O Circo Mágico escrita por Auriam


Capítulo 6
O empreendedor




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Chemoth perdera o sorriso do rosto, a bailarina Diana agora dançava com alegria. Os dois estrangeiros provocaram profundas alterações na estrutura do Circo Mágico, afinal. Um ano e nove meses haviam se passado desde que eles chegaram, as histórias sobre os dois já havia saltado de tenda em tenda e reanimaram os negócios para “A”, já que as apresentações repetitivas da sua irmã não provocavam nos pagantes o desejo de revê-la depois de algumas visitas contínuas.

Sim, pois depois de Heath Diana pareceu ter recebido vida nova. Pela primeira em anos resolveu inovar na dança, ensaiava uma nova toda a semana e às vezes improvisava em plena apresentação. Talvez não se tratasse de uma improvisação, ela literalmente dançava um regojizar pleno. Sua feição torturada, a encarnação doce da melancolia do Circo Mágico, fora substituída por um sorriso radiante. Ela nunca havia estado tão a parte do decadente mundo que a cercava.

A” se lamuriava, andava em sua tenda rabugento dizendo em voz raivosa para quem quisesse ouvir, e gesticulando para os panos da sua tenda com uma expressão mal humorada “Um rapaz aparece e a bobinha já fica assim, derretida! Parece que não aprende, a criança, não aprende! Mato ele, eu mato!”.

Matar como? Heath não vivia há alguns meses, já estava plenamente acostumado. Estar morto fora a experiência mais surpreendente e decepcionante da sua vida. Quer dizer, poxa! Ele temia aquele momento, parou de fumar em uma tentativa de retardá-lo e para que? Não havia, em definitivo, nada de tão terrível na sua morte. Pelo contrário, estava até sendo bem divertido.

Seguiu a dica de Auriam, passou a fotografar o mundo dos mortos. Para revelá-las, teve mais trabalho, precisou pegar dinheiro emprestado (começar endividado! Nem nisso aquele plano destoava) para montar sua própria tenda. Cornélia se prontificou para ajudá-lo em tudo, e criou meios alternativos (através da mágica que dominava) para lidar com as fotos.

Fizera várias cópias das fotos de Diana. Não parava de vendê-las, faziam um sucesso estrondoso graças a história da mudança na bailarina:

Acredito ter executado em Diana a mesma mudança que ela executou em mim. Fico feliz, então, nutrimos de um sentimento reciproco! — Dizia para um eventual curioso, atraindo ouvidos alheios — Faço votos para vê-la novamente, jurei dar a ela alguma dessas fotos!

Oh! Mas “A” mantêm a pobrezinha tão protegida....

Pois bem, mas saberia me esclarecer o motivo?

Ajudando a espalhar as causas da mudança ocorrida com Diana, Heath conseguia um pouco de tudo que precisava. Dinheiro, pois com a história de brinde podia vender as fotos pelo preço que quisesse; informações, já que suas confissões estimulavam os outros a ter pena dele e assim, colaborarem com a causa dele de homem apaixonado; e fama, que lhe levava a outros trabalhos.

Assim sendo, já havia fotografado as maiores atrações do Circo Mágico e agora trabalhava na feitura de um álbum de fotos e de folders para serem comerciados em outros planos espirituais, afim de divulgar tudo que o lugar tinha a oferecer não só no comércio, mas também no campo cultural.

Já começava a negociar até quem iria ou não entrar para o álbum do Circo Mágico. Heath foi o recém-chegado que mais rápido enriquecera sem, para tanto, vender a própria alma. As pessoas já se curvavam para cumprimentá-lo do mesmo jeito respeitoso que faziam ao cumprimentar Decarabia.

Sim, Heath se tornara uma personalidade importante ali dentro. Um jovem prodígio, empreendedores veteranos marcavam hora para entrevistá-lo. Acostumado a ser aquele que corria atrás das pessoas famosas, e não a pessoa famosa em questão, tudo em sua nova existência tinha gosto de revanche.

Já podia comprar suas próprias vestes, resolveu seguir a moda do circo. Apostou nos trajes vitorianos com jeitos de fundo de baú e estava deixando a barba crescer. As mulheres do Circo Mágico já o adoravam, e não hesitavam em tentar desviá-lo de seu amor por Diana.

Um coisa que deve ter ficado clara é que esse herói não tinha um coração assim tão puro, ele não havia hesitado em usar do rápido encontro com a bailarina em seu favor. Além disso, meses se passaram e Heath não havia tentado entrar em contato novamente. Sem dúvidas, havia desviado um pouco de seu objetivo, mas ainda mantinha o foco em Diana.

Havia estudado as semelhanças daquele mundo com o mundo de onde viera para descobrir que as coisas não eram assim tão diferentes. Amedrontado pela hipótese de acabar como antes (corrompendo sua arte para sobreviver) tomou medidas para que ocorresse o contrário. Corrompeu-se, então, e assim pôde vender seus belos retratos da forma como sua mente concebia, criando o mercado para eles ao invés de se adaptar ao que já existia.

E só assim, só deixando de ser um indesejado medíocre, mais um naquela multidão de frustados, ele poderia ganhar poder para ter Diana. Colocava ela no centro de tudo que fazia, e assim tinha uma justificativa digna para qualquer coisa que fosse. Fazia o que fazia, afinal, por amor.

O mais importante era desvendar a situação entre ela e “A”. Ninguém parecia ter uma versão realmente confiável da história dos dois, sempre terminavam por confundi-lo mais e mais. Diana pareceu confiar em “A”, e “A” parecia disposto a fazer tudo por ela. Ainda assim, muitos insistiam, por exemplo que ela era prisioneira dele.

Em certa ocasião, Kaiho surgiu em seu caminho. Veio pedir por uma foto, analisou a imagem e então sorriu um sorriso ameaçador, os olhos fixos na bailarina:

Ah, acho fantástico terem tornado até o amor, o mais ingrato dos sentimentos, algo lucrativo. Meus cumprimentos, rapaz. Pena que certos aspectos da minha existência me impede de fazer o mesmo negócio.

Perdão, a que se refere?

Ah, por mais improvável que possa soar, nós temos regras. Há coisas com as quais simplesmente não podemos nos envolver — E dizendo isso, devolveu a foto.

Não vai comprar?

Depois dos favores que te fiz acho que deveria ganhar um exemplar gratuitamente. De qualquer forma a lembrança de uma criatura tão pura é a última coisa que poderia despertar meu interesse.

Devo mais ao seu irmão — Heath disse, guardando a foto— Por sinal, como Auriam tem passado? Não o vejo há meses

Ele? — Kaiho pareceu reflexivo — Acho que na mesma. Auriam não muda, sabia? Na verdade, dentre todas as coisas incompensáveis nele, essa deve ser a pior. O demônio da Insanidade é sempre o mesmo, justo ele, alguém que deveria ser inconstante.

Gostaria de tirar uma foto dele.

E uma foto minha? Eu me sinto ofendido.

Qual o lucro de fotografar O Demônio das mil faces? Estaria apenas eternizando uma máscara sua.

Aliás, como me reconheceu?

A cartola, ela me chamou a atenção desde o nosso primeiro encontro.

Decarabia agora era um homem de barba rala e cabelos loiros, o cabelo liso descia até o ombro e ele tinha olhos azuis Era mais fácil reconhecê-lo pelo sorriso, e também pelo seu porte superior e modo despojado de conduzir uma conversa.

Ah sim, andei repetindo minha indumentária. Às vezes, é bem útil ser reconhecido. E bem, se quiser eu tiro minha máscara e assim você pode ver o meu verdadeiro rosto.

É justo. Por que te interessa tanto ser fotografado?

Ele parecia estar apenas se divertindo. Disse de um jeito zombas:

Quero provar para todos que não preciso de máscaras para ser belo.

E colocou as mãos sobre a face, puxando a pele. Ela se descolou com facilidade, uma cortina de trevas ia puxando sua falsa aparência, devolvendo para sua pele a tonalidade natural. Heath se surpreendeu, Decarabia era o mesmo daquele primeiro encontro. Na verdade, ainda se encontrava sem o olho verde:

Pensei em fazer um olho de vidro, mas prefiro esperar que o original volte ao seu lugar.

Porque sacrificou o verdadeiro olho?

Só ele poderia conceder verdadeira visão.

Alguns transeuntes pararam para contemplar Kaiho Decarabia. Com a máscara ainda erguida sobre a mão, ele lançou um olhar desafiador para a câmera e manteve sua pose imponente. Heath compreendeu, e bateu uma foto. No fundo dava para observar a paisagem típica do Circo Mágico. Havia a noite escura, as luzes fracas de parque de diversão abandonado e as tendas listradas em vermelho e branco. A imagem do Demônio das mil fases sobressaia, da mesma forma que a pureza de Diana fazia, mas no caso dele estava relacionado com a força que emanava. O Circo era uma paisagem realmente débil perto dele.

Ele voltou a máscara para o lugar, cobrindo o rosto original e a ausência d olho. 

Foi um prazer revê-lo, jovem fotógrafo. Agora, porém, tenho algo que precisa ser feito.

Heath assentiu com a cartola, e ainda ousou pedir:

Fale para seu irmão que quero fotografá-lo.

Decarabia riu:

Se eu falasse isso você nunca mais o veria.

E seguiu seu caminho. Heath o contemplou enquanto ele desaparecia, demônios pareciam realmente fascinantes. Pouco podia dizer, com o pouco contanto que havia tido com a espécie. Mas tinha curiosidade, e certamente teria se detido em explorá-la com mais veemência, caso não tivesse Diana em foco, toda sua energia centrava-se na bailarina, em como faria para roubá-la de “A”.

Imaginava que Kaiho Decarabia soubesse de algo. Sabia, porém, que ele não lhe entregaria uma informação dessas de graça. Pensava em barganhar com a foto de Diana, mas Kaiho havia desdenhado a imagem com tanta veemência no olhar que acabou dissuadindo-o.

Informação, eis a mercadoria mais cara.

E a mais cheia de cópias falsas também. Descobrir vendedores confiáreis era uma tarefa árdua, e até mesmo chegar até eles tinha um preço. Tentava sondar os transeuntes comuns, como já foi contado, mas aquilo não funcionava muito bem, no máximo servia para descobrir “aquilo que todos já sabiam”, e não sobre os verdadeiros segredos.

Naquele quase um ano em que estivera tentando desvendar Diana ouviu muitos boatos, mas as únicas informações realmente validas foram:

1-Ela e seu irmão chegaram no Circo Mágico quando ela tinha dezesseis anos e ele dezoito.

2-“A”, como ficou conhecido por sua atuação no Circo Mágico, servia de palhaço na tenda principal. Trabalhava de novembro até o fim de janeiro e durante esse período Diana não se apresentava.

3- Diana tinha fobia de sair da sua tenda, motivo porque não se apresentava na tenda principal e porque tinha de trabalhar mais que os outros artistas. Era uma forma de compensar.

4-”A” perdeu sua alma.

Afora esses quatro itens, não sabia mais nada sobre a dupla. Também havia colhido informações superficiais sobre Auriam, as pessoas, em geral, pareciam ter uma boa ideia do que ele era, embora não soubessem muito sobre a pessoa dele em si. O “Demônio da Insanidade” tinha esse nome por causa da organização caótica de seu inferno.

Heath não conseguiu compreender exatamente do que tratava. Disseram que alguém que não conhecesse a organização típica de um inferno não entenderiam como se davam as coisas em Auriam. O fato é que era diferente, desorganizado demais, sem as típicas cenas de tortura, o caos cuidava de punir os condenados. Não sabiam dizer se o inferno de Auriam era assim por causa dele, ou se ele se tornou o que é por causa de seu inferno. O resultado, porém, estava claro: Ele era “esquisito” até para os padrões do Circo.

Aquilo era o que tinha de concreto sobre ele. Os boatos diziam, por sua vez, que o próprio Circo Mágico era uma expansão do inferno de Auriam que havia se revoltado e alcançado a independência. Aparentemente muitos universos tiveram seu gênesis lá, devaneios suicida e sonhos apaixonados colidiam naquele inferno provocando um tipo novo de big bang.

Havia outras histórias interessantes, mas muito longas e cheias de “pontas soltas”. Não dava para confiar. A única coisa realmente certa sobre Auriam era essa: Compreendê-lo parecia impossível.


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