Priscilla pegou no estojo um tubo de ensaio vazio e outros contendo líquidos que só ela ali conhecia. Sob a atenção das amigas, desarrolhou os recipientes e, com um conta-gotas, depositou duas quantidades de cada líquido no tubo de ensaio vazio; tudo isso com a destreza esperada de uma estudante que era a melhor aluna em Poções na Academia de Merovinch.

— Está misturando essências de Aura — observou Anna, que, embora fosse desastrada nas aulas práticas de Poções, conhecia bem a teoria.

Após a combinação das sete essências de Aura existentes, Priscilla notou a mistura apresentar-se branca, parecendo leite. Por último, tirou um fio de cabelo escuro de dentro de um saquinho. Durante as aulas de Poções, algumas vezes os alunos tiravam fios de cabelos dos colegas para preparar poções específicas. E Priscilla sempre os guardava para ocasiões oportunas como as de agora.

Com a poção pronta, despejou-a no mini-borrifador e pôs-se a salpicar o ar. As porções globulosas flutuaram no ambiente, quase imóveis, sem desaparecerem. Cuidadosamente, a jovem foi impregnando a sala, até que finalmente parou ao lado das amigas para checar o lugar.

— Agora só precisamos aguardar alguns instantes.

— Priscilla… o brilho lilás significa a presença da Mirella, não é? — arriscou Anna, enquanto os grânulos despencavam lentamente.

— Exato.

— Como assim? Me expliquem — pediu Érika, e Priscilla o fez:

— Eu fiz uma poção uno rastreadora. Ela absorve as ondas de Aura mais recentes que uma pessoa específica deixou no local. Assim podemos descobrir se a Mirella passou mesmo por aqui.

O trio aguardou um minuto, expressões ansiosas. Quase todas as gotículas tocaram o chão, brancas.

— A Mirella… nem entrou nesta sala — concluiu Priscilla.

— Talvez tenha encontrado alguém na porta e saído com ela — sugeriu Anna.

Priscilla considerou a hipótese e caminhou até a entrada. Seguida pelas adolescentes, ela borrifou o restante da poção no limiar do recinto e numa parte do corredor. Dessa vez, não tiveram de esperar muito por resultados.

— Olhem! As partículas se tornaram lilás. Com certeza a Mirella parou no limiar da sala.

A pista elevou o ânimo do trio. Priscilla fez uma nova poção uno rastreadora e começou a borrifa-la pelo corredor. A intenção era seguir o percurso que Mirella fizera após chegar à sala. A poção não deu resultado no lado direito do corredor, o que dizia que a jovem voltara para o saguão. Contudo, os grânulos cessaram a coloração lilás na metade do caminho até lá.

— O que aconteceu, Priscilla? Por que não está fazendo mais efeito? — perguntou Érika.

— Eu também não entendi. Isso acontece quando se passa muito tempo desde a presença da pessoa. Mas, pela lógica, o rastro deveria continuar.

— Se for mesmo isso, talvez estejamos vendo a trilha antes de a Mirella ter chegado à sala. — deduziu Anna.

— Então onde está a trilha que procuramos? — perguntou Érika.

— Se ela não seguiu corredor adiante e voltou por esse caminho, ela pode ter entrado num dos outros clubes.

Durante o exame da Aura de Mirella, elas passaram pelos clubes de Pintura e de Xadrez, mas ambos se encontravam fechados. Sem novas pistas, a motivação do grupo esmoreceu.

— Gente… — Érika chamou a atenção das duas e, meio hesitante, com a fisionomia preocupante, continuou: — Não sei vocês, mas desde que eu soube que aquela mensagem era falsa, eu… Pode ser que eu esteja me preocupando à toa, mas estou com um mau pressentimento. Penso se algo de ruim não aconteceu com a Mirella.

— Nem diga uma coisa dessas! — ralhou Anna, mas acabou confessando em seguida: — Se bem que… eu também sinto algo parecido.

— Então somos nós três — complementou Priscilla, e o grupo mergulhou num clima sombrio.

— É estranho — Érika voltou a dizer. —, mas sinto como se a Mirella houvesse… sumido. — As outras confirmaram a mesma impressão.

— Agora me veio uma história à cabeça — disse Anna. — Não lembro muito bem o ano, talvez sete ou oito anos atrás. Na época, minha mãe lecionava na Academia de Belmovich. Houve dois casos de desaparecimento nessa Academia. Os estudantes receberam um recadeiro de remetente falso pedindo para que fossem a um determinado local. Depois disso, eles ficaram ausentes por quase um dia inteiro, ninguém sabia do paradeiro deles. E, quando finalmente encontrados, desacordados em algum recanto do campus, disseram não se lembrar de nada do que havia acontecido. Nem mesmo da pessoa que supostamente os havia sequestrado. E, não tenho certeza, mas acho que nunca descobriram o responsável. Esse começo é bem parecido com o caso da Mirella…

— Está me deixando assustada — repreendeu Érika.

— Independente disso, estamos de acordo que alguma coisa ruim aconteceu com a Mirella, não é verdade? Nós sentimos isso… todas nós.

— Sim, a Anna tem razão — disse Priscilla. — É melhor levarmos isso a sério, só por precaução. No final, pode não ser nada, mas, por enquanto, precisamos saber onde está a nossa amiga.

— Devemos procurar o Diretor? — perguntou Érika.

— Seria nossa melhor opção — Anna concordou, e Priscilla anuiu em seguida.

A sala do Diretor situava-se no próprio Bloco A. Elas se dirigiram até a ala norte do edifício e chegaram a alguns lances de escada que davam para o quarto andar, o único existente no campus, pois os demais prédios possuíam apenas três níveis. Instalavam-se ali os aposentos do Diretor, Professores e outros funcionários importantes. No único corredor desse andar, o carpete prateado oferecia aos pés uma maciez e conforto que não se equiparava a qualquer outra tapeçaria na Academia. As paredes brancas causavam enorme impacto visual, enalteciam um clima de pureza e respeito nos estudantes. As portas ao longo do corredor eram de madeira clara para serem conjugadas harmoniosamente com o tom inocente do lugar. Janelas ogivais à esquerda iluminavam o cenário de cinquenta metros de comprimento.

O trio parou no meio do corredor, de frente a única porta dupla que existia ali. Ao lado, pregada à parede, uma placa de metal retangular continha, em duas linhas, a seguinte inscrição em letras douradas: “Sala do Diretor” “Roland Lempe”. Como Diretor da Academia de Merovinch, a cidade-central da Região Sul de Nerikia, Roland era recente no cargo e o mais novo a assumi-lo. Mas por ser reconhecido pelos estudantes devido aos seus feitos heroicos no passado, ganhou facilmente a confiança e a simpatia de todos.

Elas hesitaram em bater à porta, cientes de que só deveriam levar ao conhecimento do Diretor casos extremamente relevantes. Como não havia nenhum Mago desempenhando um papel que zelasse pela segurança dos alunos, afinal, raramente algo de ruim acontecia no campus, tendo em vista que cada um sabia cuidar bem da sua vida e inexistiam atos extremos de violência ou ilegalidade, apenas os Professores e o Diretor poderiam fazer alguma coisa importante. Um possível caso de sequestro era de raríssima ocorrência.

Quando Érika finalmente ergueu o braço para três leves batidas na madeira, o grupo escutou uma voz abafada do outro lado da porta.

— Há indícios na floresta de Tantar. Não é muito longe. — Elas reconheceram prontamente a voz do Professor de Combate Mágico, Zailon Roskel, e mantiveram-se paradas, curiosas, espionando a conversa.

— Se um indivíduo ou grupo chegar aqui, sentirei a aproximação. — Era o Diretor.

— Não querendo subestimar seu Faro Emocional, Roland, mas devemos ser precavidos. Pode ser que algo passe despercebido embaixo do seu nariz…

— Espere. — À voz de Roland, a porta fez um “clic” e a aba direita dela moveu-se para dentro, rangendo, estuporando as feições das adolescentes que viam, na revelação do recinto, além do Professor Zailon, um homem sentado numa mesa ao fundo. A atenção delas recaiu instantaneamente em seus refulgentes olhos de turquesa a mirá-las.

— Fiquei me perguntando a razão de ter farejado uma alta concentração de ansiedade atrás da porta.

* * * * *

Dedilhando as capas de discos arranjadas na estante, enquanto os olhos conferiam os títulos dos álbuns, Fillip Karvic era assaltado por uma dúvida singular que somente os mais sensíveis à arte podem experimentar.

—O que vai ser dessa vez? Mais cedo eu toquei Vivaldi. Deixe-me ver, faz um tempo que o campus não ouve Chopin.

Ele pegou uma capa branca com a imagem de algumas teclas de piano na margem e sentou-se em sua cadeira giratória sem repouso para os braços, uma vez que seu corpo rechonchudo ficara preso quando sentara numa com braços. Diante dele, sobre a mesa, uma profusão de partituras espalhadas evidenciava sua ocupação, somente interrompida nos instantes de necessidades básicas ou quando cumpria a tarefa de ressoar as melodias no campus. Seus olhos negros as estudavam com a mesma acuidade de um leitor discernindo as sutilezas de um texto literário, alisando esporadicamente a barba por fazer. Olhos negros porque Fillip Karvic não era um potencial Mago, um nerikiano nato, e sim um Nômago, um indivíduo deficiente de Aura. Com seus 17 anos poderia estar estudando junto aos demais alunos da Academia, mas havia uma Escola para Nômagos em Merovinch, que tinha todos os cursos ministrados na Academia, exceto aqueles que envolviam magia. Estudava no período da tarde, e as manhãs eram destinadas a sua Tarefa Social: tocar as músicas de recesso no campus. Era um serviço bastante simples, mas realizado apenas por quem amava Música Acadêmica, e Fillip aproveitava todo o tempo matutino para aprofundar ainda mais seus conhecimentos musicais. Às vezes ia até a biblioteca para caçar alguns livros, visitava com frequência alguns dos clubes de Música para tocar um instrumento e interagir com os outros. Era obrigado a fixar um recado na porta dizendo para aonde se dirigia, caso alguém resolvesse procurá-lo, quando deixava a sala musical, seu local de trabalho, um recinto retangular e espaçoso para uma única pessoa, meio abarrotado com materiais referentes à primeira arte, mas bem aprazível para quem gosta do tema. Seu horário de trabalho encerrava-se após o recesso mediano: o segundo intervalo das aulas, em outras palavras, o horário do almoço, quando ele tocaria uma melodia (mais longa que a do primeiro intervalo) por mais ou menos quinze minutos.

Fillip pôs a capa do disco de vinil na ponta da mesa e voltou-se para as partituras. Restava-lhe tempo até a hora de colocar o disco na vitrola, localizada no canto direito da sala. Esse aparelho aurático, ou seja, operado à base de Aura convertida e condensada numa bateria de longa duração, era bem arcaico, datado de dois séculos passados. Havia modelos mais eficientes, porém, a presença de uma relíquia naquele âmbito era bem vista pelos operadores de recesso como Fillip. O som era reproduzido através de uma gema mágica implantada na traseira do aparelho. Pelo campus havia gemas irmãs acopladas às caixas de som que reproduziam a mesma melodia.

Quando Fillip escutou a porta se abrindo, com a visão focada nas partituras sobre a mesa, imaginou algum integrante do clube de Música querendo lhe falar. Mas ao erguer os olhos para a entrada da sala, congelou diante da figura eminente batendo suas botas no chão amadeirado. A túnica branca de bordas escuras, fechada em torno do peito, exibia um losango azul cuja dimensão principiava da gola, riste em torno do pescoço, e terminava na altura do coração. Um risco negro e graúdo no tecido sobre a região da clavícula estendia-se até o ombro. O comprimento da túnica tampava-lhe o joelho, mas era aberta abaixo da cintura, deixando a calça escura de algodão à mostra. Esse era o tipo de traje característico de um Mago de alta patente, um Grão Mago.

Fillip notou também três adolescentes entrando no recinto. Fitou, então, o homem cujas sedosas madeixas prateadas escorriam por sobre o ombro e percebeu uma expressão intranquila naquele rosto de quarenta e dois anos.

— Grão Mago Roland — disse o Nômago, pronunciando corretamente o pronome de tratamento “Grão Mago” que todo Nômago deve proferir ao se comunicar com um nerikiano dessa classe.

— Desculpe interrompê-lo, Fillip. Mas preciso enviar uma mensagem a toda Academia.

* * * * *

Quando os alto-falantes vibravam em horários inapropriados era porque algum engraçadinho conseguira entrar na sala musical para usar o microfone — já houve desde declarações de amor até brincadeiras de mau gosto com determinadas pessoas — ou porque algum Mago resolvera transmitir um anúncio de urgência.

— Atenção, por favor. Alunos, Professores e funcionários. Quem fala é o Diretor Roland Lempe. — Era o segundo caso. — Peço desculpas por interromper suas atividades, mas venho lhes informar a respeito de um acontecimento recente. — Os Professores pararam de lecionar, os fofoqueiros de fofocar, os leitores de ler, os estudiosos de estudar, os jogadores de jogar, os namorados de namorar. Enfim, o campus parou para ouvir seu Diretor. — Se algum conhecido de Mirella Greime, estudante do décimo primeiro Ciclo, viu-a durante os últimos minutos do recesso desta manhã, peço que se dirija imediatamente a minha sala. Repetindo. Se alguém avistou Mirella Greime nos últimos minutos do recesso, por favor, dirija-se até minha sala. Muito obrigado pela atenção.

Quase todos perceberam a informação implícita no pedido de Roland. Ele não dissera, mas muitos começaram a comentar se a jovem mencionada estava desaparecida ou desrespeitara alguma regra e fugira. Suposições pipocaram em vários lugares, e as salas de aula demoraram um bom tempo para se aquietarem.

Willian sentiu o mistério se intensificar. Ignorando a voz docente, pôs-se a escrever numa folha de papel uma possível resolução para ele.

Nicolas permaneceu segurando a bola de magibol — era prateada e tinha o mesmo tamanho que uma de basquete — imaginando o que poderia ter acontecido a sua amiga. Numa arquibancada de madeira e metal ao lado, Samira pensava o mesmo.

Violleta e seu grupo, sentadas num dos bancos espalhados pelos corredores acadêmicos, carregavam um ar curioso, embora a líder exprimisse uma nada sutil fisionomia escarnecedora.

Aron Rauker, novamente sob a mesma árvore onde sempre passava o tempo dos intervalos, lia o seguinte trecho de um livro que pegara há pouco na biblioteca, antes de escutar a voz de Roland através de uma caixa de som pregada no alto de um poste fixado em uma trilha afastada.

A distância que nos apartava preenchia-se com o brilho de um ocaso misterioso e com o silêncio de corações hesitantes. Enquanto a minha boca trepidava, acovardando-se, os lábios dela romperam a quietude amargosa, interpelando-me acerca de minhas ações nos próximos segundos. Rasgando o medo para abrir meu coração, sorri e disse: “aproxime-se, minha amada, e compartilhe os sais e os açucares de sua vida.”

Ao fim do recado do Diretor, uma brisa fez a árvore farfalhar, e Aron segurou a folha do livro para ela não virar. O adolescente crispou os lábios e pronunciou com angústia:

— Mirella… Eu sinto muito.


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Notas finais do capítulo

Não se esqueça de deixar o seu review. :)
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Até o próximo capítulo.