Nerikia - Arco I escrita por Rauker


Capítulo 5
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores. Esse capítulo teve um espaço de três semanas em relação ao anterior. Isso ocorreu porque o anterior fora publicado com uma semana de atraso.
Esse será o capítulo mais curto até o momento, mas espero que gostem.

Boa leitura ;)



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Uma verdade perdeu-se no universo de muitas.

Mas, aos artistas, ainda é possível achá-la.

Essa verdade será alcançada por poucos.

Pois, esse dom, eles jamais irão perdê-lo.

Não quero... Não quero... Não quero, não quero, não quero!

Sua própria voz exaltada a fez despertar do sono involuntário. Os olhos de Mirella encontraram um teto familiar, visto pelos estudantes quando estavam cansados ou necessitavam de um espaço decididamente privado: um forro de madeira clara conjugada à textura suave do recinto composto basicamente por uma mesa de estudo, quadros nas paredes e a cama na qual se deitava.

A intenção de mover o corpo foi gorada pela memória fresca de um sonho, ou seriam dois? Lembrou-se primeiro dela dizendo algumas palavras cujo sentido e contexto não queria trazer à tona. Mas recordou-se também de ser acossada por monstros apavorantes e linguarudos. Só um sonho esquisito, pensou ela, pondo-se sentada na cama. Mas como cheguei aqui? Será que desmaiei? Talvez… eu tenha desmaiado com o cheiro daquela vela. Era a explicação mais provável: alguém a havia deixado no dormitório depois que a encontrara inconsciente no clube de Teatro. Mas, sendo assim, não seria melhor ter sido levada à enfermaria?

A única maneira de saber o que havia lhe acontecido era ir à recepção para encontrar a responsável que geria os dormitórios.

Quando Mirella se levantou, uma súbita tonteira obrigou sua mão esquerda a se apoiar no vidro da pequena janela ogival. Os olhos fitaram o chão devido à vertigem. Os músculos fraquejarem por alguns instantes, mas o vigor lhe retornou em seguida. Talvez devesse realmente procurar um médico.

Atentou-se na luz alaranjada que invadia o recinto através da janela. Conferiu as horas no seu relógio: faltavam vinte minutos para as dezoito horas. Eu dormi durante todo esse tempo? Ela esquadrinhou o quarto à procura de sua pasta de estudo, e, como não a encontrou, achou que deveria estar na recepção. Ao se dirigir à porta, parou antes mesmo de abri-la. Havia um bilhete colado na madeira.

Venha ao terraço do Bloco A.

Nesse instante, a mente que parecia atuar vagarosa recobrou os níveis normais de raciocínio. O recadeiro, a vela no clube de Teatro, os monstros e a pessoa que a salvara não foram lembranças oníricas. Demorou alguns segundos para engolir os fatos antes de mirar novamente o bilhete. A essa altura, duvidava que Willian fosse o verdadeiro remetente. O responsável provavelmente era a pessoa que destruíra aquelas três criaturas e, a julgar pela luz escarlate no momento dos ataques, era alguém com Aura vermelha. Mirella o ouvira dizer sono sualis antes de perder os sentidos. Anna possivelmente conhecia a ordem enfeitiçada, mas não precisava ser tão traça-livros quanto à amiga para saber que se tratava de uma magia soporífera. Raros eram os estudantes com habilidade para executar uma ordem enfeitiçada, que se baseava na saturação de Aura nas cordas vocais, uma magia difícil até mesmo para nerikianos já formados como Magos. E Mirella não conhecia ninguém pessoalmente com esse perfil.

Após o minuto de reflexão, a jovem girou a maçaneta, e o rangido da porta do quarto 21 reverberou por um corredor silencioso. Mirella conferiu ambos os lados e não avistou ninguém. Uma quietude similar àquela do clube de Teatro, como se fosse a única pessoa existente no mundo. Ela afastou rapidamente essa sensação e caminhou até a recepção, suas sapatilhas provocando baques hesitantes no chão amadeirado.

Ao chegar numa confluência em forma de “T”, virou à esquerda onde se instalava, num estreito espaço, um balcão atrás do qual trabalhava uma Nômaga de vinte e poucos anos, cabelos escuros e compridos, olhos negros. Contudo, não havia ninguém ali. A prancheta com os nomes e a relação dos quartos ocupados e vagos jazia sobre a bancada. Aproximou-se e reparou num livro abandonado sobre a cadeira onde a mulher deveria estar acomodada.

 — Alguém. Tem que haver alguém aqui.

Mirella começava a se incomodar com a ausência das pessoas. Teve uma idéia quando avistou o painel das chaves fixado na parede mais ao fundo. Ela tomou a prancheta nas mãos e regressou ao corredor dos dormitórios. Bateu à porta de vários dormitórios ocupados, chamou as pessoas pelos seus respectivos nomes, mas ninguém a entendeu. Desistente, confusa e assustada, Mirella perguntou-se:

— Cadê todo mundo?

Lembrou-se da mensagem na porta. Ao que parecia, somente uma pessoa sabia.

* * * * *

A luz do sol a pino adentrava a sala do Diretor e realçava as marcas de preocupações nos rostos de cada presente, enquanto a melodia referente ao recesso mediano ecoava pelo campus.

Próximo à janela descortinada, Roland observava o movimento corriqueiro do pátio, era seu costume quando imergia em pensamentos. Lá fora, a vida acadêmica seguia sua rotina natural, apesar da situação potencialmente alarmante que a envolvia.  

Sentadas em um sofá no canto da sala, Érika, Anna e Priscilla fitavam o ambiente ao acaso: a tapeçaria no chão com o símbolo de Nerikia — os dois triângulos sobrepostos; uma estante com livros de capa grossa; um armário guarnecendo pratos e xícaras de porcelana além de copos de vidro e garrafas com bebidas que desconheciam; alguns quadros com as faces dos Diretores passados, mais velhos que Roland; e outros detalhes sem relevância no momento.

O Professor Zailon, o mais jovem instrutor da Academia, 28 anos, mantinha-se igualmente introspectivo na cadeira de visitante em frente à mesa do Diretor. Ele era o braço direito de Roland na administração da Academia, além de melhor amigo e discípulo do Grão Mago. Era também o professor mais querido do corpo discente, obviamente pelas garotas, que não perdiam uma única aula prática de Treinamento da Aura. Seus cabelos escuros e raspados banhavam-se na faixa de luz que entrava pela janela, os olhos verdes fixavam-se na papelada sobre a mesa, mas a mente, a exemplo dos outros, singrava em pensamentos.

— Devemos considerá-la como sequestrada? — indagou ele, para quebrar o silêncio.

 Desde que os alto-falantes de Merovinch requisitaram informações sobre o paradeiro de Mirella, apenas duas pessoas se apresentaram dizendo tê-la visto entrando no corredor dos clubes das Artes. Ninguém mais a viu depois do início do segundo tempo de aula. As três adolescentes e o Diretor foram até o clube de Teatro à procura de pistas; Roland andara por todos os cantos com olhos de examinador, mas não conseguira achar nada fora do comum. Priscilla contara a ele sobre o desaparecimento do rastro de Aura, e Anna também mencionara o caso de Belmovich, o que fez o semblante do Grão Mago assumir uma breve seriedade. Em seguida, eles foram até a sala musical darem o aviso, e depois aguardaram por informações. Roland também havia procurado saber se Bastos Yadril, o Nômago que trabalhava como porteiro na entrada do campus e que conhecia Mirella, vira a adolescente deixando o lugar. Infelizmente, a resposta foi negativa.

A música do recesso mediano terminou sua execução.

— É apenas uma das possibilidades — respondeu Roland — Mas, enquanto não exaurirmos as demais, não verei a situação dessa forma. Pelas informações reunidas, temos três teorias: ou ela está escondida dentro do campus, ou ela pulou os muros que ladeiam o terreno, embora eu não saiba se ela é capaz de fazê-lo, ou ela entrou na floresta Bilbar ao sul da Academia.

— Temos um contingente adicional resguardando aquela região. Ela não passaria despercebida por eles.

O comentário do Professor Zailon chamou a atenção de Anna.

— O senhor disse “adicional”? Está acontecendo alguma coisa por lá?

— É bem atenta, senhorita Sirenai. Tal pai, tal filha — Havia um leve tom de desdém nessas palavras. Mas Anna já estava acostumada às desavenças do Professor em relação a sua família.

— Sairia na capa da Utopia se hoje fosse o último dia da quartan. — entrecortou Roland, referindo-se ao jornal publicado em Nerikia a cada quatro dias. O quartan equivalia à semana no Além-Leviatã. — Alguns Magos relataram terem visto movimentações suspeitas na mata. Acredita-se que haja a presença de um Herege.

A nomenclatura, aprendida nas aulas de História, também aparecia comumente em pinturas, livros e filmes. As adolescentes sabiam que os Hereges eram Magos renegados que se voltaram contra as leis do país, errantes no Além-Leviatã que perpetram crimes e se unem a grupos políticos por objetivos diversos. Mas quando um Herege se aproximava de sua terra natal, era sinal de algum tipo de avaria à Nerikia.

— Então, há a possibilidade de um Herege ter sequestrado a Mirella? — perguntou Anna.

— Supondo que ele tenha perfurado nossa guarnição na floresta e se infiltrado no campus, é uma probabilidade muito pequena, mas não descartável. — Roland fitou uma das garotas, percebendo um semblante carregado de ondulações angustiantes. — É melhor não sermos tão pessimistas, Érika.

A adolescente encarou o Diretor, tentando fazer daquelas palavras uma influência positiva, mas em vão.

— Isso não muda o fato de que ela está desaparecida — disse ela. — E isso porque nós… Não, porque eu insisti mais que todo mundo para ela aceitar aquele convite. Se a Mirella não tivesse ido para o clube, não estaríamos aqui agora, preocupadas.

— Não coloque toda culpa sobre você, Érika. — interveio Priscilla. — Todas nós convencemos ela a ir até lá.

— E ela nem queria ir mesmo — complementou Anna.

— A culpa não é de ninguém — disse Roland. — Nenhuma de vocês poderia prever essa conseqüência. Culparem-se não nos ajudará a achá-la. Temos que começar a nos mexer. — O Grão Mago dirigiu-se à porta e, quando perguntado por Zailon aonde ele iria, respondeu: — Farei uma inspeção mais minuciosa no clube de Teatro dessa vez.

— Nós iremos juntos. — Érika e as amigas ergueram-se do sofá.

— Não. Quero que vocês procurem nas outras dependências do campus. — Antes de abrir a porta, Roland virou-se para o Mago. — E, Zailon, precisamos deixar a mãe ciente da situação.

* * * * *

As imagens germinavam das fendas da imaginação e se derramavam calorosamente na folha de papel. Sem pausa, a caneta bailava. Escrever era uma dança com as palavras. No final, cansada, a mão descansou, e a caneta desabou. Um suspiro longo e aliviado do escritor.

Os olhos rosados de Willian encararam as quatro páginas escritas em seu caderno nos últimos trinta minutos. Apesar das pessoas lhe dizerem que sua capacidade criativa permanecia sempre ativa, debruçar-se ininterruptamente sobre um texto não era uma recorrência diária. Eram raras as ocasiões em que estava embalado por esses momentos de sublime inspiração, e sempre conseguia criar escritos maravilhosos. Contudo, o conto que acabou de arrematar, além de boa qualidade, possuía outra particularidade, na verdade, bem desagradável.

— Essa sensação… — Ele enterrou a mão sobre o rosto em amargura. A cabeça meneou uma negativa aflita, e a mão deslizou para baixo permitindo aos olhos visarem novamente o conteúdo aterrador das páginas escritas. — Aconteceu de novo. Com certeza, aconteceu de novo.

— A que acontecimento se refere, Willian Belmont? — A voz de Roland pegou o estudante desprevenido. O Diretor entrara no clube de Teatro quando Willian havia terminado de escrever as últimas palavras. — Por que está tão tenso?

— Diretor… — Willian emudeceu por alguns segundos antes de voltar a falar num tom abatido. — Acredito que minha mãe tenha lhe contado a respeito de minha, vamos dizer, transcendental habilidade literária. — Ele permitiu-se esboçar um ligeiro e irônico sorriso — Um escritor busca inspiração para contar verdades na forma de mentiras. Mas já aconteceu de eu narrar verdades pensando ser mentira.

— Sim. Estella me contou sobre aquele caso — disse Roland, mencionando a mãe do garoto. Percebeu, em seguida, que o estudante proferia uma história do passado:

— Foi a primeira missão dele no Além-Leviatã. Ele e mais alguns Magos esquadrinhavam uma floresta. Estavam apurando as razões por trás de uma espécie animalesca em via de extinção. Claro, a principal suspeita era a presença de predadores, e o grupo da missão estava preparado para enfrentá-los. Mas… nem todos estavam. Ector, meu irmão, era o membro mais novo do grupo, não possuía muita experiência. — Roland permanecia em pé, ouvindo pacientemente o garoto rememorar aquele fato penoso. — Enquanto o grupo lutava contra os predadores, eu estava aqui em Nerikia, no meu quarto, escrevendo aquele conto... O conto narrado sob o ponto de vista de um predador que visava um grupo de Magos. A história do conto termina quando esse personagem morre, pouco depois de ter assassinado um deles. — Willian silenciou-se por alguns instantes antes de continuar. — As palavras simplesmente foram surgindo na minha mente. Quando eu coloquei o ponto final e reli o que escrevi, nunca poderia imaginar que havia narrado a morte do Ector naquele mesmo dia. Porém, o que mais me deixou atormentado foi ter encarnado o narrador enquanto escrevia. Eu senti através dele a sensação de matar meu próprio irmão. — Willian findou o relato, os olhos marejados fixando o chão.

— Aonde você quer chegar requentando essas lembranças, Willian?

O estudante fungou o nariz, levantou-se da cadeira pegando seu caderno e o entregou a Roland.

— Eu acabei de escrever um texto semelhante.

Direcionando um olhar preocupado para aquelas letras, Roland começou a ler o conto. Willian aguardou em pé no canto da parede. A princípio, o Diretor executava passos lentos enquanto lia, mas, depois de certo tempo, assumiu uma posição estática resultante de sua imersão no texto.

— Não pode ser — Roland abaixou o caderno e demonstrou uma face de espanto.  

— Diretor, assim como antes, esse texto foi narrado sob o ponto de vista do personagem vil, aquele que irá perpetrar o crime. — Willian aproximou-se do Grão Mago. Ambos os rostos exibindo preocupação. — Ou seja, o seqüestrador da Mirella.

— Se esse conto mostra mesmo a realidade, a Mirella está completamente submissa aos caprichos dessa pessoa… E eu que pensei que atrocidades como essa só existiam no Além-Leviatã. Willian, você tem certeza que todos esses pensamentos revelados pelo narrador são verdadeiros? — inquiriu Roland com furor.

— A arte imita a vida, Diretor.

* * * * *

Mirella empurrou a porta de metal que dava para o terraço, provocando um reboante rangido, e vislumbrou o céu mergulhado em tons de crepúsculo salpicado por nuvens grandes e irregulares.

Há tempo que ela não frequentava esse lugar comumente usado pelos estudantes. Naquela época, ela o fazia com assiduidade, junto a uma pessoa especial: Melvin Reinberg. Era o local predileto do casal que sentava perto das grades de proteção e passava o tempo dos intervalos e períodos vagos.

Essas lembranças fizeram Mirella suspirar e observar a grade demoradamente, imaginando-se outrora ao lado do namorado. A expectativa de vê-lo novamente, por mais remota que fosse, intensificou-se. Sentia enorme saudade de sua voz.

— Mirella… — pronunciou alguém.

O chamado paralisou o corpo da jovem, deixando-a apreensiva. Ela virou-se lentamente para trás, subiu os olhos por uma enorme caixa d’água cilíndrica que abastecia o prédio e divisou uma silhueta de pé sobre o tampo. A luz do sol poente incidia sobre as costas dele, enegrecendo sua imagem frontal. Mirella só conseguiu discernir o uniforme acadêmico e duas luzes avermelhadas acendendo no rosto.

— Então você finalmente acordou — disse ele.

Os olhos do rapaz casavam perfeitamente com o lusco-fusco. Contudo, o vermelho saturado que surgira do contato visual com Mirella regressou a uma coloração tépida, semelhante ao firmamento, semelhante aos olhos de outra pessoa que ela conhecia, semelhante ao vermelho mórbido de Aron Rauker.


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Notas finais do capítulo

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Até a próxima o/