Perdida Em Seu Olhar - (Finalizada) escrita por Eu-Pamy


Capítulo 31
Capítulo trinta - Esperança.


Notas iniciais do capítulo

Sei que eu prometi que esse seria o último capítulo, mas como ele ficou muito grande, tive que dividi-lo em dois. Foi um dos capítulos que eu mais chorei escrevendo. É uma pena que a história esteja acabando.
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Desculpem os erros. Boa leitura.



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Capítulo trinta. – Esperança.

A esperança seria a maior das forças humanas, se não existisse o desespero. (Victor Hugo)

– É bom ter esperança, mas é ruim depender dela. (Textos Judaicos)

Você vê coisas e diz: Por que?; mas eu sonho coisas que nunca existiram e digo: Por que não? (George Bernard Shaw)

– "Otimismo é esperar pelo melhor. Confiança é saber lidar com o pior." (Roberto Simonsen)

– "Por mais longa que seja a noite, o sol volta sempre a brilhar." (Autor desconhecido)

"Quando Deus fecha uma porta, ele pode estar abrindo uma janela." (Autor desconhecido)

– Ter esperança é não estar morto.

*

*

Um dos médicos me levou até a sala onde meu doce Lucas dormia em sono profundo. Eu não conseguia esboçar reação, mal assimilava o que estava acontecendo. Era doloroso pensar que eu havia ganhado um amor, para perder outro. O melhor momento da minha vida, junto com o pior. Não era justo comigo. Esse deveria ser um dia feliz, não um dia aterrorizante. Enquanto o médico arrastava a minha cadeira de rodas pelo corredor, tão lento e tristonho como se a dor também fosse dele, imaginei que enquanto nossa filha nascia, enquanto eu gritava desesperada seu nome e procurava pela sua mão, pelo seu rosto naquela sala, ele estava estendido no meio de uma avenida, baleado, sangrando, sentindo quase tanto dor quanto eu. Imaginei-o assustado, preocupado comigo, querendo chorar... O imaginei encarando as estrelas nos céu, sentindo o corpo sonolento... Sentindo a consciência ir embora. Imaginei ele lutando para se manter acordado, para se manter vivo. Ele sabia o que estava acontecendo? Sabia que eu chamava por ele? Ou será que ele também chamou por mim? Eu queria tanto estar ao lado dele e sei que ele também queria estar ao meu lado. Mas eu estava viva, estava bem, e ele... Ele estava dormindo profundamente.

Quando entremos na sala, eu me senti tão fraca comparada a ele... Eu queria morrer, queria pular de uma ponte. Meu Lucas... Meu amor. Por favor, acorde, volte para mim. Você prometeu... Prometeu que nunca me deixaria só.

Você mentiu.

– Ele foi atingido por dois tiros. Um perto do pulmão e outro passou de raspão pela cabeça, mas este último teve sérias complicações.

Mesmo a sua cabeça estando enfaixada, eu podia ver o inchaço e a vermelhidão presentes ali. Ele estava com o rosto e corpo muito machucados.

– O carro que ele estava dirigindo na hora, bateu no carro da frente...

Sua boca possuía um corte horroroso e suas mãos ainda estavam sujas de sangue, como se ele tivesse tentado cavar um túnel com elas.

– As testemunhas disseram que ele saiu do carro e tentou correr para dentro de um supermercado...

Meu coração acelerou e minhas mãos começaram a tremer. Tentei empurrar a cadeira para mais perto dele.

– Foi quando ele foi baleado. – Contou o médico.

Toquei seu rosto com uma das mãos, uma lágrima escorrendo do meu olho.

– Meu menino... – Lamentei.

Ele poderia estar naquele estado, mas continuava digno, corajoso, forte. O orgulho não o abandonava nem por um segundo. Ele era teimoso demais para dar o braço a torcer. “Pena?”–o imaginei dizendo –“Eu não preciso da sua pena! Então tire essa expressão do rosto agora mesmo!”. Sorri melancólica.

– Precisamos ser otimistas. Esse tipo de coma é muito imprevisível... Ele pode tanto acordar mês que vem como pode acordar hoje mesmo. Os médicos tentarão estimular o cérebro dele, quem sabe ele não reage...

– Você acha mesmo? – O encarei.

– É possível. Isso já aconteceu antes. Temos relatos surpreendentes sobre pacientes em estado de coma profundo que acordaram escutando uma música que gostavam ou ouvindo a voz de alguém próximo a eles. Milagres acontecem todos os dias, mesmo sendo médico e vendo tudo com desconfiança e descrença, sei que algumas coisas simplesmente não possuem explicações cientificas. Se eu fosse te sugerir alguma coisa, seria para você ter calma e esperança, e deixe o resto com os profissionais. Esse rapaz tem uma coragem assustadora. O médico que o atendeu e o operou me contou que ele agüentou permanecer consciente boa parte da cirurgia. Se te serve de consolo, ele não parava de perguntar como você e a criança estavam quando chegou ao hospital. Mesmo estando gravemente ferido ele só pensava em vocês. – Ele olhou o homem deitado na cama. – Ele deve te amar muito.

Um minuto de silêncio.

– O senhor... O senhor poderia nos deixar a sós, por favor? – Pedi com a voz engasgada. Seu olhar foi doce e piedoso.

– Claro. – E saiu do quarto.

O ar saiu da minha boca pesadamente, seguido pelo inicio do choro, que se demorou a ficar audível, mas quando liberado ganhou uma força desproporcional. Tentei me controlar.

– Você é espertinho, não é? Fugindo da responsabilidade desse jeito... – Me levantei da cadeira com grande dificuldade - Não pense que você vai escapar. – Segurei a sua mão. – Você prometeu que iria me ajudar a cuidar da nossa filha e é isso que você vai fazer. – Solucei. – Você prometeu e eu vou cobrar... Não é justo comigo. Você não pode... Você não pode me deixar sozinha logo agora, está ouvindo? – Fitei seu corpo, esperando alguma reação. Mas ele apenas continuava dormindo, tão lindo como sempre. Parecia que nada havia mudado, mas seus machucados me lembravam que isso não era verdade. TUDO havia mudado. – Diz alguma coisa... Acorda. Por favor, Lucas, você não pode fazer isso comigo... Eu não vou agüentar sem você. Nossa filha precisa de você... – Sorri ao lembrar do lindo bebê – Ela é tão pequena... Tão frágil, tenho medo de quebrá-la só em pegá-la no colo... Ela parece um anjinho e nasceu com menos de dois quilos, acredita? Ela está lutando para viver neste exato momento e você – respirei fundo – precisa fazer o mesmo. Você precisa acordar, para conhecer o nosso bebê... Ela precisa de um pai e eu preciso de você. – Escondi o meu rosto em minhas mãos. – Eu sou tão fraca sem você... Acorde... Diz alguma coisa, qualquer coisa, mas se mexe... São muitos problemas, eu não vou dar conta sozinha... – Me desmanchei em lágrimas. – Porque você tinha que ser baleado, hein? Porque você tinha que sair de dentro do carro...? Você tinha que estar comigo agora, me ajudando e me protegendo... – Minhas pernas tremeram, ameaçando me derrubar. – Lucas... Eu estou com tanto medo... Você prometeu, e agora você me deixou, você me abandou. Eu não entendo porque isso aconteceu, eu só quero que você acorde...

Sequei meu rosto e voltei a me sentar na cadeira.

“Que Deus é esse que faz isso com uma pessoa inocente?” foi o meu único pensamento. O médico voltou alguns minutos depois, para me levar para o meu quarto.

Fiquei mais três dias no hospital. Minha filha ficaria mais vinte dias internada, para ganhar peso. Quando fui liberada e saí do hospital, pensei em não ir para a casa. Eu não queria ficar sozinha naquele lugar. Não queria entrar no meu quarto e ver os pertences dele... Não queria entrar no quarto da nossa filha e lembrar de como estávamos felizes quando pintamos aquelas paredes e escolhemos os móveis, eu não queria lembrar dos nossos planos e saber que enquanto eu estava ali, em pé e saudável, ele estava preso em uma cama. E mesmo que os médicos tentassem me manter esperançosa, algo dentro de mim continuava escurecendo, esfriando. Tive que juntar toda a coragem que me restava para voltar para casa, e mais coragem ainda, para enfrentar os jornalistas. Como se não fosse suficiente eles ficarem acampados no hospital, eles também estavam na minha casa. Naturalmente, um assalto no maior banco da cidade chamou a atenção da mídia, que logo trataram de noticiar a história dos três policiais e quatro cidadões baleados. Mas o Lucas não era apenas uma das vítimas, ele era o foco dos repórteres. Afinal, não é todo dia que um garoto de vinte anos é baleado no dia do nascimento da própria filha. 12 de Outubro, ironicamente o dia das crianças e da Nossa Senhora Aparecida, a mãe do menino Jesus. Tudo era uma grande ironia do Destino, e consequentemente nós acabamos virando tema de muitos jornais e programas do horário nobre. Todos queriam saber e palpitar sobre a história do jovem pai pintor baleado por assaltantes, da filha prematura e da mãe escritora abandonada à própria sorte. Essa obsessão da mídia durou um pouco mais do que duas semanas, e eu me senti aliviada quando eles finalmente foram embora.

Todos os dias eu ia até o hospital alimentar o meu bebê. Esses eram os momentos mais preciosos do meu dia. Yasmin, como eu concordei em chamá-la, estava crescendo rápido e ficando cada vez mais bonita. Quando seus olhos finalmente se abriram, tive uma surpresa ao constatar que eles eram azuis como os meus. Mas possuíam o brilho dos olhos do pai. Ela me lembrava muito ele... Seja no jeito de olhar, seja na cor e maciez da pele, o formato do nariz... Ela era perfeita em todos os sentidos. Eu ficava impressionada sempre que pensava que aquela incrível pessoinha havia saído de dentro de mim. Eu sempre quis ter uma filha e agora ela estava ali, aos meus cuidados, entretanto, mesmo feliz, eu continuava amargurada. E a cada dia que passava e ele não acordava, eu ficava pior. Parecia que eu estava morrendo junto com ele.

Silvia, sou eu, a Susan... Eu sei que você não quer falar comigo, mas precisamos conversar. Acho que você já deve estar sabendo o que aconteceu... Por favor, quando você receber essa mensagem, me liga. – Desliguei o telefone.

Eu estava ligando de um quarto de hotel, fugindo das câmeras dos repórteres e das lembranças. Fazia uma semana e meia que eu dormia em um hotel. Estava sem coragem de voltar para casa. Eu consegui voltar apenas para buscar as minhas roupas e dinheiro, mas jamais conseguiria dormir sozinha naquele lugar.

Mas quando minha filha recebeu alta, eu fui obrigada a voltar.

– Bom, querida, esse é o seu novo quarto. – Murmurei sorrindo, enquanto adentrava o cômodo. – Bem melhor que o quarto do hospital, não é mesmo? – Ela balançou as mãozinhas no ar, como se estivesse concordando comigo.

Yasmin era uma criança sorridente e amigável, e por muito tempo ela fora a minha única companhia. Nas seis primeiras semanas em que nós ficamos sós, eu dormi no quarto de hospedes; o meu quarto estava com as portas fechadas desde o dia do acidente e eu nem ousava pensar em entrar, com medo de perder toda a sanidade quando visse as roupas ou sentisse o cheiro do meu amado. O mesmo vale para o cômodo com as suas pinturas. Tudo estava abandonado, enterrado bem fundo em algum canto distinto da minha mente. Eu não queria mais sentir dor.

Quando minha filha estava com quase seis meses, em março de 2011, contratei uma babá para cuidar dela por um dia. Comprei uma passagem e viajei de avião até São Paulo.

Toquei a campainha da casa várias vezes, até que alguém abriu a porta. A sua expressão se contorceu quando me viu. .

– O que você veio fazer aqui? – Perguntou com ignorância.

– Eu quero ver a Silvia.

Ele bufou.

– Péssima idéia garota. Sua mãe não quer te ver.

– Matheus, eu vim do Rio de Janeiro só para falar com ela, eu abandonei a minha filha com uma estranha, larguei meus compromissos só para fazer isso, então pelo amor de Deus saia da minha frente, porque eu vou entrar nesta casa de qualquer maneira! Já estou farta de você dizendo o que eu tenho que fazer. Saia da minha frente se não eu vou usar da força bruta. – Falei de uma só vez. Ele pareceu atordoado.

– Depois não diga que eu não avisei. – E deu passagem.

Passei pela sala como um furacão, indo para a cozinha, mas ela não estava lá, então voltei e caminhei para o quintal dos fundos, onde ela estava sentada, tomando Sol com os olhos fechados.

– Se você acha mesmo que pode fugir de mim trocando o número do telefone você está muito enganada! – Esbravejei, parando de frente a ela. Ela pulou de susto quando escutou a minha voz.

– Querida, me desculpe, ela forçou a entrada. – Explicou o Matheus, vindo logo atrás.

Os olhos da minha mãe me encaram com descrença, mas rapidamente se assumiram irônicos e indiferentes. Sua boca formou um sorriso.

– Ficou com saudade da mamãe, filinha? – Engoli em seco. Como ela podia ser tão fria? – Sei que pessoas como você não costumam ser educadas, mas... entrar gritando numa casa que não te pertence? Você não acha que está passando dos limites, não? Eu sei que é da sua natureza ser bruta e pecaminosa, mas eu esperava um pouco de consideração, afinal, eu sou sua mãe. – Ela sorriu desdenhosa, adorando aquele teatro. Levantou-se, me encarando no fundo dos olhos, como se mirasse um alvo para o seu bote. – O que você pensa que está fazendo? Eu não tenho tempo para as suas bobagens.

Olhei para o céu, pedindo forças para não esganar essa mulher.

– Não se finja de desentendida, passou em todos os jornais! Não é possível que você não tenha visto! O Lucas... – Me engasguei. – Não é possível que você não se importe!

– Não grite com a sua mãe criança! – O Matheus se colocou entre nós. – Você deve respeito a ela! Nenhuma filha deve gritar com a própria mãe! Você deveria se envergo-...

– Cala a boca seu velho estúpido. – Os olhos de ambos se arregalaram; tão surpresos quanto eu mesma com a dureza das palavras. A verdade era que eu estava guardando essa raiva há muito tempo dentro de mim. Sempre com medo da reação que eles teriam... Mas eu havia chegado ao meu limite. Não dava mais a mínima para o que eles achavam ou deixavam de achar. Eu só queria dizer umas verdades na cara desses dois sem-vergonhas! – Se você não sair da minha frente agora, eu juro que irei fazer uma besteira. – Ele deu um passo para trás.

– Eu sempre soube que você era um monstro! Mas agora ameaçar o Matheus? Você perdeu o juízo? Por acaso você esqueceu de tomar os seus remédios? – Eu podia ver o veneno escorrer da sua boca.

– E SE EU TIVER PERDIDO O JUÍZO MESMO? IDAÍ?

– Menina... – Olhei para ele antes que ele terminasse a frase.

– Eu. Mandei. Você. Sair. Da. Minha. FRENTE! – Seu rosto empalideceu.

– Matheus... – Ele olhou para ela. – Faça o que ela disse. Eu quero mesmo ter uma boa conversa com essa desequilibrada.

– Mas amor... – Ele tentou argumentar.

– Não se preocupe comigo, pois se alguém sairá machucada daqui, não serei eu.

Ele me encarou.

– Eu vou estar aqui perto. Se você tentar qualquer coisa, eu irei chamar a polícia. E isso não é um blefe. – Ameaçou.

Eu esperei ele se afastar o suficiente para começar a falar, mas a minha mãe foi mais rápida.

– Então é esse o exemplo que você está dando para o seu monstrinho? É em você que ela irá se espelhar? Que futura você acha que ela terá? Entre mulher de traficante e ex-presidiária? – Meu coração acelerou. – Que foi? Eu assisti os noticiários. Sei o que está acontecendo. Achou mesmo que eu me importaria?

Senti um nó se formar na minha garganta, enquanto meus olhos ficavam embaçados por causa das malditas lágrimas.

– “Monstrinho”? É assim que você vê a minha filha? Como um monstro?

– Se ela é filha de outro, então é claro que sim! Tal mãe, tal filha. Não é mesmo?

Sorri, secando meus olhos.

– Ás vezes você se esquece que também é a minha mãe, né? Se eu sou um monstro, então você...

– Sim, eu sou! – Ela me interrompeu. – Mas o meu único erro, foi ter colocado você no mundo. Eu me arrependo todos os dias por ter feito isso.

Neguei com a cabeça desesperadamente, já chorando.

– Não...

– Se aconteceu essa tragédia na vida daquele menino, a culpa é toda sua! Isso é castigo de Deus!

– Não...

– Deus está fazendo tudo isso para te dar uma lição! Você se acha intocável, se acha a melhor... Isso é para você aprender que nem tudo na vida é como você quer! Se você comete um erro, você paga por esse erro! Por causa de você, aquele pobre menino está preso naquela cama há meses! Por sua causa ele está morrendo!

– NÃO! ISSO É MENTIRA! – Solucei. – Deus não é assim... Deus nunca usaria o Lucas para me punir... Ele é melhor que isso...

Ela riu da minha cara.

– Você é muito inocente mesmo.

O sangue subiu pela minha cabeça.

– E VOCÊ? O que você é? Você é pior que eu! Porque mesmo sabendo de tudo isso, você ficou parada! Você me abandonou quando eu mais precisei da sua ajuda! Como você sempre fez! Porque é só isso que você sabe fazer: Só sabe me ignorar! Você me odeia! – Falei a última afirmação mais para mim do que para ela. – E eu nem sei por quê... – Sussurrei, chorando forte. – Eu nem sei o que eu te fiz... – Encarei seus olhos. Eles estavam vermelhos, como se ela quisesse chorar também. – Você não tem coração? Você não tem sentimentos? Ela é sua neta... E eu sou sua filha! Pelo amor de Deus, eu estou sofrendo, estou perdendo tudo... Você não tem pena de mim? Porque você gosta de me ver sofrer? Por quê? Qual é a graça nisso? – Arfei. – O Lucas... O Lucas está em coma. Silvia, ele está em coma! Você entende o que isso quer dizer? Entende a gravidade? ELE PODE NUNCA MAIS ACORDAR! – berrei - Eu estou desesperada! Eu amo tanto aquele homem... Eu sei que você não entende esse sentimento, sei que você nunca amou ninguém deste modo, mas eu estou sem chão... E ainda tem a minha bebê... Ela é tão linda... E precisa de tantos cuidados... Eu juro que estou tentando ser forte, mas eu não agüento tudo sozinha... Eu amo tanto ela, mas sempre que eu olho para ela, eu sinto tanta dor... Ela é tão parecida com ele... Isso dói tanto, você não faz nem idéia. Tem vezes que eu simplesmente não consigo ficar perto dela, que eu não consigo escutar ela chorar... Eu sei que isso é monstruoso, mas dói muito ficar perto dela e lembrar dele... Eu não quero que a minha filha sofra, eu não quero acabar com a vida dela igual como eu acabei com a do pai dela! Eu devo ser um lixo mesmo! Devo ser a pior pessoa da face da terra, mas... Pelo amor de Deus, eu estou sofrendo tanto... E não tem ninguém para me ajudar, eu tenho que fazer tudo, tudo sozinha. Meus amigos me odeiam, e minha família... – Solucei – Eu só tenho a minha filha, eu só tenho ela no mundo inteiro, mas ela é tão parecida com ele... Isso está sendo muito difícil para mim. Eu estou tentando ser uma boa mãe, eu juro, mas eu preciso... Eu preciso de ajuda. E além de tudo isso, os médico... eles estão... querendo desligar... – De repente meu choro ficou mais alto do que a minha voz. – Como você pode ignorar tudo isso? Mãe, como você pode ignorar a minha dor? Eu só queria a sua atenção... Eu só queria o seu amor... Sempre. Mas você nunca me deu nenhum dos dois... Você nunca conseguiu ficar perto de mim!! Eu sou tão insuportável assim? Porque você me odeia tanto? Hein? O que eu te fiz, mãe? O que? – Escondi meu rosto entre as mãos. – Eu juro que não queria que o papai tivesse morrido, eu juro... Mas eu não tive culpa! – Me senti tonta. – Eu não sabia que ele ia se matar! Eu juro...

– Susan...

– É por isso que você me odeia? – Minha voz saiu baixa e assustada. Eu me sentia como uma criança de oito anos novamente. De repente a imagem do meu pai morto na garagem era tudo o que eu conseguia ver. – Porque ele preferiu passar o dia comigo e não com você? – Os olhos dela se perderam, indo parar em outra dimensão. Eu daria tudo para saber o que ela estava pensando, mas ela apenas continuou em silêncio. – Porque você não me responde? – Ela desviou os olhos de mim. – Me diz... Por favor, qual o motivo de tanto rancor? Mãe... Eu sou sua filha... Eu estou assustada, estou desesperada... Eu só quero o seu apoio, eu só quero o seu abraço... Só quero que você seja a minha mãe para variar. Isso é tão difícil assim? Você consegue ser mãe da Rose, porque não pode ser a minha também? – Meu choro era intenso e constante. – Eu preciso de você... – Ela continuava inexpressiva. – Diz alguma coisa... Diz... Mãe, diz alguma coisa... Porque você não me responde? Eu só queria saber por que você me odeia... Só queria um motivo. Só um. Se eu fiz alguma coisa... Mãe olha para mim. – Implorei. - Eu juro que não sabia que o papai ia se matar, se não eu teria te dito... Eu juro! Eu juro! Ele não... – um soluço - me disse nada... – Minhas mãos estavam tremendo; meu coração palpitante e minha cabeça dolorida. Respirei fundo – Eu estou tão cansada do seu silêncio... Isso me machuca tanto... Você não faz nem idéia. Eu estou tão cansada de ouvir você falando mal de mim... Você é minha mãe, deverei me amar! Mas você me detesta! Eu sempre fui um incomodo para você! E até mesmo agora, depois de eu dizer tudo isso, você continua indiferente... Eu só preciso de uma resposta, de um motivo, eu quero entender, por favor, me explica. O que eu te fiz? O que? Porque você ama mais a minha irmã do que eu? NÓS DUAS SOMOS AS SUAS FILHAS! NÓS DUAS! Isso não é justo! Não é justo comigo! Você não pode amar mais ela do que a mim! Nós duas somos iguais!

– NÃO! – Gritou, saindo do transe. – VOCÊS NÃO SÃO IGUAIS! – Aquelas palavras acabaram comigo. Eu sempre soube... Sempre soube que ela preferia a minha irmã...

– Me dê um motivo... – Pedi.

Ela negou.

– Eu não posso.

– Porque não?

– Você não entenderia...

A encarei por alguns minutos, o silêncio dizendo mais do que mil palavras.

– A minha filha... A sua neta, se chama Yasmin. – Olhei para o chão, cruzando os braços. – Ela é o meu tesouro, e mesmo que eu sofra estando perto dela, eu vou continuar, por que... Ela é tudo que eu tenho. – Funguei. – Eu só imploro... Por favor, a visite ao menos um dia, mãe. Ela parece um anjo de tão linda, você vai se encantar por ela. Tão doce e delicada... – Sorri, encarando os meus sapatos, mas meu sorriso logo se desfez. – Você deve isso ao Lucas. Se não for por mim, faça por ele. Ele sempre te respeitou e sempre te amou... Foi ele que me convenceu a contar sobre a gravidez para você. Porque ele tinha o sonho de que um dia você poderia amar essa criança tanto quanto nós... – Mais lágrimas rolaram dos meus olhos. – O Lucas gostava muito da senhora... Ele sempre pedia para passar os feriados aqui, lembra? Eu sei que quando você soube que ele e eu... – Não completei - Você nos odiou. Sei que você ficou magoada. Mas não culpe a nossa filha, ela é a vítima desta história. Eu já perdi os meus amigos... E já perdi o homem da minha vida... Estou sendo devidamente culpada, não se preocupe. – Eu não olhava para ela. – Mas a Yasmin não tem culpa de nada... E ela não pode crescer perto de uma mulher que chora toda vez que a pega no colo. Eu não quero que a minha filha sofra, já basta o pai estar preso em uma cama... Ela precisa de você, ela precisa dos seus cuidados... – Finalmente olhei para ela. Ela parecia ter sido atingida por um tiro. Seu rosto era apenas dor. – EU preciso de você mãe. Por favor, não me negue atenção neste momento. Eu sei que nunca vou conseguir ter o seu amor, mas não puna a minha bebê pelos meus erros... Ela é a única coisa certa que eu fiz na minha vida. – Ela fechou os olhos e duas lágrimas escorreram pelo seu rosto. – Eu imploro a sua ajuda, por tudo que é mais sagrado. Você é a minha mãe... Você é a avó da minha filha. – Tentei secar os meus olhos. – Eu sei que ninguém mais tem esperanças que o Lucas acorde, mas... eu... continuo acreditando. Ele me prometeu que iria me ajudar a cuidar da nossa filha, ele prometeu que voltaria para casa... E ele vai cumprir essas promessas! – olhei para o céu. – Não importa o que as pessoas digam, ele vai voltar para mim. Eu sei que você não entende, mas o Lucas é a pessoa mais especial que eu já conheci. E mesmo os médicos dizendo que ele não vai voltar, eu sei que ele vai, por que... eu não posso viver sem ele. Minha vida não terá sentido sem ele. Eu preferiria mil vezes a morte... Eu sei que nunca tive coragem para dizer essas coisas para você, mas agora minha vida já está tão perdida, que eu nem me importo mais. – Dei de ombros. - Eu acordo todos os dias por causa da minha filha, só por ela, por que se não fosse por isso... Eu já teria me matado há muito tempo. Estou dizendo isso porque eu penso nisso todos os dias, mas eu não posso me matar... Eu não posso deixar a minha filha sozinha. Eu não posso. Mas eu também não posso viver sem ele... Eu preciso escutar ele me chamar, preciso escutar a sua risada... Preciso que ele me olhe e me diga que me ama. Eu sonho todas as noites que ele acordou... Sonho com ele abraçando a nossa filha, a fazendo sorrir... – Suspirei. – Tudo está tão confuso sem ele. Eu não quero que a minha filha cresça me vendo assim, você entende? Eu não quero que ela pense que eu não gosto dela, mas é tão doloroso ficar perto dela... Até o cheiro dela me lembra o cheiro dele. Eu não tenho mais forças... Sinceramente, nem sei por que estou te falando tudo isso... – Sorri triste. – Afinal, você não se importa, não é? – Ela virou o rosto para o outro lado. – É. Eu sabia. – Olhei para os lados, como se procurasse a saída. – Mesmo assim... Agradeço por me escutar. Deve ter sido a primeira vez em toda a minha vida. – E saí da casa. Ela não disse nada e muito menos pensou em me seguir.

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, antes de ir para a minha casa, passei em uma floricultura, comprei uma rosa branca e em seguida fui até o hospital. Depois de pegar o meu crachá de visitante, cumprimentar a recepcionista e alguns médicos, caminhei até o quarto do Lucas. Uma enfermeira estava cuidando dele quando entrei.

– Olá Tereza. – Ela sorriu quando me viu.

– Olá senhorita Susan. Como a senhora está hoje?

Caminhei até a cama onde ele estava deitado. O Lucas não tinha mais nenhum machucado. Ele estava perfeito outra vez.

– Bem. – Disse simplesmente.

– Não trouxe a pequena?

– Hoje não.

– Que pena, eu gosto tanto dela. – Ela riu brevemente, mas parou quando percebeu que eu estava triste. – Me desculpe a indiscrição, mas eu ouvi dizer que a senhora está pensando em deixá-lo ir, é verdade? – Ela parou de fazer o que estava fazendo e me encarou.

Peguei o pequeno vaso com água de cima da estante, retirei a rosa murcha, caminhei até o banheiro, joguei a água e a rosa fora. Depois enchi o vaso novamente e voltei a colocá-lo em cima da estante.

– Faz seis meses, Tereza. – Foi a minha resposta.

Peguei a rosa branca que eu havia comprado e coloquei dentro do vaso. Quando olhei para a mulher uniformizada, ela suspirou.

– É uma pena, senhora Susan. Eu trabalho aqui neste hospital há muito tempo e nunca vi uma história como a sua. O pai entrar em coma no dia do nascimento da filha... Isso é tão assustador. – Concordei. – Sei que não é da minha conta, mas eu não acredito que a sua dor vai diminui, desligando as máquinas que deixam ele vivo. Por si só, já é um milagre ele estar vivo...

Passei a minha mão pelo queixo do meu amado.

– Eu não posso mais viver assim, Tereza. Tudo é muito dolorido. Eu não posso continuar vindo toda semana aqui no hospital visitar uma pessoa inconsciente. Eu preciso viver a minha vida. Preciso aceitar a realidade e seguir em frente com a minha vida, o Lucas iria gostar se eu fizesse isso. Estou parada no tempo, esperando um milagre que não vai acontecer. Os médicos me disseram que ele não vai voltar, não adianta eu ficar me enganado. Você não imagina a minha tristeza sempre que eu entro pela aquela porta – apontei – e vejo que ele continua na mesma situação. Eu também não quero que minha filha cresça sendo obrigada a ver o pai assim... – Respirei fundo – Além do mais, o meu seguro não pode mais pagar o hospital para cuidar dele... Isso tudo é muito caro.

– Eu entendo. Deve estar sendo difícil. Vocês já decidiram a data?

– Ainda não.

– Eu sinto muito senhora Susan. Muito mesmo. Às vezes acontecem coisas horríveis com pessoas que não merecem.

Sorri para ela.

– Nem tanto... Porque ele me deu a minha filha. Eu posso ter perdido uma razão para viver, mas ganhei outra. E se eu ainda consigo ficar em pé, falando com você neste momento, é por causa disso. Porque eu amo a minha filha demais.

– É. Talvez Deus sabe o que faz.

– Deus? – Zombei.

– Sim. Por quê? A senhora não acredita?

Dei de ombros. Eu não conseguia acreditar naquele momento.

– Deus pode existir para você Tereza, mas ele se esqueceu de mim há muito tempo, então não sei se eu acredito nele...

Ela assentiu, fitando o chão.

– Eu vou deixar vocês a sós...

– Obrigado pela conversa.

– Eu que devo agradecer. – Sorriu e saiu.

– Deus... – Murmurei, negando com a cabeça. – Você acredita nisso Lucas? – Apertei a sua mão, sentindo a maciez da sua pele. – Hoje está sendo um dia difícil. Você se lembra que dia é hoje? – Suspirei. – Desculpe, eu não trouxe os livros hoje para ler para você... E nem o rádio. Você vai ter que se conformar em escutar apenas a minha vós. – Uma pausa – Eu queria saber se você pode me ouvir ou se eu estou apenas falando com um corpo vegetando. Isso é tão... – Parei de falar, encarando seu rosto. – Você está tão bonito. Acho que jamais encontrarei uma pessoa tão bonita quanto... Ou melhor, esquece o que eu disse. Eu já encontrei. A nossa filha. – Ri. – Ela será uma deusa imaculada. Vou ter muito trabalho... Não se preocupe, eu estou cuidando dela. Ela será uma boa mulher. Eu me sentirei satisfeita se ela tiver metade do seu coração... Desculpe-me por não trazê-la hoje. Desculpe-me mesmo. Você escutou o que eu falei? Quando eu disse sobre deixar você ir? – Meus olhos se encheram com lágrimas. – Você entende, não entende amor? Entende que eu estou fazendo isso para o nosso próprio bem, não é? – Uma lágrima escorreu pelo meu rosto e molhou a mão dele. – Um dia você será capaz de me perdoar? Eu não estou abandonando você... Eu só estou tentando viver. Eu não consigo viver sabendo que você está preso nesta cama. A nossa filha precisa de uma mãe. Quando eu fiquei grávida dela... Eu jurei que seria uma mãe presente e não uma mãe relapsa. Eu quero aproveitar a infância da nossa filha... Mas eu não posso fazer isso com você aqui, sozinho... Eu não tenho essa frieza. Eu só queria poder voltar no tempo... Queria que tudo fosse diferente. Eu só queria poder dizer o quanto você é importante para mim... O quanto eu te amo. Todos os dias eu lembro de nós dois juntos, mas as lembranças são tão distantes, tão doloridas... Lucas, eu não estou desistindo de você, eu só estou dando uma segunda chance para mim. Eu juro que nunca vou amar uma pessoa como eu amei você; você é único para mim. Ninguém nunca ocupará o seu lugar no meu coração. Eu só viverei para educar a nossa filha... Só por isso. E quando ela estiver grande suficiente, eu vou me juntar a você... Você vai me esperar, não vai? Não vai? – Passei a mão pelo seu rosto. – Eu te amo.

Peguei a minha bolsa e saí do quarto, secando meus olhos.

Quando cheguei em casa, depois de pagar a babá, peguei a minha filha no colo e a levei para o fundo do quintal. Depois a coloquei com delicadeza dentro do carrinho de bebê.

– Essa é uma tradição de família. – Expliquei com um sorriso. Caminhei até a lavanderia e peguei a gaiola com o passarinho. – Eu sei que você gostou dele, Yasmin. Mas o que você prefere, ele dentro de uma gaiola ou livre? – Coloquei a gaiola em cima de uma cadeira, depois peguei minha filha no colo e simplesmente abri a gaiola. A Yasmin ficou olhando com os olhos vidrados o passarinho sair lentamente da gaiola e ganhar o mundo. Ela gargalhou, batendo palminhas. – Ah, então você gostou disso? Hn. Desculpe decepcioná-la pestinha, mas não temos outro passarinho para você libertar. Você vai ter que esperar o aniversário do papai primeiro. – Ela apertou uma mexa do meu cabelo entre as mãos. – A mamãe está ficando velha, não é mesmo? Trinta e oito anos? Meu Deus, sou quase uma múmia! – Fiz cócegas na barriga dela e ela sorriu. – Ah, então você concorda? – Ela gargalhou. – Sua anãzinha atrevida... Vamos entrar, está bem? Eu não quero que você fique gripada... Hey, que cheiro é esse? Ah, Yasmin, não me diga que você fez... – Ela bateu palminhas, toda feliz da vida por ter conseguido sujar mais uma frauda. Sorri. – Você é uma pestinha mesmo, hein?

Duas semanas se passaram. Eu estava sentada no sofá da sala amamentando a minha “filhota”, quando ouço a campainha tocar.

– Pode entrar! – Gritei, não querendo me levantar. Mas ninguém apareceu. Então me levantei de qualquer jeito e andei até a porta. Eu estava usando um short’s largo, uma regata preta, cabelo preso e descalça. A Yasmin começou a chorar quando eu tirei o peito dela. Abri a porta. – Eu disse que você podia-... – Parei de falar quando vi quem era. Ela me olhou envergonhada.

– Eu posso entrar? – Questionou, olhando para a minha bebê e depois para mim.

– P-pode. – Caminhamos até a sala. – Silvia... – Comecei a falar.

– Por favor, me chame de “mãe”, eu detesto quando você me chama de “Silvia”.

Fiquei surpresa com a sua sinceridade.

– O que você está fazendo aqui? – A Yasmin continuou a chorar e a se debater.

– Essa é a minha neta?

Respirei fundo, sem entender nada.

– É sim...

Ela sorriu. O sorriso mais sincero que eu já havia visto ela dar em toda a minha vida.

– Ela é linda, bem que você disse. – Eu não consegui evitar o espanto. – Eu posso... Posso...

– Segurá-la?

– É. Eu posso?

Olhei para os lados. Procurando por câmeras. Aquilo era algum tipo de pegadinha de mau gosto?

– C-claro que pode... Só toma cuidado porque ela está muito agitada. Ela estava mamando quando você chegou e ela fica irritadiça quando é interrompida – Passei a criança com suavidade para os seus braços.

– Ah. – Exclamou.

Como sempre fazia quando era pega por alguém desconhecido, minha filha tentou abraçar o pescoço da minha mãe, como se estivesse com medo de cair.

– Isso é normal. Ela só está assustada. – Expliquei.

– Tudo bem... – Ela sorriu. – Você fazia o mesmo quando era pequena... Sempre que eu te pegava você se debatia desse jeito, mas a diferença é que você só fazia isso comigo. – Aquilo foi o que mais me surpreendeu. Minha mãe nunca falava da minha infância. Jamais. Essa era a regra mais sagrada entre nós. – Você pode pegá-la de volta? Estou com medo que ela se machuque. – Disse incomodada.

– Não... Espere um minuto, ela só está se acostumando. Ela vai parar.

– Eu acho que não...

– Ela vai sim. Ela faz isso com todo mundo. É o jeito dela de conhecer você. – Sorri. Fiquei esperando ela se acalmar, até que finalmente ela parou de chorar e virou um anjinho naqueles braços, olhando para mim com os olhos arregalados, como se dissesse “olha mamãe, eu fiz mais um amigo”. – Viu? Ela parou.

– Parou mesmo. – Falou assombrada, sorrindo para a criança. – Você a quer de volta? – Me sentei no sofá.

– Agora não, pode segurá-la. Eu estou com os braços doloridos de tanto carregá-la.

– Ela é grandona para uma criança de seis meses. – Ela se sentou no outro sofá.

– Isso porque ela nasceu com menos de dois quilos.

– Dois quilos? Só isso?

– Ela nasceu prematura.

Não era como se fossemos amigas, eu só estava sendo educada, mas continuava atenta, pronta para receber os seus golpes.

– Ah. – Ela passou a mão pelo rostinho da criança. – Você também nasceu prematura. – Ela me encarou e sorriu. Fiquei em silêncio. O que essa mulher bebeu? – E ela tem os seus olhos...

– Mãe...

– Sim?

– Você está bem?

Ela sorriu para a criança em seus braços.

– Acho que pela primeira vez em anos, eu estou sim. – Abri a boca para dizer alguma coisa, mas eu não tinha voz. – Eu sou tão ruim assim que só posso te visitar quando estou doente?

“Basicamente” – pensei.

– Não é isso... É que depois da minha última visita, achei que você nunca mais quisesse me ver. Eu não esperava que você fosse me perdoar pelas coisas que eu te falei naquele dia... Pensei que você estava furiosa comigo.

– E eu estava. – Ela concordou. De repente tive um pensamento assustador. Será que ela estava ali para roubar a minha filha? – Até que eu percebi que eu merecia cada palavra. – Continuou. – Você tinha razão. – Empalideci. – E eu te peço desculpas.

Meus olhos se arregalam. Aquilo não era real.

– O-o q-quê?

Ela sorriu, e encarou a criança.

– Você pode levá-la para outro lugar? A conversa que eu vou ter com você não é para crianças.

– Você está brincando comigo? – Perguntei, ficando irritada. – Porque se isso for uma brincadeira...

– Não é. – Ela se levantou. – Por favor, faça o que eu te pedi. – Entregou a criança para mim.

Fiquei encarando ela por alguns minutos. Até que decidi jogar o seu joguinho. Ela estava na minha casa, não podia fazer nada contra mim.

– Com licença.

Levei minha filha até o seu quarto e a coloquei no berço. Ela fez manha no inicio, mas foi só eu entregar o seu urso e ligar o rádio que ela se calou. Passei a mão pelos seus cabelinhos, enquanto ela mordia o urso, como se ele fosse o seu pior inimigo.

Algo se acendeu dentro de mim enquanto voltava para a sala. Eu não sabia o que a minha mãe estava pretendendo com aquela visita, mas seja o que for, foi suficiente para lhe fazer largar tudo e vir até o Rio de Janeiro só para me ver em plena quarta-feira.

– Onde está o Matheus? – Perguntei, me sentando no sofá. Ela olhava para a televisão.

– Eu não sei.

– Como não sabe?

Ela suspirou.

– Não sabendo. De qualquer modo, eu não vim até aqui para falar sobre o Matheus. – Me encarou. Seus olhos não estavam tão amargos como costumavam ser, e quando ela me olhou, eu não senti medo, na verdade, eu não senti nada. – Da última vez que nos vimos você falou muitas coisas e eu fiquei quieta. E você também me fez muitas perguntas, que eu não respondi. Eu pensei muito – suspirei – e cheguei a conclusão que você merece algumas respostas. Sei que estou longe de ser a melhor mãe do mundo, mas quero que você saiba que eu me importo com você. Não é que eu goste de te ver sofrer.

– Mas é o que parece. – Fui grossa.

Ela respirou fundo.

– Eu sei. – Admitiu. – Mas é que até você me falar – seus olhos ficaram úmidos de repente – eu nunca tinha percebido que isso te machucava.

Aquilo fui o cúmulo.

– Não venha com essas desculpas esfarrapadas para cima de mim! Que tipo de idiota você acha que eu sou? Não acredito que você achou mesmo que era só chegar aqui na minha casa, elogiar a minha filha, relembrar o passado, dizer que senti muito e tudo ficaria bem! Isso é um absurdo! Você não faz idéia do que é “sentir muito”, porque você não sente nada! Você é dura como um cascalho! Eu não sei por que você está fazendo isso, talvez esteja entediada e quer rir da minha cara, mas eu não sou trouxa! Você não pode pedir desculpas e achar que eu vou esquecer tudo o que você fez comigo! Você não pode tentar consertar tudo apenas com uma desculpa de merda! Eu não sou mais criança, não vou beijar o seu pé só porque você acha que se arrependeu! Eu quero que você pegue essas “desculpas” e enfie bem no meio do seu-...

– FILHA! – Ela levantou as mãos pro alto, impedindo que eu continuasse.

– Filha? Como você tem coragem de me chamar de “filha”? Hein sua velha maluca? Como você tem coragem de me chamar de filha depois de tudo de ruim que você me fez?! VOCÊ ACABOU COM A MINHA VIDA! Você fez da minha infância e da minha adolescência um inferno! Sempre jogando na minha cara que eu era uma perdedora, que eu nasci para o fracasso! Você é desumana e sem coração! Você não faz idéia de quantas vezes eu chorei porque você não gostava de mim! Todos os dias você me ignorava e quando estávamos juntas você só sabia me criticar e mostrar que a minha irmã é bem melhor que eu! VOCÊ É UMA DESGRAÇADA! E EU TE ODEIO! Você nunca me amou! Nunca foi uma mãe para mim! Foram as empregadas que me criaram! Se não fosse por elas eu teria virado uma mulher anti-social e cheia de inseguranças! Você fazia eu me achar feia, dizia que eu não servia para nada e que estava arrependida de ter me dado a vida! Você me tratava como se eu fosse uma aberração! Como se eu tivesse culpa de tudo de errado que acontecia na sua vida! – Comecei a chorar, mas não de tristeza, de raiva. – Se dependesse de você, eu estaria morando do outro lado do país neste exato momento! SÓ PARA VOCÊ NÃO TER O DESPRAZER DE OLHAR NA MINHA CARA NUNCA MAIS!

– É! É VERDADE! – Berrou - ISSO MESMO! PARABÉNS! Você descobriu o meu segredo! – Disse irônica. – O que você quer? Um prêmio?

– Não... – Choraminguei.

– ENTÃO O QUE?!

Escondi meu rosto nas mãos

– Eu só quero saber por quê... – Disse baixo, a voz saindo abafada por causa das mãos.

Demorou alguns instantes até ela dizer alguma coisa.

– Você só quer saber o motivo? – Sussurrou, a voz igual a de uma pessoa doente. Meu coração disparou. Olhei para ela. Ela não olhava para mim, seus olhos estavam longe, muito longe. Ela nem parecia estar no mesmo mundo que eu.

– Porque é tão difícil para você falar sobre isso?

Encolheu os ombros inconscientemente.

– Eu tive que juntar muita coragem para vir até aqui... – Uma pausa – Eu passei noites em claro pensando nisso... Quando você foi à minha casa e falou aquelas coisas... Eu me senti tão mal. Como se algo dentro de mim tivesse morrido. Eu sabia que você estava certa, mas não queria admitir. Então eu comecei a pensar na minha vida... E pensei como nós duas somos e temos vidas parecidas... – Franzi o cenho. – Você está trilhando o mesmo caminho que eu trilhei no passado... Eu posso sentir, porque sou sua mãe e temos essa ligação. Mas foi só ontem a noite que eu percebi de verdade que eu posso mudar isso. – Ela encarou as próprias mãos. – A minha vida inteira eu sofri... E sei que isso nunca vai mudar, parece até que alguém me amaldiçoou... – Ela sorriu infeliz. – Durante muitos anos, eu culpei você. Eu achava que se eu estava triste, a culpada era você... Porque eu só comecei a sofrer de verdade, quando você nasceu. Depois do seu nascimento, tudo desandou. – Suspirou. – Mas agora... Você está passando pela mesma coisa, e eu não quero isso. Eu não quero que você tenha uma vida igual a minha. Eu posso não ser a melhor mãe do mundo... Mas eu não quero isso para você.

– Eu não estou entendendo...

– Quando eu tive você, eu ainda era muito jovem, quase uma criança... Eu não estava preparada par arcar com tantas responsabilidades. Eu era sonhadora, achei que tendo você, minha vida poderia virar um grande Conto de fadas. – sorriu - Como eu disse, eu era muito ingênua. Na época eu estava cursando o último ano do ensino médio... Eu não era uma boa aluna, nunca fui, mas também não era bagunceira e nem popular. Eu estava mais para a esquisita da sala... Pois eu era muito pequenininha e não tinha amigos; não porque as pessoas me odiassem ou não queriam a minha amizade, mas porque eu não gostava das pessoas. Achava insuportável ficar na companhia de desconhecidos, e sempre morria de raiva quando alguém tentava puxar conversa comigo. Mas isso mudou quando eu estava na sesta série e o menino vai bonito que eu já havia visto entrou na minha sala. Ele era perfeito... Tão diferente dos outros... É obvio que eu me apaixonei desde que o vi pela primeira vez. Eu me lembro até hoje como foi. Eu estava atrasada para a aula e quando entrei havia um garoto no meu lugar. Esse garoto era ele... Evidentemente, eu não pedi para ele sair e em conseqüência eu tive que assistir todas as aulas sentada ao lado de uma lixeira. – Um suspiro - O problema é que eu não só me apaixonei como eu também fiquei obcecada por ele. E mesmo que ele nunca pudesse ficar comigo, por sermos de mundos completamente diferentes, eu continuava amando ele cada vez mais. Eu adorava o seu cabelo... O seu cheiro... O jeito dele falar, sorrir, andar... Amava vê-lo jogar futebol depois da aula... Adorava saber que ele era o mais inteligente da sala além de ser o mais bonito... – Seus olhos brilharam – Porém, não demorou muito e logo ele virou o garoto mais popular do colégio. Ele era o atacante do time de futebol e todas as meninas eram fanáticas por ele. Mas comigo era diferente, porque ao contrário delas, eu jamais teria chance com ele. E todas as minhas tentativas de tirá-lo da minha cabeça só serviram para me deixar ainda mais obcecada. Eu o amava tanto... Sabia que não era só um sentimento bobo de adolescente. Era amor de verdade.

Tudo aquilo era novidade para mim. Eu escutava tudo em silêncio, quase sem me mexer. Eu tinha medo de falar alguma coisa e ela entender errado. Eu só queria escutar o que ela tinha para me dizer e compreender. Estava enjoada de viver no escuro. Eu precisava saber, precisava escutar da voz dela as palavras.

– Alguns anos se passaram. Nós sempre estudamos juntos. Durante muito tempo, apesar de eu admirá-lo todos os dias, em todas as aulas, ele nem percebia a minha existência. E eu não o culpo, eu era o tipo de garota invisível, que ninguém se dá ao trabalho de notar. Mas eu gostava de ser assim, até o dia do Baile, no meio do ano, quando isso mudou. Eu não sei o que chamou atenção dele, talvez tenha sido o vestido, a maquiagem, o salto ou o penteado bobo que minha mãe tinha me obrigado a usar. Eu nunca fui de me arrumar, na verdade, eu nunca fui de ir em bailes também, mas minha família achava que por ser o meu último ano, eu deveria ir, mesmo não tendo par. E como eu também não tinha amigos, eu fui sozinha. Lembro-me nitidamente do meu pai me deixando de carro na frente naquele salão barulhento. Eu estava tão nervosa, preocupada, e ao mesmo tempo, estava ansiosa... Como se já soubesse o que ia acontecer. – Ela parou por um momento e me encarou. – Quando o baile estava terminando e a maioria dos alunos já havia ido embora, seu pai se aproximou de mim e sorriu o sorriso mais bonito que eu já havia visto em toda a minha vida, que não era tão longa assim por sinal. Eu passei anos apaixonada por ele, e ele estava ali, bem na minha frente, sorrindo para mim. Você tem noção de como eu me senti privilegiada? Ele poderia ter qualquer uma, mas ele queria a mim. Até hoje eu lembro daquela noite como um sonho, uma perfeição. Ele mal perguntou meu nome e logo estávamos no carro dele. – Ela suspirou. – Até aquela noite, eu era virgem. – Deu de ombros, fazendo pouco caso. – Algumas semanas depois, eu descobri que estava grávida. Grávida de você. – Completou. – Quando eu tive a confirmação da gravidez eu fiquei desesperada. Aquela era uma época diferente, onde uma menina jamais poderia dormir com um homem antes do casamento e muito menos, ficar grávida dele... Eu perdi tudo com essa gestação; casa, dignidade, honra. Meus pais não queriam mais me ver e até minhas irmãs evitavam falar comigo em lugares públicos. Eu havia me tornado a vergonha da família e teria que lidar com isso de cabeça erguida se quisesse ter alguma chance de sobreviver. Meu pai era um homem conservador, de família tradicional e respeitada na cidade, é claro que ele não pensou duas vezes antes de expulsar a filha grávida e desonrada de casa... – Ela secou os olhos. – Mas ele estava certo, hoje vejo que se eu estivesse no lugar dele teria feito a mesma coisa. O importante é que depois que eu contei para o seu pai, ele tomou a decisão mais adequada. Casou-se comigo. – Ela riu.

– Meu pai sempre foi um homem de princípios. – Concordei.

Ela riu novamente.

– Ele pode até ter sido, mas eu não era. – Meus olhos se arregalaram. – A verdade é que ele só se casou comigo porque eu ameacei abortar você se ele não o fizesse. Ele foi obrigado a se casar.

– Você teve cora-...

Ela deu de ombros, me deixando chocada.

– Eu era uma garota inocente e apaixonada. Estava grávida e sem casa. Eu mal tinha terminado o ensino médio, não tinha como me sustentar e muito menos como sustentar uma criança. Se eu fiz o que fiz, foi para o nosso próprio bem.

– Mas e o papai, como ele reagiu?

– Com a gravidez ou com o casamento? – Ela não esperou resposta. – Surpreendentemente, a sua reação a respeito da gravidez foi a melhor possível. Seus olhos brilharam quando eu contei... Parecia que ele já estivesse esperando essa notícia. Até hoje eu acho que o sonho dele era ser pai, porque eu nunca vi um homem tão feliz ao saber da paternidade. – Ela encarou o chão. – Mas a reação dele a respeito do casamento... – Ela me encarou. – Ele fez o que era certo, isso que importa. Eu só era uma criança e estava grávida, ele tinha a obrigação de me sustentar.

– Então você usou essa gravidez para fazê-lo se apaixonar por você?

– Quando começamos a morar juntos, depois do casamento, eu achei que sim. Achei que finalmente havia conseguido fazer ele se apaixonar por mim... Mas seu pai era diferente de todos os homens. Mesmo o casamento sendo quase uma farsa para evitar fofocas da sociedade, ele agia como se fosse real. Aos finais de semana ele me levava ao clube, para tomar Sol e conhecer os seus amigos. A família dele era muito diferente da minha. Seu pai era dentista e sua mãe era uma artista, de descendência circense que largara a carreira para se dedicar ao marido. E diferentes dos meus pais, os dele achavam o nosso matrimonio lindo e imaculado. “O importante é haver respeito” o pai dele sempre repetia quando íamos visitá-los. Eram pessoas boas, e ensinaram esses valores ao filho. Passamos os primeiros quatro meses da minha gestação morando com eles, até que o seu pai conseguiu um emprego como garçom e alugou um quartinho em uma pensão para nós morarmos, e mesmo os pais dele querendo nos ajudar financeiramente, ele não aceitava; o que não significava que EU não aceitava o dinheiro quando ele não estava por perto. – Ela riu do meu olhar. – Que foi? Alguém tinha que ter bom-senso naquela família.

– Família? – Repeti perplexa.

– É, isso mesmo: Família. A SUA família. E você deveria me agradecer por estar te contando tudo isso, e não fazer piadinhas. Falar sobre isso é muito difícil para mim... Você precisa ter mais consideração.

– O que você quer, um pedidos de desculpas? Para inicio de conversa, foi você que veio até a minha casa falar sobre essas coisas. Eu não quero saber sobre o seu maldito passado com o meu pai. Isso não é da minha conta e nem vai mudar o meu presente. Não é porque você está me contando tudo isso que eu vou chorar e te perdoar.

– Eu não quero o seu perdão, eu só quero que você entenda.

– Olha Silvia, você falou um monte de coisa e até agora eu não entendi aonde é que você quer chegar.

– Porque você não esperou. – Pigarreou. – Como eu estava dizendo, o seu pai era um homem complexo. Durante toda a minha gravidez, ele me tratou como se eu fosse o amor da sua vida. Ele fazia tudo o que eu queria e nunca discordava de mim. Eu podia pedir a coisa mais absurda do mundo que ele fazia prontamente, como um cachorro treinado. Aqueles quase oito meses foram os melhores da minha vida. Eu amava estar com ele e tinha a ilusão de que ele também amava estar comigo. – Os olhos dela se encheram de lágrimas. – Mas ele não me amava de verdade. Ele só amava estar com você, a filha querida dele. Eu tive a confirmação disso depois do seu parto. Eu tive você em situações muito precárias. Você nasceu prematura e como se não fosse suficiente, você começou a nascer ainda no estacionamento do hospital, dentro da ambulância. Foi o pior dia da minha vida. Eu pensei que ia morrer... Pensei que você ia me matar de tanta dor. Ter você foi como se alguém tivesse sugado todo o sangue do meu corpo e convertido em pó. Eu costumava brincar que desde o começo, você marcou a minha vida com dores e cicatrizes. Eu fiquei internada por nove dias por causa disso, e a maior parte do tempo eu passava inconsciente por causa dos analgésicos. E durante todo esse tempo, o seu pai não me visitou nem uma única vez! – Ela arfou, a lembrança a pertubando mais do que qualquer outra. – Você não tem idéia do que isso significou para mim. – Trincou os dentes - Não tem idéia do quanto eu sofri por causa disso. Eu tive a confirmação de todos os meus medos, ele só estava comigo por SUA causa! Ele não me amava, ele amava você! – Falava alto. Fiquei assustada – E quando eu estava consciente e perguntava para a enfermeira onde ele estava, ela sempre respondiam a mesma coisa. “Ele está no berçário, senhora”. – Imitou a voz, sendo muito irônica e fria. – Ele... Ele havia me abandonado. Depois de oito meses de mimos e caricias, ele havia me abandonado. E tudo só piorou quando voltamos para casa... Se eu era obcecado pelo seu pai, então ele era por você. Todas as noites quando você chorava como uma sirene quebrada, não importa que horas fosse ele se levantava e ia ver o que tinha acontecido. Seu pai era o marido que toda mulher sonhou. – Disse como se fosse um defeito. – Ele amava te dar banho, passear com você, preparar a sua comida, dar mamadeira e até mesmo trocar as suas fraudas. Que tipo de homem gosta de trocar as fraudas de uma criança? – Ela riu desgostosa – Isso para mim era um pesadelo. Ele não era apenas seu pai como ele também era a sua mãe. Parecia que ele estava querendo me mostrar que não precisava de mim para nada, que podia muito bem te criar sem a minha ajuda. Nos primeiro meses eu achava que ele fazia isso para me irritar, mas depois eu percebi que não era por causa disso; pois o seu pai simplesmente não pensava em mim nem um segundo do dia, eu havia ficado invisível de novo para ele, como se tivéssemos voltado para o ensino fundamental. Ele era fanático por você, como um religioso é fanático por um santo. Eu achava até que ele seria capaz de fazer um altar para você, só para te adorar ainda mais. Você era a vida dele... e eu... Eu não era nada. – Uma lágrima escorreu – Nem a sua mãe eu podia ser... Porque até esse direito ele me tirou. – Arfou. – Você era tão linda quando pequena, parecia um anjinho... com suas mãos gordinhas e olhos azuis. Tão bela a minha princesa... Você era a criança mais bonita que eu já havia visto – Ela riu brevemente. Mas depois balançou a cabeça, negando. – Mas você nunca foi minha... Eu achava que eu estava sofrendo por causa do seu pai, e te culpava por causa disso, mas agora eu vejo que a maior dor... Era ter perdido você. – Fungou. – Eu só queria ser sua mãe, só queria ter uma família, queria que o seu pai me amasse. Eu estava cega de amor. E cega de ódio por você. Todos os dias, ele te abraçava, te colocava para dormir, te mimava... E comigo era completamente diferente. Eu virei a amiga dele. Ele não tinha nenhum interresse por mim, pelo meu corpo... – Uma pausa. – Eu amava tanto ele... Porque ele não podia me amar? Como eu disse, eu era muito ingênua e guardava rancor muito fácil. Eu não queria acreditar que ele não me amava porque éramos muito diferentes, então eu coloquei toda a culpa em cima de você. Eu te odiei todos os dias. Te odiei quando você aprendeu a andar, quando aprendeu a falar, quando aprendeu a andar de bicicleta... Sempre. – Ela sorriu infeliz. – E você também... Você também não gostava de mim. Porque sempre que eu te pegava no colo para te alimentar, você se debatia como se eu fosse uma leprosa. A sua primeira palavra não foi “mamãe”, foi “papi”. E quanto mais você crescia, mais você gostava de ficar com o seu pai e se afastava de mim... Eu me sentia abandonada, sozinha... Eu me sentia um lixo, você não sabe o que é isso. Essa sensação de abandono... Isso é a pior sensação do mundo. Amar alguém como eu amava o seu pai e não ser correspondida... Isso era o fim para mim. Eu não era capaz de suportar...

Ela começou a chorar. Fiquei sem reação.

– Eu era só uma criança... – Tentei argumentar.

Ela sorriu, mesmo chorando.

– Você era a minha filha... E nunca gostou de mim! Você não precisava falar para eu saber, porque eu já conhecia muito bem o que é ser desprezada pelas pessoas. Você sempre gostou mais do seu pai do que de mim... Porque vocês dois eram muito parecidos... E mesmo tendo a minha aparência, por dentro, vocês eram iguais. Eu não conseguia entender porque quando eu estava grávida ele havia me tratado de um jeito e depois do seu nascimento ele havia mudado completamente comigo... Então conclui na minha cabeça que ele havia me trocado por você. Então eu decidi que iria obrigá-lo a me amar outra vez. Eu decidi que iria dar mais um filho para ele... Desta vez um menino, porque eu sabia que todo homem tem o sonho de ter um menino... – Ela passou a mão no queixo, piscando várias vezes. – Eu fiz de tudo para engravidar, mas seu pai simplesmente não tinha interesse em mim. Eu cheguei até a pensar que ele estava me traindo, mas seu pai não era capaz de fazer uma coisa dessas... Ele era bom demais e sincero demais, como você. Mesmo ele não gostando de mim, ele era educado e respeitador, sempre valorizando o nosso casamento. Mas eu sabia que se quisesse ter além do seu respeito eu teria que dar mais filho a ele. Então um dia, enquanto você estava na casa dos pais dele, eu o embebedei... – Ela riu com a lembrança – e nós dormimos juntos. Foi a segunda noite mais maravilhosa da minha vida... No dia seguinte ele ficou tão assustado e envergonhado quando me viu nua ao seu lado da cama... – Gargalhou – Seu pai era um homem encantador, tão ligado a regras bobas de convívio... Eu adorei ver que pela primeira vez eu tinha o controle. Ele não podia mais me ignorar depois daquela noite... Eu havia acendido uma chama... Havia mostrado para ele que eu podia satisfazê-lo. E seu pai como qualquer homem... Caiu na minha armadilha. Nós vivemos como marido e mulher por algumas semanas... E a noite, quando você chorava toda manhosa pedindo por ele, ele não se levantava, porque estava muito ocupado comigo. – Ela sorriu vitoriosa. Como se aquilo fosse algum tipo de competição. Fiquei sem palavras. – Mas a minha felicidade não durou muito... – Seus olhos se perderam no tempo – Porque um dia eu combinei de sair com ele, nós iríamos ao teatro, eu estava louca para assistir a peça... – Suspirou. – Mas seu pai não apareceu. Eu fiquei furiosa e quando cheguei em casa, fiz um escândalo. A pior parte foi saber que ele tinha se esquecido... Acredita? Ele estava tão ocupado brincando com você, que se esqueceu de mim. Eu quis matá-lo naquele dia. – Disse fria. – Quis matar você... A criança maldita que tinha roubado meu amor... Que tinha hipnotizado o meu marido. – Começou a chorar – Eu fiquei tão nervosa, mas tão nervosa que depois de horas brigando com ele, eu desmaiei no meio da sala.

Meus olhos se arregalaram.

– Pois é. Quando eu acordei... Eu estava em um quarto de hospital e o médico me disse que eu havia – um soluço – perdido o meu filho... O filho que eu nem sabia que eu ia ter. – Uma longa pausa. – Ah, mas tudo ficou ainda pior quando o seu pai entrou no quarto... Eu nunca havia recebido um olhar como aquele. Nunca. Nunca mesmo. Nem meu pai quando soube da minha gravidez me olhou daquela maneira... – Sua voz engasgou – Eu perdi o chão, o ar, a razão... Seu pai nunca mais mostrou afeto por mim depois disso. Sabe, ele me culpava pelo que tinha acontecido... Ele achava que eu tinha matado o nosso filho. Ele dizia que eu sabia e que tinha feito de propósito.

Uma lágrima escorreu pela minha bochecha. Eu estava... chorando?

– Eu juro, filha, eu juro... Eu não sabia. – Escondeu o rosto nas mãos – Mas ele me culpava...

– Mãe... – Tentei acalmá-la.

– Ele nunca me perdoou. Nunca. Para ele eu era uma assassina. E tudo ficou ainda pior. Se antes a minha vida já não era boa, depois disso... – não terminou. – Eu morri naquele dia Susan. Eu morri. A dor que eu sentia... tanto pela perda quanto pelo olhar furioso do seu pai... Tudo era como uma cova para mim. E eu queria entrar naquela cova, encher ela de terra e ficar lá para o resto da eternidade, apodrecendo. Seu pai nunca mais foi o mesmo... Ele sempre foi um homem alegre, sorridente... Mas depois da perda do filho... Ele mudou completamente. Vivia andando de cabeça baixa, começou a beber, a fumar... Eu tinha acabado com a vida dele quando perdi aquela criança. Hoje quando eu penso nisso... Eu acho tudo tão estranho. As pessoas vivem tendo abortos, é algo natural até. Mas o seu pai... Ele enlouqueceu quando aquela criança morreu. E além dele me odiar... Você também. Eu não sei como você entendeu o que estava acontecendo... Eu não sei como você compreendeu que o seu pai estava triste por minha causa, mas depois daquele dia você também começou a me olhar diferente... Você era só uma menininha, deveria ter três anos... Não entendia nada da vida. Era só um bebê, mas você era a que mais me punia. – Ela encarou o chão. – Para você eu era uma estranha, uma vilã... E para mim, você era a culpada de tudo. – Mordeu os lábios raivosamente e entrelaçou as mãos. – Eu tive que juntar muita força para não me matar... – Ela me encarou – E hoje eu me arrependo. Porque se eu tivesse me matado, o seu pai... – Seus olhos estavam vermelhos – Ele estaria vivo.

Comecei a chorar. Pela primeira vez, eu senti a dor dela e pela primeira vez eu me importei.

– Você não pode se culpar por tudo. O papai fez uma escolha. Não foi você que apertou o gatilho, foi ele.

Ela riu baixinho.

– Você é tão parecida com ele. Ás vezes eu até posso vê-lo vivo nas suas palavras. Você é a única coisa boa que eu fiz na minha vida, você e a sua irmã.

– Minha irmã... – Murmurei.

– O seu pai sabia. Ele sempre soube.

– O meu pai sabia o que?

– Que ela não era filha dele. Eu não seu como ele descobriu... Mas eu sei que ele sabia, porque ele nunca tratou ela como tratava você. Era completamente diferente. Ele não tinha paciência para ela e sempre se irritava.

– Se a minha irmã não é filha do meu pai, então de quem ela é filha?

– De um cara que eu conheci em uma festa... Quando eu perdi o seu irmão, eu fiquei tão desesperada que achei que se eu tivesse um filho talvez o seu pai pudesse me perdoar. Mas o seu pai não me... procurava, o que dificultava tudo. Então eu tive que procurar outros meios.

– A minha irmã sabe disso?

– Não e nem pode saber! Ela jamais me perdoaria...

Assenti.

– Eu só não entendo porque você sempre gostou mais dela... Nós somos as suas filhas, você deveria gostar de nós duas por igual.

– Não era que eu preferisse mais ela de que você, Susan. Mas é porque na minha cabeça, a Rose era igual a mim, porque ela também havia sido menosprezada pelo seu pai... Ela também sofria pela indiferença dele. Ela cresceu sendo ignorada, cresceu sendo sempre a Segunda filha. Isso mexeu muito comigo... Eu me sentia no dever de acolher ela, de mostrar que ela também podia ser boa... Porque na minha cabeça, ela era eu. Entende? Eu só queria dar para ela o carinho que nunca ninguém me deu. A Rose nunca foi uma criança merecedora de admiração, ela não era igual a você. Ela tinha vários defeitos, era gananciosa, mesquinha, invejosa e muito superficial, isso tudo desde pequena... Eu sou capaz de me ver nela até hoje. Mesmo ela tendo a aparência completamente diferente da minha, internamente ela é muito parecida comigo. – Ela riu – É engraçado, não é? Você que tem os meus olhos, os meus cabelos, a minha cor... É completamente diferente de mim, e ela que fisicamente não tem nada haver comigo, é quase uma cópia da minha personalidade. O mundo é estranho.

Tentei sorrir.

– Porque você nunca me disse nada disso?

– Porque eu estava muito ocupada sendo desagradável. Eu me sentia bem te maltratando, porque era assim que seu pai me tratou nos últimos anos da vida dele. Ele só não se separou de mim, porque não queria se afastar de você. Mas acho que chegou um momento em que ele perdeu o controle da própria vida. Quando ele era adolescente, ele fez tanto planos, ai de repente ele vê a vida dele desmoronar de um dia para o outro... Isso deve ter mexido muito com o psicológico dele. Além disso, depois que ele perdeu os pais, acho que a vida não fez mais sentido... Talvez tenha sido por isso que ele se matou. – Ela secou os olhos – Eu passei pela mesma fase que você está passando agora. Porque eu perdi o homem da minha vida, o único homem que eu amei de verdade, da maneira mais traumatizante que era capaz. Porque não foi o destino que tirou ele de mim, foi ele próprio. Foi ele que deu um “fim” em tudo... E ele se matou sem se despedir de mim, você lembra? Ele passou o último dia da vida dele com você... Ele agiu como se eu não existisse. Eu senti tanta raiva dele... Senti tanta raiva de você... E ao mesmo tempo, eu só queria te abraçar, queria te ter em meus braços... Você era a única coisa dele que me restou. Mas era insuportável olhar para você e lembrar de tudo... E quanto mais você crescia, mas você se parecia com ele e eu ficava com mais raiva. Eu sei que era difícil para você me ter longe, mas eu precisava ficar longe de você. Eu sei que você precisava de uma mãe, mas desde que você nasceu eu nunca tive a oportunidade de ser a sua mãe... Nunca. Eu fiquei assustada, fiquei com muito medo... Eu ficava pensando que se eu não consegui fazer o seu pai feliz, eu nunca conseguiria te fazer feliz. Porque vocês dois são muito parecidos... E quando você foi na minha casa e me contou os seus sentimentos... Eu vi que você está passando pela mesma fase que eu passei quando perdi seu pai. E você também disse que não consegue ficar perto da sua filha sem se sentir deprimida, angustiada, e é exatamente o que eu também sentia. Eu passei anos sofrendo a morte do seu pai e até hoje eu sofro. Porque ele era o amor da minha vida, ele era tudo para mim... Exatamente como o Lucas é para você. – Comecei a chorar - Eu fiquei tão assustada quando vocês me contaram que estavam juntos... Eu achei isso tão absurdo. Mas o que mais me assustou foi ver que você olhava para ele exatamente como eu olhava para o seu pai. Eu sei que está sendo insuportável suportar tudo isso sozinha... Eu já passei por isso, mas você precisa ser forte, minha filha. Você tem a força de mil mulheres, por muito tempo eu achei que você tinha herdado isso do seu pai, mas... – Seu choro ficou intenso – agora eu vejo que você herdou de mim, eu vejo que você é igual a mim, mas a diferença da sua irmã, é que você herdou a melhor parte de mim... Você herdou a minha coragem para viver.

– M-mãe... – Minha voz saiu como a de uma criança assustada.

– Você é a minha filha. O meu tesouro... E eu... Eu... Te amo muito Susan. Meu amor por você transcende a alma. – Perdeu o ar - Eu sei que eu não mereço o seu perdão, sei que eu sou um monstro que só merece o seu ódio... Mas pelo amor de Deus filha, deixa eu ser a sua mãe pelo menos uma vez na minha vida. Não me tira esse direito, por favor. Eu não quero que você tenha que passar por tudo isso sozinha como eu passei... Eu quero estar do seu lado, quero segurar a sua mão. Eu quero me redimir. Você é tão importante para mim... Você é a minha luz... Eu sei como é perder o seu grande amor, mas eu vou estar aqui para te ajudar a superar esse momento... Eu vou estar sempre ao seu lado, eu não quero mais me esconder atrás de um monte de indiferença... Eu não quero mais te enganar. Não quero mais mentir.

Me levantei e a abracei com força. Ela ficou surpresa, mas retribuiu o abraço.

– Eu só queria que você fosse a minha mãe... – Chorei as palavras.

– Agora eu vou ser querida. Se você permitir, eu serei. E-eu te amo.

A apertei ainda mais.

– Eu também, mãe. Eu também.

.

.

(...)

.

A vida é estranha. Porém, mas estranho que a vida são as pessoas que a vivem. Ás vezes, quando estamos tristes, Deus manda pequenas mensagens do Destino, para que possamos superar aquele momento melancólico. Porque momentos ruins existem para que saibamos dar valor aos momentos bons. Porque se não conhecêssemos o mal, jamais saberíamos a importância do bem. Na Era em que vivemos tudo é muito rápido, tudo é muito simples. Eu sinto falta do romantismo, sinto falta da beleza do complexo. Porque sou brega, porque sou careta; porque sou mulher, sou romântica, sou poeta. Sei ser boba e inconveniente, mas prefiro ser especial e marcante.

A beleza da vida está em vivê-la como se ela nunca tivesse fim. A beleza do erro é aprender com ele. As pessoas estão neste mundo para evoluir, para serem felizes; andarem para frente e nunca para trás. Deus não manda ninguém para esse mundo em vão. Ele tem um livro escrito com a história de cada um de nós. Você acredita em Deus? Acredita no Destino? Você, isso mesmo, você ai do outro lado, com os olhos atentos nas palavras escritas aqui, você acredita em amor? E porque não acreditar, não é mesmo? Os sonhos são feitos não para serem esquecidos, mas para serem realizados. Eu tenho esperança que um dia todo mundo conhecerá o seu amor verdadeiro. Acho mais fácil viver assim, tendo esperança. A vida fica mais bonita, mais colorida, quando não se tem medo de vivê-la. Eu não vou deixar de passear de avião, porque tenho medo dele cair, não é mesmo? Assim como eu não vou deixar de sair da minha casa com medo de ser assaltada, esfaqueada e sabeseláoquemais. Porque se eu fizesse isso, iria viver em um mundo completamente louco. Que vida é essa controlada por medos e anseios? Qual o sentido de permanecer vivo, se poeticamente você já está morto? Para mim, todas as pessoas no mundo são corajosas. Porque a coragem delas está presente até no fato de pela manhã, as cinco horas da matina (vale-me Deus), elas abrirem seus pequenos e brilhantes olhinhos e darem bom-dia ao novo amanhecer. Porque, a meu ver, precisa ter coragem para enxergar o mundo como ele é, e ainda ter vontade de se entregar a ele. Imagine que neste momento uma pessoa está morrendo... Imagine. Isso não é triste? Agora sorria, porque isso não esta acontecendo com você. Eu gosto das pessoas, porque se não gostasse delas, eu não iria gostar de mim. Eu gosto do desconhecido, porque eu não gosto de mesmice, porque não tolero chatice. Eu sou louca, insana, mas minha vida é ainda pior que eu. A única certeza que o ser humano tem é que um dia ele vai morrer, mas ninguém sabe o que tem do outro lado. Eu gosto de imaginar o paraíso como um grande supermercado, onde vende minhas marcas preferidas de chocolates, biscoitos e salgadinhos. E dentro deste supermercado da vida (exatamente, eu disse ‘vida’ e não ‘morte’) eu encontrarei organizando as prateleiras o meu pai, minha duas avós, meus dois avôs e a minha tia Vilma, e todos estarão bem, vivos, sorrindo para mim. Eu gosto de imaginar o paraíso como um lugar cheio de comida e de sorrisos. Porque para mim, só isso já é suficiente.



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Notas finais do capítulo

Bom, falta somente mais um capítulo e o epílogo. A história já está completamente digitada, mas só vou postar o final quando comentarem.



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