Caso Miranda escrita por Caroline Marinho


Capítulo 6
Libertada


Notas iniciais do capítulo

Miranda deixou com que a liberdade a entorpecesse... Será que isso a faria bem?



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Medo. Era pra eu me sentir assustada e insegura, não era? Era pra eu ter medo do frio e do escuro e ter medo da morte daqui pra frente, não era?

Mas eu não tinha mais medo. Parecia mais que o pouco medo que eu tinha ficou dentro daquela casa. Eu me sentia livre, segura e feliz por estar bem longe da minha casa.

Aqui eu podia fazer o que eu quisesse sem ser questionada, aqui eu poderia realizar todos os meus sonhos. Eu não queria pensar em aonde dormir, o que comer ou como arrumar abrigo. Eu só queria sonhar...

Cheguei à uma rua que ficava no fim da cidade. Era completamente vazia, mas eu nunca entendi o porquê. Haviam árvores enormes enfileiradas que davam um ar de mistério naquele lugar. Eu gostava desse mistério.

Me deitei no meio da rua, meio que impedindo a passagem. Sempre gostei de fazer esse tipo de coisa. Sentar em lugares altos, manusear facas e deitar em ruas. Só pra sentir que minha vida estava por um fio.

Eu gostava de dar o troco, era isso. A vida brincava comigo, ótimo. Eu ia lá e brincava com ela.

Assim eu me sentia menos manipulável, sei lá. Eu gostava de ser imprevisível.

Respirei o ar fresco, olhei pro céu estrelado alguns segundos e fechei os olhos.

- É bom, né?

Olhei pro lado. Leo, deitado do meu lado, com a cabeça sobre as mãos, olhou pra mim e sorriu.

- Bom saber que depois de tanto tempo você está livre pra ser, fazer e ter o que quiser.

Eu o observei, depois olhei em volta, procurando uma prova de que aquilo era um sonho.

Enfim, encontrei, afinal, o dia estava ensolarado.

- Miranda, você não pode aceitar isso que eles fazem com você. Todos eles. Você tem que arrumar um jeito de acabar com tudo isso. Afinal, aquela casa também é sua. Suas coisas estão lá. Você precisa correr atrás do que é seu.

Eu o observei novamente. Por algum motivo, eu não conseguia dizer nada. As palavras não saiam da minha boca.

Eu sabia que não podia fazer nada pra impedi-los. Eu teria que conviver com o fato de que meu pai era um pedófilo filho da puta e que meu irmão era um drogado, e infelizmente eu tinha que conviver com isso. Mesmo sabendo que aquela casa agora não era mais minha, eu sabia que aquela ainda era a minha realidade.

- Não é a sua realidade, Miranda. Você pode mudar as coisas. Pode acabar de uma vez com as atitudes do seu pai e do seu irmão.

Ele se aproximou de mim, como se fosse me beijar.

Mas tudo escureceu e eu abri os olhos. Tinha um carro parado na rua a poucos metros de distância e tinha uma mulher olhando fixamente pra mim de perto.

- Está tudo bem? - ela perguntou, com os olhos arregalados.

- Está sim - eu disse, meio séria.

- Quantos anos você tem?

- 13.

- Onde estão seus pais?

Hesitei. Se eu dissesse que tinha um pai, ela me levaria pra casa, provavelmente ele me torturaria por ter aprontado por ele. Dizer onde morava não era uma opção. Até porque aquela nem era mais a minha casa.

- Eu não tenho - respondi. Ela pareceu ter acreditado.

- Você é louca de ficar no meio da rua, no frio, numa hora dessas, menina? Anda, levanta e entra no meu carro, garota. Vou te levar pra casa.

- Não tenho casa - respondi, instantaneamente.

Ela hesitou.

- Então te levo pra minha. Você dorme lá e amanhã a gente vê o que faz.

Me levantei e entrei no carro.

- Qual o seu nome? - ela perguntou. Ela usava aquele tom que adultos usam quando estão com pena de um cachorrinho.

- Miranda.

- É um nome lindo - ela disse, com um sorriso forçado.

- Meu nome é Lúcia. Eu sou secretária de um escritório aqui perto.

- Legal.

Ficamos em silêncio por um momento.

- Miranda... Há quanto tempo você...

Ela não sabia completar a frase.

- Fui expulsa de casa. Hoje mais cedo - por fim, falei, claro. Não adiantava mentir. Não sobre isso. Algo me dizia que, de qualquer forma, por mais que eu dissesse tudo, ela não seria capaz de me levar pra casa. Ninguém levaria uma menina de 13 anos pra casa de um pedófilo. E mesmo que eu não dissesse o que meu pai fazia, era só juntar dois mais dois pra perceber que eu não estaria segura na minha casa, visto que se fui expulsa, logo a pessoa não se importaria nem um pouco em como eu dormiria à noite.

- Então você tem casa.

- Aquilo nunca foi minha casa. Eu nem era bem vinda ali dentro.

Ela franziu a testa.

- É... Eles te disseram, com todas as palavras, "Saia da minha casa"?

- Na verdade ele disse com essas exatas palavras.

- Ele?

- Meu pai, o imbecil.

- Porque ele quis que você saísse da casa dele?

- Ele não aceitou ouvir verdades sobre ele - dei de ombros - Ninguém aceita ouvir os próprios defeitos, não é mesmo?

Ela sorriu. Provavelmente concordando comigo, sei lá.

- E que verdades você disse pra ele?

Eu a encarei. Era uma mulher de uns 40 anos, mas elegante. Muito elegante. Tinha os cabelos loiros amarrados em um rabo de cavalo e a postura sempre ereta. Não era tão bonita assim, já tinha o rosto marcado pelo tempo, e hora ou outra ela parecia se perder nos próprios pensamentos.

- Olha, Lúcia, se quer me ajudar, eu acho ótimo. Mas tem coisas que simplesmente é melhor que você não saiba.

Ela me olhou, ia dizer alguma coisa, mas mudou de ideia. Focou no trânsito novamente e soltou um suspiro.

- Miranda, o que quer que seu pai tenha feito com você, eu faço questão de ajudar. Se ele te maltratou, ele não pode sair impune.

-Tem certeza que quer saber?

Ela assentiu.

- Eu fui estuprada.

Ela pareceu surpresa com a afirmativa.

- Desde os meus 7 anos ele abusa de mim. Eu fui me acostumando com isso, mas hoje mais cedo não aguentei mais. Por isso estou aqui.

- Ai, meu Deus! - ela disse, horrorizada - Esse... Esse crápula tem que ser levado pra cadeia.

Ela apertou as mãos no volante. Parecia muito irritada. Muito mesmo. Eu não esperava tamanha reação, mas pelo menos agora eu tinha certeza de que ela não me levaria pra casa.

De repente começaram a cair lágrimas do rosto dela. Ela parou o carro.

- Quando eu era pequena... Eu fui abusada também. Pelo meu tio. Nunca contei pra minha mãe, nem pra ninguém. Porque achava que isso me prejudicaria - ela limpou as lágrimas - Você fez bem em me contar, querida. Eu posso te ajudar.

- Não quero ajuda - respondi, incomodada.

Acontece que isso simplesmente não mudaria nada. A gente levaria meu pai pra cadeia e... Tá, mas o que eu ganharia com isso? Viraria órfã, assim como o nojento do meu irmão, e depois teria que conviver com gente que nunca vi na vida?

- Miranda...

- Já chegamos? Essa é sua casa? - disse, deixando claro que não queria mais conversa.

- Sim, nós chegamos, querida.

- Ótimo. Juro que nem vou incomodar - saí do carro.

Entramos. A sala de estar era pequena e aconchegante.

- Olha, Miranda... Eu não quis te incomodar. É que... - ela hesitou, parecia que já queria chorar de novo - Eu já perdi um filho. Ele foi assassinado. Isso é horrível e você não sabe o quanto sofro por isso.

Fiquei quieta. Quem ligava se ela tinha perdido um filho? O que isso tinha a ver comigo? Por que eu tinha que me importar?

- Eu não aceitaria que gente igual ao seu pai saísse impune. Não depois da morte dele - eu não respondi - Bem, eu vou fazer o jantar.

E se dirigiu à cozinha.

De repente perdi a paciência. Sim, porque eu odiava pessoas dramáticas. E odiava pessoas com o emocional abalado. Aquela mulher estava com um péssimo estado de espírito. E piorou logo depois que disse a verdade pra ela.

Eu estava arrependida. Pessoas assim conseguem ser mais impulsivas do que eu e isso seria bastante incômodo.

Fui até a cozinha. Ela não me viu chegar. Estava de frente pro fogão, o cheiro da comida era agradável. Foi quando vi a faca no balcão.

Uma faca grande, afiada e sedutora. Fiquei imaginando o estrago que teria feito na garganta de Jasmin com uma faca dessas.

Eu não havia tocado no assunto, mas a verdade é que matar Jasmin me deu a sensação de imortalidade. Sim, porque eu tirei a vida de alguém sem que ela tirasse a minha, e isso era incrível. Me fazia sentir invencível.

Pensando bem, eu gostava daquela experiência. E eu queria sentir aquilo de novo, naquele momento.

"Eu poderia matar Lúcia. Claro que poderia. Ela me parece o tipo de pessoa que já está com o pé na cova, querendo morrer. Olhe só pra ela. Angustiada, sentindo-se vazia. Aposto que ela quer morrer. Sim, ela quer. Sem dizer que ela já se tornou um problema. Bem, ninguém mandou ser intrometida..."

- Lúcia... - eu chamei, rodando a faca no balcão.

- Sim, querida - ela respondeu, sem olhar pra mim.

- Você pensa no seu filho?

- Todos os dias...

- Hmm... E você tem vontade de ver ele de novo?

- É o meu sonho - ela disse, a voz sorrindo, a cabeça mais levantada.

- Está cansada de sofrer, não é? - me aproximei dela, por trás, e joguei todo o cabelo dela sobre o ombro esquerdo e passei meu braço direito por sobre o ombro dela, com a faca na mão - Eu poderia acabar com esse sofrimento pra você, sabia?

- Miranda... - ela disse, o nervosismo era eminente - Você não quer fazer isso...

- Eu não quero?

- Você está abalada pelo que seu pai fez com você...

- Sabe, Lúcia... Normalmente crianças não confiam quando uma mulher para o carro e sem perguntar muito leva elas pra casa sem perguntar. Mas eu não sou como elas, sabe? Você devia ter percebido. Afinal, eu não fiquei nem um pouquinho assustada, não é mesmo?

- Querida...

- Não me chama assim, credo. Odeio simpatia forçada.

- Eu vou gritar...

- Não, não vai.

Ela puxou fôlego, mas eu fui mais rápida.

Ela morreu igualzinha à Jasmin.

- Que pena, nem deu pra aproveitar a comida.

Parte do sangue dela havia caído dentro da panela em que ela preparava a carne.

Vai saber... Às vezes tinha comida enlatada na geladeira.

Abri a geladeira. Pudim e uma lata de refrigerantes. Dava pra viver.

Resolvi dormir no quarto dela. Procurei pelas chaves e tranquei a casa. Amanhã eu limpava aquela bagunça.


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Notas finais do capítulo

Novamente peço pra manterem a mente aberta. Afinal, é somente uma história. E quando se trata de história e arte aquela coisa de moral e bons costumes não é muito levada em consideração. :) Espero que tenham gostado.