O Circo Mágico escrita por Auriam


Capítulo 3
O nome de Liz




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Chemoth lamentava o fato de crianças não virem com manual de instruções. Liz era a primeira com quem verdadeiramente lidava, e não tinha a menor experiência a cerca dos relacionamentos entre pais e filhos. Nunca teve nenhuma real ligação genética com ninguém e sequer presenciara em algum momento como essas coisas se davam entre os humanos.

Tudo o que sabia sobre meninas pequenas vinha das histórias que ouvia, e elas em nada batiam com a realidade daquela garota rebelde criada nas ruas de uma cidade hostil e perigosa. Liz não era frágil e falava as gírias dos garotos, não suportava os vestidos elaborados e cheios de babados dados de presente por Chemoth, mal os colocava no corpo e, pouco a pouco, afrouxava os laços, tirava o sapato apertado, rasgava a meia calça fina demais e desarrumava o próprio cabelo.

Mas não tinha problemas para manter-se limpa, era parte do seu sonho se ver livre do cheiro desagradável das ruas. Uma amiga de Chemoth, Cornélia, autointitulada feiticeira que vendia unguentos mágicos no Circo Mágico, não tardou em ajudá-lo. Ela vestia-se com um justo corpete negro e usava uma maquiagem pesada e pálida sobre o rosto moreno, fazendo parecer que ela tinha uma máscara aderida a própria pele.

Era bem bonita, uma mulher pequena e sedutora. Falava em um tom baixo, misterioso, diziam que ela ajudava a espalhar muitas mentiras, mentiras cruciais e de repercussões inimagináveis. Suas verdades, por outro lado, escondia bem. No intimo, Cornélia era uma mulher muito sábia.

Com os companheiros do Circo Mágico deixava um pouco de lado sua falsidade, e estava sempre disponível para dar concelhos. Uma vez a par da inusitada situação, tentava ensinar Chemoth não sobre as crianças em geral, mas sobre a necessidade de tratar Liz em separado das generalizações. Começou pelo gosto de vestir a menina como uma boneca:

— Veja, Chemoth, meu querido, embora sua menina seja mesmo uma garota, guarda a tempestividade de um jovem rapaz e seu trato deve se adaptar a personalidade dela, e não o contrário. Não adotou a pequena para ser sua boneca, adotou?

Ele não gostou, mas não conseguia derrubar os argumentos da feiticeira. Cornélia cortou os cabelos de Liz do mesmo jeito que cortara o seu, o que dava em um channel reto. Mas, diferente do de Cornélia, o cabelo dela era crespo, o que acentuava seu aspecto rebelde.

Depois, Cornélia trocou os vestidos cheios de babados por shorts e blusas perto de serem masculinos. Liz chegava a se parecer com um menino, mas seu aspecto geral continuava encantador, Chemoth mantinha-se fascinado.

Ele lhe ensinou os caminhos da sua enorme galeria de espelhos. Manteve alguns percursos incógnitos, pois acreditava que ela era imatura demais para lidar com certos objetos que mantinha ali. O espelho que mostrava os desejos, por exemplo, depois daquele primeira demonstração ele o havia escondido, pois sabia bem da facilidade que as pessoas tinham de se perderem lá dentro.

Separou com uma cortina negra os limites do quarto dela, deu-lhe uma cama com dossel rubro, um modelo medieval e sóbrio. Encheu o pequeno cômodo com lindíssimas bonecas de porcelana que Liz adorou, mas mal tocou porque acreditava que objetos frágeis como aqueles deveriam adornar, e não servir de brinquedos.

De forma que lhe restaram poucos distrativos, e seguir Chemoth tornou-se a maior das suas brincadeiras. Ela o observava enquanto ele negociava com eventuais transeuntes que usavam seus espelhos para locomoção de uma dimensão a outra. Pagavam com moedas de ouro, na maior parte das vezes.

Pouco a pouco Liz absorvia aquela nova realidade. Não estava dormindo, no fim das contas, ela acabou compreendendo que jamais iria despertar. Era uma garota esperta e adaptável, sua antiga vida não lhe permitia reclamar da atual condição. Apesar de seu aspecto soturno, O Circo Mágico soava mais como um sonho do que com um pesadelo. E ela de uma forma ou de outra adorava aquele novo e acolhedor mundo.

A cada dia conhecia novas figuras que apareciam na Morada dos Espelhos. Chemoth explicava que eram espíritos diversos, alguns benévolos, outros extremamente maldosos. Liz conheceu anjos e demônios, fantasmas atormentados e entidades criadas a partir do imaginário humano. Eram todos bem diferentes entre eles, e por usarem o circo principalmente para o comércio, traziam relíquias surpreendentes.

Pequenas fadas cruelmente presas em garrafas para dar sorte, velhos livros contendo rituais para obliterar demônios de nível superior, penas retiradas das assas de anjos (diziam que eram fantásticas para escritores que desejavam a inspiração divina), frascos contendo um pouco do canto das temidas sereias do mar do fim do mundo, e muitos outros itens curiosos passavam por lá.

Chemoth dizia que o que dava dinheiro no Circo porém, era a trafego de informação. Era a mercadoria mais escassa, as dimensões além das humanas eram muitas, e todas influenciavam-se mutuamente. Saber dos segredos guardados em todo o submundo, no inferno ou mesmo no paraíso (que gabava-se de não esconder suas verdades de ninguém), era valiosíssimo.

Mas esse tipo de jogo ele não jogava. “É coisa perigosa”, comentou. Sentia-se mais a vontade vendendo passes e, com o dinheiro, adquirindo mais espelhos:

— Você deve ser um homem muito vaidoso, nunca vi ninguém tão obcecado com espelhos! — Liz comentou, arrancando de Chemoth um de seus sorrisos ambíguos. Ela interpretou a expressão como uma concordância silenciosa.

Talvez não estivesse errada. Chemoth tinha um rosto bonito, um corpo harmônico, mas sua vaidade estava no seu visual excêntrico. Escolhia com muito cuidado cartolas com flores mortas, óculos com lentes azuladas, sapatos furados... Mas não se coloria muito, pois, não queria se parecer com um palhaço.

Fazia sucesso, sempre havia alguma bela figura feminina disposta a trocar sussurros com ele, a desaparecer com Chemoth para algum lugar além da vista de Liz. Ele era um homem imponente, gestos teatrais, charmosos e ensaiados. Guardava toda sua inabilidade e inocência apenas para a filha recém-adquirida, que de uma forma ou de outra acabava mesmo tratando como uma boneca.

Ele explicou que todos que entravam para o Circo Mágico precisavam de exercer uma função, e a função dela foi, no começo, a de ajudá-lo. Não era fácil, tiveram dificuldades para serem, ao mesmo tempo, pai e filha, patrão e funcionária. Liz não tinha que se preocupar, porém, aquela fase deveria ser mais como um estágio.

Liz ainda guardava as manhas da rua, acostumou-se a desobedecer qualquer regra que lhe era imposta. Para começar, ele falava que ela não podia, de jeito nenhum, sair da tenda, pois, seu maior atrativo era manter-se viva, e lá fora uma criatura maldosa bem poderia matá-la. Mas ela desobedecia, sempre quando ele se distraía com um visitante eventual ela dava suas escapadas.

Descobriu que nem todos eram capazes de perceber sua condição de ser vivente, o que a mantinha segurança. Se divertia com os mágicos, os palhaços e as ciganas, aprendia muito com eles. O domador era seu amigo favorito, ele lidava com diversas criaturas ferozes, dentre elas um enorme tigre de pelo azulado e manchar brancas chamado Luna, que deixava-se afagar por Liz com uma docilidade que assustava seu dono.

Todos a reconheciam como parte do Circo, e eram muito amáveis. Chegavam até a guardá-la por Chemoth, mas mesmo assim ele ficava enciumado. Quando Liz voltava ele mostrava-se bem mais feroz do que era hábito. Chegava a bater em seu rosto frágil, quando tinha muita raiva. Mantinha o cuidado, porém, vivia com medo de quebrá-la.

Mas, no geral, davam-se muito bem. Ela não sabia nem escrever o próprio nome, e Chemoth adorava ler em voz alta. Liz se aconchegava em seu colo quando ele deitava em uma poltrona vermelha em seus aposentos privados para ouvi-lo declamar suas histórias favoritas. Reparou que ele cheirava a poeira. E que as vezes os espelhos simplesmente se revoltavam e paravam de refletir o especto dele.

A questão do novo nome de Liz demorou meses para ser resolvida. Ambos tinham temperamento forte e gostos divergentes, não conseguiam entrar em um consenso. Quem deu a solução foi Auriam, que apareceu saído de alguma parte da Casa dos Espelhos, dessa vez desacompanhado. Distraidamente caminhava para fora da tenda quando Chemoth o interceptou:

— Faça a gentileza de parar, não lhe darei as mesmas liberdades de seu irmão.

Liz estava sentada sobre um tapete, rodeada por livros. Chemoth estava lhe ajudando a aprender a ler, mas sua aula acabou sendo interrompida pela presença do exótico Auriam. Ele não pareceu acuado pela fala rude do anfitrião, só um pouco surpreso. Sua resposta demorou a vir, como se ele estivesse querendo ter certeza de que não haveria retratação.

— Perdão, meu caro, não sei o que fazer. Não tenho dinheiro, você sabe.

— Lamento, então, não posso permitir que você passe.

Auriam cruzou os braços, contrariado:

— Você tem certeza disso?

Chemoth suspirou.

— Você se faz de tolo, pode não tem dinheiro, mas....

— Pois bem, eu lhe ofereço uma ameaça.

Chemoth franziu o cenho.

— O que?

— Você me força, então jogarei o jogo do meu irmão.

— Acabo com você em um...

— Com o poder que tenho acumulado não ameaço ninguém, é fato. Mas sei tudo a seu respeito, Chemoth, e mantenho em segredo por pura cortesia. Você me ofende de verdade com essa sua atitude.

Chemoth piscou perante aquela fala e lançou um rápido olhar para Liz. Finalmente, lançou um suspiro consternado e, carregando seus gestos com ironia, fez uma leve mensura apontando com o braço na direção da porta. Auriam não disse mais nada, seguiu seu caminho com uma expressão implacável no rosto, mas logo interrompeu-se, como se tivesse acabado de se lembrar de uma coisa:

— A propósito, “Liz” não passa de um apelido, sua menina se chama Lisandra.

E então desapareceu. Liz e Chemoth se entreolharam, pasmos. Ele perguntou:

— Lisandra?

— Eu gostei...

E acabaram deixando assim, mais por comodismo do que por qualquer outra coisa. Com aquele nome Liz poderia continuar sendo chamada de Liz, e Chemoth conseguiria, ao apresentá-la, deixá-la um pouco menos sem graça.

— Mas Chemoth, quem é esse homem, afinal? — Ela perguntou, interrompendo novamente a aula.

— Auriam?

— Uhum.

— O Demônio da Insanidade, é assim que o chamam. Dizem que tudo o que acontece de relevante passa em algum momento no Reino dele. Dizem também que ele sabe mais sobre uma pessoa do que ela mesma. Sempre duvidei dessas duas coisas, porém, e mesmo assim não consegui desafiá-lo quando ele blefou...

— Por que não tentou testar ele? Dizer que não tinha segredos, sei lá...

— Qualquer um que existe por mais de meio século tem segredos, Lisandra, pelo menos aqui nesse plano é assim.

— Quais são seus segredos? Eu quero saber!

— Talvez você acabe descobrindo, um dia.

— Mas você nunca vai me dizer?

— De forma alguma.

Liz mostrou a língua e fechou o livro, desistindo de vez daquela lição.

— Não quero mais fazer isso, não tem motivo se você pode ler para mim! — E fugiu para o seu quarto sem ser impedida.



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