O Circo Mágico escrita por Auriam


Capítulo 5
O pacto é anulado




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A pequena Liz, era, na verdade, uma criatura extremamente belicosa. E como o pior de uma pessoa sempre salta em algum momento da vida cotidiana, em dado instante ela começava a se revelar para Chemoth. Liz achava todas as regras do seu autointitulado pai insuportáveis e odiou saber que ele mantinha segredos. Ela não aceitava nada aquilo, e começou a se rebelar das mais diversas formas.

No começo, Liz conteve sua fúria, precisava ver até onde a autoridade de Chemoth ia. As suas escapadas se tornaram mais frequentes, e ela mudava as coisas dele de lugar. Ele foi se tornando mais agressivo, como consequente, mas o instinto de protegê-la não se esvaia com aquelas travessuras simples.

Certo dia resolveu ser mais incisivo, pagando pelos caros serviços de Cornélia por um feitiço na porta da sua tenda, só atravessariam quem ele permitisse. Naturalmente, qualquer criatura um pouco mais poderosa conseguiria anular aquele ardil, mas esse certamente não era o caso de Liz.

As travessuras se voltaram, então, para o interior da tenda de Chemoth.

— Você me cansa, Lisandra — Murmurava bravo quando se deparava com seus livros rasgados “acidentalmente” ou algum líquido de difícil remoção derrubado “sem querer” sobre o chão.

Mas Liz era insensível, fria. O mesmo desembaraço com que aceitara o pacto se apresentava em relação a qualquer outra coisa. Chemoth não havia saído, de forma alguma, em vantagem naquele trato. Ela era uma menina com vista abrangente, tirava proveito de cada visitante, de cada nova informação que chegava ao seu ouvido. Caminhava sem hesitação em direção a sua independência.

No fim, ele quem havia sido tolo, acreditara na inocência inerente do ser infantil. Agora, tal qual um pai de verdade, teria de ver a filha rebelde (que apesar do curto tempo aprendera a amar) crescer ao seu lado cada dia mais ingrata. O pacto não poderia ser quebrado, Liz era sua responsabilidade agora.

Em dado momento, porém, veio a gota d'água. Ela quebrou um espelho de Chemoth

— Opa... — Murmurou sem emoção.

O espelho não era nenhuma raridade, talvez daquela vez tivesse mesmo sido acidental. O fato é que a única coisa que Chemoth amava mais do que sua filha recém adquerida era aqueles espelhos. Ao imaginar Liz quebrando todo o seu acervo um inconformismo muito forte bateu nele, precisava dar um jeito na peste.

Não atacou Liz, não gritou com ela. Sua expressão era sinistra, a completa ausência do velho sorriso dizia tudo:

— Foi um acidente!

Ela gritou em pânico, ao ver Chemoth virando-se, saindo da tenda. Não tinha o tom irônico que sempre usava quando suas travessuras eram, realmente, propositais. Liz era uma garota esperta, sabia bem o valor que aqueles espelhos tinham para seu pai. Chemoth não a perdoaria, não enquanto acreditasse que aquilo fora proposital.

Sozinha na tenda, não havia muito o que fazer além de esperar a volta e a fúria do pai. Resignou-se a limpar o os cacos no chão, e não fez nenhuma arte durante a longa hora que se seguiu. Entrou em pânico quando viu alguém adentrando, mas era a apenas Auriam saindo de um espelho rumo a outro. Percebeu o olhar rubro e reprovador dele pousando rapidamente nela, como sempre parecia ciente de tudo.

Ela teve uma ideia. Gravou o percurso que Auriam estava prestes a fazer, e quando ele sumiu da sua vista, foi seguindo. Ele logo a percebeu, porém, e aguardou ela se aproximar:

— O que você pensa que está fazendo? —  disse de um jeito quase hostil.

Liz se sobressaltou:

— Eu preciso de ajuda...

— Não vai conseguir nada comigo — retrucou dando as costas.

— Mas o Chemoth, ele vai...

— Não é problema meu, não adianta implorar para mim.

E continuou sua caminhada sem mais se ater a Liz. Em pânico, ela insistiu, correu na direção dele, puxou a manga do robe negro:

— Por favor, por favor, faça alguma coisa!

— Menina, o que te faz pensar que vai conseguir alguma coisa de mim? A caso interagimos um com o outro em algum momento e eu não me recordo?

— Não, mas você...

— O que?

— Está aqui, e eu estou desesperada!

Ele revirou os olhos:

— Você cavou a própria cova, já ouviu essa expressão? Chemoth é um homem vivido, nunca vi confiar em alguém tão rapidamente quanto confiou em você... — Disse com gravidade em sua voz sempre tão indiferente— E a confiança é algo extremamente raro por aqui, um dia você vai ver o que desperdiçou com sua insolência tola.

— Eu já me arrependi...

— Não se arrepende antes de sofrer as consequências.

E nada mais disse, puxou uma já conhecida cortina de veludo. Era o espelho que mostrava a verdadeira forma de quem se mirava nele. O reflexo de Auriam, era, deverás, impactante. O mesmo homem, mas envelhecido milhares de anos. Sua pele agora enrugada estava recoberta por cicatrizes profundas e uma aura da mesma cor de seus olhos o adornava.

— Chemoth disse que vocês vinham de um portal que dava direto para o inferno...

— Cada demônio com seu próprio inferno, esse espelho dá direto pro meu. — E atravessou a superfície de vidro, caindo dentro do seu próprio reflexo. O pano de veludo tomou vida própria, sozinho cobria aquela imagem.

Liz ainda teve tempo de contemplar-se. Estava mudada, descobriu, sua imagem dava em uma bela mulher mais velha. Vestia um longo vermelho, com um decote vulgar, e nas suas mãos cresceram unhas negras. Uma aura densa adornava o corpo do seu reflexo, ele lhe lançou um sorriso sinistro antes de ser coberto pela cortina agora fechada.

O coração disparou, ela tentou remover a cortina e ver se aquilo realmente havia acontecido, mas em vão. A cortina enfeitiçada não se movia, assim como a entrada da tenda, ela estava encantada. Assustada, Liz retornou para o começo daquela galeria imensa. Chemoth chegou acompanhado de Cornélia, tinha uma expressão grave no rosto.

Liz chorou. Lágrimas forçadas em uma vã tentativa de alcançar a piedade do seu então pai. Se agarrou a Chemoth, a pele dele não tinha mais o velho calor reconfortante, era fria como a morte. Ouvi-o dizer com uma serenidade absurda:

— Não me responsabilizo mais, negociei você com Cornélia...

— Mas Chemoth! Juro, juro, aquilo não foi proposital, aquilo não...

— Um dia você começaria a quebrar meus espelhos, cedo ou tarde. Acho que fui gentil demais com você, querida. E precipitado também, no fim das contas. Me enganou por algum tempo, mas não, você é tudo menos um anjo.

— Mesmo porque o Circo Mágico jamais acolheria um anjo. — Cornélia comentou com enfado.

— Para onde eu vou...?

— Não sei, não me importo. Para longe.

— Não precisa agir assim com a menina, Chemoth. Vai aprender alguma arte, integrar esse circo.

— Eu não quero...

— E eu não lamento.

— Pai!

A docilidade e a afabilidade dele se esvaiu completamente, tudo por causa de um único espelho desprovido de qualquer dom além de refletir obviedades. Liz estava pasma, jamais teria imagino que o amor de Chemoth era uma coisa tão frágil. Lembrou-se do primeiro encontro, “Um homem de desejos levianos”, ele mesmo havia se classificado.

De braços cruzados, completamente impenetrável, o ressentido Chemoth parecia contar os instantes para ver Liz sair do seu espaço. Pasma, mas ciente de que nada mais poderia ser feito, ela aceitou ir com Cornélia. Os olhinhos estavam arregalados, as lágrimas se secaram. Liz estava chocada, ela voltou a ser alguém absolutamente sem valor.

— Cornélia...?

— Sim?

— O que eu vou fazer agora?

— Não sei, precisamos ver que talento você tem. É melhor se comportar, heim? As pessoas aqui não veem crianças com a mesma inocência que Chemoth via — Liz não respondeu, Cornélia suspirou — Que pena, ele parecia tão feliz com você... Acho que sei o seu talento, você pode se tornar uma excelente atriz. Acha que sim? Presta para isso?

— Não sei, talvez...

— Vocês nunca tiveram pais, vocês nunca tiveram filhos, não tinha como dar certo, afinal...

— Ele nasceu de onde?

— Da cabeça de alguém, ele não é humano. Não tem alma, é só um sonho que tomou forma.

— E você?

— Eu...? — Cornélia não continuou, seguiu em silêncio.

Liz descobriu que não conhecia quase nada do Circo Mágico. As longas caminhas que havia feito para além da tenda não se comparavam em nada com o percurso que agora fazia ao lado de Cornélia. Aquelas tendas pequenas, amontoadas umas do lado das outras de um jeito completamente desorganizado, aquilo que ela deduziu ser uma feira, aquilo tudo não era, realmente, o Circo Mágico.

Na verdade, o comércio passou a rodear a verdadeira tenda do Circo depois que a coleção de espelhos de Chemoth fez aumentar o fluxo de entidades espirituais ali presente. Antes, havia só uma tenda gigantesca e o acampamento dos artistas ao lado. Toda aquela melancolia e decadência impregnada ali era herança dos velhos tempo. Tempos em que os artistas do Circo Mágico, condenados a se apresentarem noite após noite, recebiam um público irrisório, às vezes nulo.

Um circo fantasma. Os artistas que vinham parar lá, na maioria das vezes, eram humanos mortos pelo próprio ofício. Havia exceções, naturalmente, mas esse aspecto tão corriqueiro dos integrantes somado a ausência de um público provocara um ambiente infeliz. O Circo Mágico representava a morte dos sonhos, o suicídio da beleza, a desistência da arte. O fazer por fazer, desmotivado e sem alvo, a sombra do mundo das crianças.

Hoje, talvez, fosse mais movimentado, mas só por causa do comércio. A tenda principal continuava recebendo pouca gente durante toda a noite que se mantinha tendo apresentações. Ainda assim, os artistas persistiam. Sem executar seus números, eles desapareceriam, o circo morreria, nada daquilo existiria.

Cornélia a conduziu até um acampamento, Liz estava confusa:

— O que? Eles são os verdadeiros artistas? Mas e o domador? As ciganas, os...

— É gente demais, um grupo faz apresentações durante um tempo, depois outro. Revezam, o Circo consome muita energia dos artistas, e agora que os tempos são outros eles podem descansar e até enriquecer.

Cornélia fez um sinal para Liz com a cabeça, pedia para ela lhe seguir

Os artistas que já haviam terminado suas apresentações na noite se dispunham ao redor de uma fogueira. Um par de gêmeas estavam aninhadas, um velho palhaço de feição mal humorada e rosto ainda manchado pela maquiagem olhava para as duas de um jeito sinistro. Havia ainda um casal escondido em um canto menos iluminado, riam bem alto.

— É aqui que eu moro — Ela disse conduzindo Liz até o seu trailer. Subiram a pequena escada, daquela vez o lado de dentro era proporcional ao interior — Sente-se ali, sim?

— O que vai acontecer?

— Nada demais, nada que não deveria ter acontecido antes.

— Que?

— Sente-se querida, vamos.

— Não!

Ela gritou com petulância. Cornélia riu uma risadinha sinistra, braços feitos de ossos saíram das paredes, como se fossem braços fantasmas, mas que se agarraram a Liz com força e a puxaram para a cadeira.

— Obedeça, não piore sua situação.

Liz estava em pânico, tentava em vão se levantar, fugir.

— Por favor...

A feiticeira virou-se e pegou um punhal de dentro de uma gaveta. O desespero tomou conta da frágil criança de apenas treze anos:

— Por que!? — Murmurou em um intervalo entre gritos desesperados.

— Se você não pretende voltar, não há porque manter-se em vida. Muitos pagam uma fortuna por isso que você desperdiça aqui, no plano dos mortos.

— Ninguém nunca disse que eu poderia voltar, se eu soubesse, voltaria...

— É? Veremos?

Dizendo isso, os olhos dela brilharam em uma intensidade escalete, ela ergueu o punhal. Liz sentiu a primeira perfuração, a segunda, mas a dor ainda não vinha... Só quando Cornélia arrebentou com o seu coração que ela veio. Era atroz.

E então Liz despertou. Estava em um leito de hospital público, uma cortina a separava dos outros pacientes. Ela ouviu a conversa dos enfermeiros, a sombra deles era visível:

— Fugia da polícia e acabou sendo atropelada. Pobrezinha, não? Já não tinha o olho, agora não tem as duas pernas.

— Esses moleques de rua, tinham que morrer todos eles.

— E você não sabe o que é pior, uma garotinha que estava no carro e não tinha nada a ver com a história foi arremessada para fora e não resistiu.

— Viu só? Se a garota não tivesse roubado, para começar, não teria de fugir como acabou fugindo.

O olho direito de Liz novamente não existia. Uma lágrima deslizou pela esquerda do seu rosto. A imagem sorridente de Cornélia surgiu ao pé da cama:

— Então, retira o que disse?

Ela assentiu em silêncio, e a feiticeira lhe estendeu a mão. Ao ser puxada, Liz viu-se separada do seu corpo, agora morto no leito do hospital. Sua imagem era horrível, o rosto estava mais deformado do que nunca. Cornélia invocou uma cortina de trevas, voltaram para o Circo Mágico.

Sangue ainda manchava as paredes, mas Liz estava intacta:

— É só isso?

Cornélia avaliava um frasco recém-adquirido:

— Quatro anos. Suicídio. Que droga, hm. No fim você não tinha tanto para oferecer.

Liz se levantou:

— Mesmo assim, eu quero. Você não tem direito de ficar.

— Claro que tenho, menina. Negociei com Chemoth, em troca de assumir a responsabilidade por você.

— Por qual parte minha? A vida certamente não é.

— Pela sua alma, eu tentaria não perdê-la se fosse você. Alguns nunca tiveram, como Chemoth. É natural para ele, mas não é o nosso caso. Sem ela nos tornamos algo completamente diferente, lembre-se disso.

— Se é sua responsabilidade por que...

— Não vou deixar que te tomem a força, mas no momento que você decidir negociar-se... Bom, ai já é com você.

As manchas de sangue iam desaparecendo, como se o trailer estivesse absorvendo-as. As roupas de Liz continuavam ensanguentadas, por outro lado. Cornélia deixou o frasco na mesma gaveta de onde tirara sua adaga e a conduziu para fora:

— Agora, pequena, eu te apresentarei seus futuros professores e colegas. Bem vinda ao Circo Mágico!


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