O Circo Mágico escrita por Auriam


Capítulo 2
Diana




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Heath estava confuso. “Então eu não morri?”. Pior, que lugar era aquele? Podia ser o inferno, ele não se admiraria, mas a aparência do lugar frustrara todas as suas expectativas. Estava caído sobre um chão úmido, os transeuntes passavam por ele sem se aterem ao seu estado. A camisa branca (Céus, ele havia acabado de comprar!) estava suja com seu próprio sangue, mas o ferimento havia, como que por mágica, desaparecido.

Levantou-se, dando-se conta de que sua câmera profissional ainda estava intacta ao seu lado. Checou, a foto da atriz que flagrara continuava lá. Se ele descobrisse onde estava e como sair de lá ganharia uma grana preta. Mas, afinal, o que era aquele lugar?

Não sabia de uma feira na região. Viu as tendas, os palhaços, os ciganos, uma movimentação intensa de pessoas caracterizadas.... O que era aquilo, afinal? O relógio dizia ser meia-noite, e o ambiente gótico fez ele concluir que estava no meio de algum evento alternativo. Os visitantes provavelmente o tomavam como igual, um lunático com vestes manchadas de sangue falso. Isso certamente justificaria o fato de estar sendo ignorado por todos.

Não sentia dor, constatou. Aliás, estava ótimo! Seria isso o ato de algum benfeitor anônimo? Radiante, ele pôs-se a andar no meio daquela gente esquisita, perguntava pela saída, mas os lunáticos lhe davam respostas realmente insanas “A casa de espelhos fica para lá!”, apontavam. Aquilo realmente não fazia sentido.

Demorou, mas em dado momento ele mesmo concluiu que não se encontrava em uma simples feira de bizarrices. Devia estar vivendo em algum tipo de transe precedente da morte. Logo começaria a se lembrar de toda a sua história, ah...

Andava pelo lugar enquanto esperava por esse momento, mas nada acontecia. Tentava distrair sua mente fotografando aqueles artistas inusitados, estranhamente sombrios, sempre sombrios. Uma cigana bonita e dançante chamou sua atenção, ela leu sua sorte, e alertou que ele não tinha mais futuro.

—Uma pena, docinho. —Disse, e foi cuidar da mão de outro cliente.

Quatro horas da manhã, como ele estava exausto! Notou um agrupamento de pessoas em uma tenda aberta e, curioso, aproximou-se. Havia uma garotinha suja sentada em uma cadeira enquanto uma cigana velha e gorda costurava seu olho direito. Ela não parecia sentir dor, estava apenas entediada.

Atrás, com um sorriso discreto no rosto, um homem de cartola colocava as mãos nos ombros dela, em um sinal tanto de pose quanto de afeto. Havia ainda uma dupla, um homem de cabelos compridos e sedosos ao lado de um sujeito desconcertantemente belo, mais sem o próprio olho direito. Ele estava com uma faixa ensanguentada tampando a falta, sinal de que haviam acabado de lhe tirar a visão.


 

—Estou lhe devendo um favor, Decarabia. — Disse o homem de cartola.

—Sim, está — O sujeito sem um olho observava a cena com visível enfado — Eu estava te devendo vários, de toda a forma. E não vejo o que você poderia me dar além de passe livre pelos espelhos, o que eu já tenho.

—Não vai fazer falta? — A garotinha sentada na cadeira perguntou, tentando não se concentrar no movimento da agulha.

—Não, não. Já estava na hora de eu me fazer um novo corpo, esse já estava me cansando.

—Qual o seu nome, minha lindinha? —A cigana perguntou.

—Liz.

—Não, não — O homem da cartola corrigiu — Você é minha filha agora, sou eu quem deve te batizar.

—Ah... — Ela suspirou — Eu gostava desse nome, fui eu mesma quem escolhi...

—Como vai chamá-la?

—Não sei ainda, vou pensar. Liz é simplório demais, quero algo grandioso, entende?

Heath se aproximou, Havia visto coisas estranhas até então, mas aquela cena era especialmente difícil de ignorar. O homem de cabelo comprido parecia aborrecido com o que presenciava, mas de todos ele sentiu ser o menos antipático. Heath se dirigiu a ele em um tom baixo, para não chamar a atenção dos outros presentes.

—Com licença, poderia me dizer se ainda estamos em São Paulo?

—Hm...? — O estranho murmurou, virando-se para ele. Tinha olhos avermelhados e profundos — Não, não.

—E que lugar é esse? Uma feira?

—É o Circo Mágico, mas acho que hoje em dia está mais pra uma feira mesmo.

—E como se faz para sair?

—Bom, a casa dos espelhos....

—Não preciso de um espelhos! — Ele se exaltou. O estranho arregalou os olhos, acuado.

—Ah, me perdoe...

E voltou o olhar para a cena, como se a conversa estivesse encerrada.

—Me perdoe, hm, qual o seu nome?

Ele soltou uma exclamação silenciosa, como se não concebesse a ideia de alguém não saber o seu nome.

—Auriam.

—Sou Heath, Heath Ward. Não sei como cheguei aqui, entende?

—Não — Ele respondeu com uma sinceridade desconcertante.

Naquela altura o homem com o olho direito arrancado começou a dar atenção para aquele diálogo. Auriam franzia o cenho e voltava o olhar para a garota antes chamada Liz, parecia convencido de que a conversa iria levar a nada.

—Boa noite, rapaz — Ele disse conduzindo Auriam um pouco para trás, afim de conseguir ver Heath — Permita-me me apresentar, Decarabia, Kaiho Decarabia.

— Heath... Ward — Ele disse hesitando, apertando a mão que ele estendia. Reparou que, diferente de Auriam, aquele homem tinha o olho restante de um verde vivo.

—Nunca ouvi falar de você — Ele disse com os olhos fixos na mancha de sangue na camisa de Heath — Sangue seco. — Observou.

—Também nunca ouvi seu nome — Ele constatou, surpreso. Gabava-se de conhecer o nome de muita gente importante.

—Hm? Precisa se informar mais — Retrucou com indiferença — Quer alguma coisa?

Só agora ele havia compreendido: Kaiho tentava afastá-lo de Auriam. Hesitante, ele explicou:

—Acabei de chegar aqui, preciso ir para a casa.

—Se sua chegada não foi planejada, meu caro, então você não tem casa.


 

Heath piscou:

—Eu morri mesmo.

—Todos nós, em algum momento — Ele retrucou, então voltou-se para Liz—Bom, nem todos.

—Espere, e as alucinações, o encontro com Deus...

—Ah, não me pergunte — Ele suspirou — Alguns simplesmente não têm essa sorte. Horrível, não? Tinha tanta coisa para esfregar na cara daquele patife miserável... Mas você é o primeiro que vejo parar de cara aqui, no Circo Mágico. Lugarzinho podre, heim? Mas anda escolhendo muita gente, escolheu você, escolheu essa garotinha, tudo na mesma meia noite....


 

Kaiho voltou sua atenção para Liz. A cigana terminara de costurar o olho e agora lhe mostrava um espelho.


 

—Gosta?

—Um ficou um pouco mais escuro que o outro... — Ela murmurou.

—Não está bom? Já foi bom serem dois olhos verdes...

—Huhum, eu gostei. E eu consigo enxergar mesmo com esse outro olho, não sabia que dava para fazer isso...


 

O homem com a cartola sorriu

—Preferia você sem um olho, mas se está feliz... Agora venha, sim? Tenho montes de coisas para ensinar para você...

Liz retribuiu um sorriso sem graça, como se ainda não tivesse se acostumado com a história de ter sido adotada. Levantou-se e percebeu que ele estendia a mão, saíram de mãos dadas, como pai e filha. Trocaram um olhar cúmplice. Pareciam estar se dando bem, mas Auriam, de braços cruzados, comentou com ceticismo:

—Tenho pena.

—Foi o melhor que podia ter acontecido a ela, agora que o Circo a escolheu...

—Não dela, dele...

—Heim? — Agora era Heath quem falava, visivelmente perturbado pelo tanto de respostas sem o sentido que fora forçado pelas circunstâncias a ouvir.

—Ignore meu irmão.


 

O lugar parecia cada vez mais estranho, as situações cada vez mais bizarras. Ele avaliou novamente os dois homens que se diziam irmãos. Não pareciam-se em nada. Auriam lembrava um oriental, enquanto Kaiho parecia ter saído de algum lugar do Reino Unido.

—Bom, isso já não é problema nosso! — Kaiho disse batendo a bengala no chão e seguindo adiante.

Auriam, porém, não fez menção de o acompanhar. Agora sim desviava sua atenção para Heath, para a câmera que ele trazia consigo.

—Coisa de humano, não?

—Ah, é...

—Fotógrafo, você era.

—Morri tentando pegar um furo — Ele contou lançando um suspiro melancólico.

—Gostava do seu trabalho? Se a câmera veio junto, ela deve ser importante por você. Ou pro circo.

—Gostava... da parte de ser fotógrafo. Esse lance de ficar caçando os outros é um saco.

—Existem coisas bonitas, para tirar foto. Você pode viver disso, agora que morreu.

—Ah? você acha?

—Ninguém termina na sua situação por acaso — Auriam explicou — Provavelmente acharam que era o melhor para você.

Heath estava surpreso, olhou para a câmera profissional pendurada em seu pescoço com uma esperança que nunca tivera em vida.

—Obrigado.

—Uma bailarina chamada Diana se apresenta por aqui, talvez você queira fotografá-la. É uma boa forme de começar, acho. Até os da minha espécie viajam para cá para vê-la dançar, ela é muito bonita.

—Como faço para achá-la?

—Nos acompanhe, senhor Heath — Kaiho disse, manifestando-se depois de deixar a conversa prosseguir seu curso natural. Parecia pasmo com a disponibilidade de Auriam. Puxou um relógio de bolso — É caminho, mostramos onde fica. Mas vamos logo, estou com presa.


 

Heath assentiu. Auriam não mais lhe dirigiria a palavra, mas seguiram juntos:

—Até aqui tem relógio e tempo?

—Ah, a eternidade não tem rotina, é verdade. Mas esse lugar vai embora depois das seis — Kaiho explicou.

—O que? E o que será de mim?

—Você foi escolhido por ele, vai mudar com ele.

—Mas, afinal, o que é isso? Esse circo?

—Um entreposto espiritual. A casa dos espelhos faz o tráfico ser intenso por aqui, sabe? Ai a economia cresceu, é uma loucura. Isso era realmente um circo, antes da casa dos espelhos.

—E esse lance de pertencer? Eu estou preso aqui?

—Não, não. Você pode sair, pode voltar, será sempre bem vindo.

Heath percebeu que muitas pessoas faziam uma mensura cordial perante Kaiho, mas evitavam olhar para Auriam. Perguntou o motivo dele ser tão mais conhecido que o irmão:

—Não, não... Auriam é tão conhecido quanto eu, mas de um jeito que as pessoas acham mais prudente ignorá-lo.

Heath não entendeu. Nem quis, Auriam parecia muito mais afável que Kaiho, apesar dos silêncios.

—Aqui — Kaiho disse fazendo um gesto em direção a uma tenda.

Heath agradeceu a ambos, Auriam não disse nada, apenas se curvou com docilidade. Ainda incerto, ele entrou. Havia várias pessoas ali, todos tentando entrar. Ele questionou quem estava ao seu redor sobre o evento. Explicaram que Diana dançaria ao amanhecer, despedindo-se dos visitantes. Enquanto isso, quem veio para vê-la precisaria esperar.

Ele abriu espaço na multidão, e conseguiu adentrar na tenda. O lugar era maior de dentro do que de fora, uma tenda ampla com arquibancadas e um picadeiro, tal qual um pequeno circo. Heatn conseguiu um lugar para se sentar e uma garotinha de cabelos multicoloridos ofereceu-lhe pipoca doce enquanto esperavam. Ele permitiu que ela brincasse com a câmera, descobriu que ela se chamava Lily e tinha trezentos e cinquenta anos. Apesar da aparência frágil, devia ser uma garota responsável.

E era. Devolveu a máquina quando um homem gordo pediu silêncio e que todos se sentassem. Uma música suave começou a tocar, não dava para saber de onde ela vinha. Ficou todo escuro, só uma iluminação aparentemente artificial e roxa iluminava o palco.

Era realmente artificial, como se nem todo aquele lugar seguisse um estilo antiguado, afinal. Mas nenhum holofote iluminou Diana quando ela adentrou no picadeiro, na ponta dos pés. Era desnecessário porque ela, literalmente, emitia luz própria. Heath sentiu-se verdadeiramente tocado, uma aura branca tornava visível a figura da bailarina.

Frágil e melancólica, Diana tinha gestos lentos, suaves, dolorosos. Heath nunca gostou de danças lentas, mas aquela garota dava um peso tão hipnótico a cada pequeno movimento, como se nada tivesse sido ensaiado, e ela realmente dançasse sua própria melancolia.

Ela dançou por minutos que pareceram instantes, a luz solar começava a iluminar e entrar pelas frestas da tenda. Ela não se interrompeu, e os telespectadores se levantaram e se puseram a aplaudir, extasiados. Quando tudo de fato se tornou luz, porém, todos foram levados ao desaparecimento por uma treva negra, enquanto ainda aplaudiam. Diana terminara sua dança, e estava imóvel na posição final, de olhos fechados. Heath ficou comovido, era apenas ele e ela ali.

Mas então o homem gordo ressurgiu, despertou Diana de seu transe e chamou-a para dentro. Ela assentiu. Agora, sob a luz do sol, sua aura não mais a adornava, e a beleza que antes esbanjara desaparecia, de súbito. Como um último lamento, ela era apenas uma mulher comum. Bela, sim, mas uma beleza perfeitamente humana.

Assim como a lua, ela não se destacava sob a luz do sol. Cabisbaixa, seguiu para além das cortinas. Tão absorto havia ficado que Heath esqueceu-se de fotografá-la. Tanto o homem quanto a bailarina o ignoraram, como se não houvesse nada de surpreendente em sua permanência ali. Suspirando, decidiu permanecer no mesmo lugar, esperar pela apresentação de Diana na noite seguinte.


 


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