A Face Oculta Da Lua escrita por Lady Salieri, Nami Otohime


Capítulo 15
Cap.10: O beijo do arlequim e a lua crescente (I)


Notas iniciais do capítulo

"Ela já não conseguia mais respirar. Sentiu o coração rasgar-se em dois dentro de si, levando uma mão ao peito e a outra à tigela com arroz, derrubando-o ao chão. Teve a plena certeza de que vislumbrava com toda força a face da morte e percebeu-se aterrorizada por tal constatação."



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Lyene despertou pesada como o som do alarme antigo. Passara uma noite de morte, dolorida e sem sonhos, constatando imediatamente que eram preferíveis os pesadelos cotidianos de antes-de-se-lembrar...

Levantou-se, os ombros queixosos em dores e arrependimentos. Arrastou-se para o banheiro, despindo-se com dificuldade e lavando-se rapidamente na água fria, cuidando para não estragar os curativos tão bem feitos... Entrou em seguida na banheira, encolhida, abraçando os joelhos. Bem era verdade, não se havia desenrolado de si desde o dia anterior. Seria tão mais simples pensar de cabeça fria... Mas nem toda água do mundo seria capaz de lavar-lhe a cabeça por dentro. Seria, afinal de contas, ruim, permitir-se...? Claro que seria, não poderia haver espaço para esse tipo de coisa na sua cabeça. Por permitir-se coisas demais lutara desgraçadamente contra Jedyte no dia anterior. Sentia-se impotente e envergonhada. Era muito melhor do que aquilo. Como as coisas chegaram a tal ponto? Ela, a protegida de Serenity – a filha de Serenity – a responsável pelos assuntos de defesa do reino. Uma comandante, uma sentinela! Não. Não... Só restava ruínas de tudo o que fora. O que era importante – agora? Encontrar e destruir o Negaverso era o mais importante, claro! Treinar para isso exaustivamente... Por que se enchia de dúvidas? Por que aquela imagem do beijo relampeava em sua cabeça ofuscando tudo o mais? Os assuntos de defesa do reino eram sua prioridade. E se Alexandrite, o líder do clã Black Moon, achasse o pégasus, casaria-se com ele, conforme combinado, protegendo o reino e controlando o clã, como pretendia em seus planos. Não lhe parecia difícil... Mas Takeo seguiria sendo a pessoa com quem ela sonhava, escondida até de si própria... O braço que a cercava, os olhos que gritavam pedindo explicações, o corpo que colava-se transtornadamente ao seu, as lágrimas, a força com que a segurava de maneira a impedi-la de ir à guerra, a roupa manchada de sangue, as mãos que deslizavam buscando-lhe sob o vestido... E Mihara, morta...Mihara...

Levantou-se de uma vez, lançando as lembranças na banheira. Todo seu corpo latejava de uma necessidade que lhe escapava de um selo escuro de muito tempo... Saiu da banheira, com medo de que as lembranças lhe permeassem a pele se continuasse ali, secou-se e vestiu-se rapidamente. A casa, grande como nunca fora, fria como nunca fora e escura como nunca fora, denunciava que ele não voltara desde o dia anterior. De início pareceu-lhe bom que não houvesse voltado, fazendo-a precisar até mesmo deste espaço, deste frio e desta escuridão. Entretanto não aguentou respirar o silêncio por muito tempo, as perguntas perfuravam a poltrona, as almofadas e as plantas, deixando tudo com aspecto ressecado. E todas elas acompanhadas daquele aroma com o qual estava tão acostumada, delatando em maior escala a falta...

Respirou fundo. Antes que jogasse tudo ao chão, pegou a chave, e decidiu fazer seu desjejum no fliperama.

Caminhava a passos largos, olhando fixamente o chão, cuidando para não pisar as linhas ou os sulcos. Uma brincadeira de criança que lhe era pertinente ali, demasiado pertinente...

Chegou à porta do estabelecimento que se abriu automaticamente, revelando uma atípica parede de algodão azul celeste barrando-lhe o caminho. Levantou a cabeça lentamente, com a consciência do porvir desnudando-se aos poucos, terminando no preciso encontro aos acobreados olhos preocupados de Takeo.

O coração parou de bombear-lhe sangue por um momento, fazendo-a sentir o corpo esfriar e anestesiar-se gradativamente.

– Você está bem? – Ele disse, sobrancelhas contraídas.

– Sim... – Ela notava sua aparência cansada mal disfarçada em um aspecto algo abandonado.

– Desculpa, ontem, eu... – Ele curvou-se ligeiramente sobre ela.

– Sem problemas... – Ela abaixou o olhar pelo peso que fazia doer-lhe mais ainda os ombros.

– Já tomou café? – Ele passou as mãos pelos cabelos, Lyene não soube interpretar isso.

– Ainda não... E estou faminta... – Ela esboçou um meio sorriso que serviu como um esboço de ponte sobre aquele abismo.

– Eu imaginei, por isso tomei a iniciativa de pedir um asagohan* pra você. Pra mim só um chá porque já fiz meu desjejum. Espero que não se importe – ele retribuiu-lhe o sorriso e ela pôde sentir a ponte firmando-se outra vez.

– E você sabia que eu viria para cá.

Ele esfregou os olhos, nervoso:

– Eu pensei que você não conseguiria te preparar nada por causa dos ombros. Não tive absolutamente nenhuma dúvida de que viria...

– Sem problemas. Só me pareceu engraçado.

Ele endireitou-se de súbito, como que se reerguendo:

– Então vamos?

Entraram. Takeo levou-a até uma mesa e rapidamente Andrew trouxe o que Takeo pedira. Ele veio sorridente em direção à mesa, mas mudou bruscamente o semblante assim que se deu com o estado da amiga:

– Lyene, a cada dia que eu te vejo, parece que você está pior... O que foi dessa vez?

– Coisas do karatê, meu querido.

Andrew sorriu meneando a cabeça em negativa, não acreditava em uma palavra, mas não sabia exatamente no que acreditar para tornar aqueles machucados eventuais de Lyene algo que fizesse sentido:

– Certo... Eu não posso ficar muito, porque o lugar está cheio, mas depois aparece, para conversarmos. Tenho sentido sua falta por estes dias.

Ela sorriu. Era verdade. Não se falavam há muito tempo, desde que se lembrara de tudo... Seus sentimentos pelo Andrew não mudaram, obviamente, mas tudo à sua volta havia mudado, e não sabia como mostrar isso ao amigo sem comprometer aquele laço que tinham.

– Vocês dois não conversem como se eu não estivesse aqui – disse Takeo, mexendo os ombros, recuperando o semblante brincalhão. – Eu também quero participar destas reuniões.

Andrew sorriu:

– Com você já falei demais, ontem, Takeo, deixe-me dedicar um tempo agora à minha amiga.

Takeo cruzou os braços em mágoa fingida e Andrew saiu, sorrindo.

Lyene avançou no tamagoyaki** e numa xícara de chá verde. Sorveu um gole. Takeo pegou uma xícara de chá, trazendo-a para perto de si, deslizando o dedo indicador na borda.

– Precisamos treinar, Takeo, e muito. Eu preciso de um treinamento intensivo, não vamos vencer o Negaverso lutando como ontem... - Ela começou, desabafando uma justificativa que queria que fosse suficiente. Deu-se conta disso e colocou um grande pedaço da omelete na boca, privando-se das suas próprias desculpas insuportáveis.

– Desde pequeno eu tenho um sonho estranho, Lyene... - Ele ignorou-a por completo.

Lyene olhou-o, mastigando a omelete, com a xícara de chá na outra mão. Ele havia se afundado na cadeira e parecia quase transparente, naquele aspecto pesado:

– Desde muito garoto isto acontece, a Mihara vem até mim, nua, me beija longamente, dizendo que está próxima a hora de ficarmos juntos, e fazemos amor por longas horas, até que acordo...

As mãos dela começaram a tremer, obrigando-a a pousar a xícara na mesa.

– Por muito tempo eu esperei as noites para poder ter este sonho porque era uma maneira, mesmo que egoísta, de poder estar com ela...

Lyene assentia, de cabeça baixa. Observava as mãos suando insensivelmente por debaixo da mesa enquanto sentia-se invadida aos poucos por um frio cada vez mais cortante por dentro da pele.

– Eu não quero entrar em detalhes, mas esse sonho sempre tem sido real a ponto de me fazer despertar, digamos, impropriamente....

Lyene sentia a respiração pesar aos poucos.

– Mas a questão é que... Desde que eu te encontrei e que estivemos convivendo, esses sonhos têm ficado mais fracos e distantes.

– Takeo...

– “Me” espera terminar.

– Eu...

– Por favor, Lyene: a questão é que ontem especificamente não sonhei nada. Sinto que estou livre de uma coisa que eu não entendo. É aquela mesma clareza de que te falei naquela tarde no parque, a mesma pela qual fui invadido no milênio depois que...

Ela já não conseguia mais respirar. Sentiu o coração rasgar-se em dois dentro de si, levando uma mão ao peito e a outra à tigela com arroz, derrubando-o ao chão. Teve a plena certeza de que vislumbrava com toda força a sua morte e percebeu-se aterrorizada por tal constatação.

Takeo levantou os olhos, assustado, e ela agarrou seu braço apertando-o com força:

– Me leva para o hospital...

O ar descia sinuoso por seu tubo respiratório, fazendo-a chiar de dor desespero, o coração derramado impossibilitado de qualquer ação. Takeo levantou-se, ainda preso a ela, e gritou pelo Andrew, pedindo por um saco de papel, que lhe foi entregue imediatamente:

– Respira aqui, e concentra na sua respiração, e não pensa em nada que não seja isso.

Enquanto ela o fazia, ele sentou-se ao seu lado, sem que ela deixasse de segurar seu braço. Percebeu-a lividamente gelada. Trouxe-a para junto de si, esfregando seus braços, na tentativa de aquecê-la. Era tudo muito mais do que um mero capricho... Meu Deus, Lyene, quando você vai entender que aqui você é um ser humano?!

Lyene encostou a cabeça no seu ombro, precisava apegar-se a ele para não morrer, para não sumir. Esforçava-se para manter o controle da sua mente na respiração, que ia se normalizando pouco a pouco.

Alguns minutos depois, ela já abandonava o saco de papel, amassando-o, devagar. Desvencilhou-se de Takeo, debruçando sobre a mesa.

Takeo tirou a camisa que levava por cima de uma camiseta cinza, cobrindo-a, ainda na tentativa de aquecê-la.

– Está tudo bem, Takeo, eu já... – Ela tentou dizer, olhando o branco da superfície da mesa.

– Eu sei, fica tranquila... – Takeo jogou a cabeça para trás, descansando as costas no encosto do banco.

Ela puxou a camisa para si. Andrew voltou com uma vassoura e uma pá de forma a recolher os cacos e o arroz que caíram no chão, ainda que não passasse de um pretexto para ver como ela estava, sem ser invasivo:

– Licença, meninos.

Lyene olhou-o, levantando-se imediatamente e curvando-se envergonhada:

– Me desculpa, Andrew! Não foi de propósito, eu prometo que vou pagar pelo estrago!

Andrew sorriu, complacido:

– Fica tranquila, Lyene. O importante pra mim é saber se você está melhor.

– Estou ótima, na verdade, o que é estranho – disse olhando os braços.

– Eu vou trazer outra tigela de arroz pra você, fica tranquila.

Andrew limpou tudo habilidosamente e se retirou. Lyene voltou a se sentar e mirou Takeo, que olhava pra cima.

– Obrigada. Eu pensei que fosse morrer.

Takeo virou a cabeça em sua direção:

– Não se preocupe... E a senhorita, Comandante, precisaria de muito mais do que isso para morrer.

Lyene sorriu, pegando a xícara de chá e tomando o resto. Lembrou-se da fome que sentia, recomeçando a comer o tamagoyaki:

E o Senhor Comandante poderia me dizer do que fui acometida nos minutos passados?

Ele endireitou-se no banco, sorrindo, melancólico:

– Na verdade... Não. Vou te dar o benefício da dúvida.

Lyene arqueou as sobrancelhas:

– Você sabe que eu vou pesquisar depois, certo?

Ele acenou vagarosamente com a cabeça, mas não disse nada. Roubou um grande pedaço da omelete de Lyene, rindo triunfante pela façanha, e enfiou tudo de uma vez na boca, mastigando em meio a uma careta:

– Meu Deus! Que coisa mais horrível. Que favor você fez em jogar o resto fora. Cadê meu chá?

Ela olhou-o, rindo:

– Para você aprender a não roubar comida dos outros. E, pra mim, está ótimo.

– Nossa, o dia em que você comer um tamagoyaki de verdade você vai ver a diferença! E na verdade me surpreende que não o tenha feito. Desculpa, eu sempre me esqueço de que o Crown é lugar pra fast-food, e não para comida tradicional. Que coisa horrível!

Tomou o resto do chá na tentativa de tirar o gosto latente da boca.

Lyene riu desta atitude dele. Finalmente parecia que a realidade caía nos lugares certos outra vez, firmando os contornos e a densidade em volta dos seus olhos. Talvez houvesse esperança de normalidade quando tudo se ajeitasse outra vez...

Surpreendeu-se com os dedos de Takeo entrelaçando aos seus. Sucessivos arrepios voavam baixo sobre sua pele, enquanto ela volteava a cabeça na direção dele:

– Eu não vou falar nada, Lyene. Só queria saber a sensação disso estando... Livre.

Ela puxou a mão, em um reflexo. No entanto não houve tempo para maiores explicações. A vitrine do fliperama foi atravessada por um corpo seguido de um youma semelhante a um Arlequim*** que avançou-lhe em cima, segurando com a outra mão o pescoço de uma jovem..:

– Mihara! – Takeo gritou enquanto corria na direção do monstro, já com o chicote na mão.

– “Me”... a-jude... – Ela sussurrou.

O youma lançou-lhe um olhar mudo e saltou para fora do fliperama, seguido imediatamente por Takeo que esquecera-se de todo o entorno.


(continua...)



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Notas finais do capítulo

*Asagohan: Refeição matinal, em japonês. Se trata de um café da manhã tradicional, composto de arroz, sopa, peixe grelhado, picles, algas marinhas, soja fermentada e chá verde.
**Tamagoyaki: Omelete japonês
***Arlequim:O arlequim é uma personagem da commedia dell'arte, cuja função no início se restringia a divertir o público durante os intervalos dos espetáculos. Sua importância foi gradativamente afirmando-se e o seu traje, feito de retalhos multicoloridos geralmente em forma de losango, mais ainda o destacava em cena.