O Circo Mágico escrita por Auriam


Capítulo 4
Encontro com a bailarina




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 A figura solitária e extremamente sóbria de Auriam se destacava enquanto ele andava pelo Circo Mágico. Era impactante notar que o Demônio da Insanidade conseguia em seu porte transmitir muito mais razão e constância do que qualquer outro ser ali presente. Caminhava com discrição, sempre em alerta, sempre carregado de tensão.

— Parece uma bomba prestes a explodir — Cornélia disse para si mesma da sua tenda, enquanto fumava um cigarro — A energia dele se sente de longe, e é destrutiva. Como algo assim se mantêm há tantos séculos dentro de uma pessoa?

Auriam era famoso. Por trás daquele docilidade e aparente indiferença escondia-se um inferno privado, completamente caótico. Poucos tiveram a oportunidade de entrar lá dentro e esses, em seus relatos diziam-se bestificados pela força daquele ser. Se era inofensivo para os outros era porque gastava todas suas energias para manter o domínio sobre si.

Eis ai uma história longa e complicada, não vale a pena contá-la aqui. O que se deve saber sobre é, uma vez que  tem muito trabalho com o mundo dentro dele, dificilmente mantêm sua atenção no mundo ao seu redor. Vê-lo interagir previsivelmente com as pessoas que o cerca é raro, ele não é muito dado a formalidades e a tradições orais como o “Tudo bem com você?”.

É movido por rompantes enigmáticos, falas espontâneas, não solicitadas. Há quem acredite que ele nada sabe, outros acham que ele sabe um pouco de tudo. Cheio de enigmas, incertezas, mistérios. Aproximar-se dele é como andar sobre gelo, cada passo é dado com apreensão, e quanto mais longe se chega mais difícil se torna tomar o caminho de volta. Poucos se atrevem a iniciar essa jornada.

Vê-lo sem Kaiho era raro, ele só se dispunha a viajar para além do seu reino quando forçado. Uma situação curiosa, as pessoas espichavam o olho discretamente tentando descobrir para onde ele ia, com quem falaria. A surpresa foi grande: Ele estava indo ver Diana.

Não era nem uma da manhã ainda, a apresentação da bailarina estava distante, mal havia pessoas perto da tenda onde ele se vivia. Alheio a isso, Auriam adentrou. O que procurava estava exatamente onde previra, em uma arquibancada logo em frente ao picadeiro. Heath estava sujo, barbado, feio. A câmera repousava em seu colo, seu olhar estava fixado no picadeiro, parecia um cadáver indesejado e esquecido.

Auriam suspirou, de alguma forma nada daquilo o surpreendia. Sentou-se ao seu lado e repousou a mão pálida sobre o ombro dele em um gesto amigável, despertando-o de seu transe. Heath o olhou admirado, pasmo. Murmurou com a voz fraca:

— Estou aqui faz quanto tempo?

— Seu corpo? Seis meses. O resto vive transitando entre Diana e o meu reino. Decidi te libertar disso, não posso evitar de me sentir meio culpado.

— Me libertar?

Auriam se levantou.

— Vamos, rapaz. Me siga.

Heath piscou. Depois de tanto tempo parado ali aguardando noite após noite pelo próximo show de Diana ele achava surpreendente o simples fato de se lembrar como andar. Auriam o conduziu para fora e, alheio aos olhares que em algum momento sempre repousavam nele, ajudou-o a se refazer. Pediu para que uma cigana conhecida (a mesma que costurou o olho de Kaiho em Liz) lhe desse um banho e um jeito na barba. Quando Auriam voltou trazia roupas à moda do circo com ele. Um terno mórbido furado, causas risca de giz, uma botina.

Parecia-se realmente com alguém do Circo Mágico, pela primeira vez. As pessoas já o olhavam de outra forma, um pouco mais respeitosa. Ele deixava a máquina fotográfica pendurada em seu pescoço e tentava disfarçar a curiosidade alheia que não mais se dirigia apenas ao homem que o conduzia. Auriam falou, depois de muito silêncio:

— Arrumarei um encontro particular entre você e Diana, espero que faça bom uso disso. Que não se perca, não partirei em seu auxilio outra vez.

Heath mal conseguia esconder seu espanto, aquele homem tão distante e impenetrável estava mesmo ali para ajudá-lo.

— O que você quer de mim...? — Questionou debilmente.

Auriam não respondeu, revirou os olhos. Mais uma vez o silêncio prevaleceu, era três da manhã, o show de Diana se aproximava. Entraram na tenda ainda vazia, mas dessa vez não se sentaram num dos bancos. Ao invés disso, seguiram pelo picadeiro pouco iluminado e atravessaram as cortinas.

— Você sabe mesmo o que está fazendo? — Heath perguntou.

O silêncio de Auriam era uma resposta ambígua. Heath não compreendia, como poderia ser tão fácil entrar para ver Diana? E ele ficou meses esperando por alguns minutos para ver a gloriosa bailarina... O homem gordo surgiu na frente de Auriam como que por mágica, ele erguia um porrete na mão.

— Saíam daqui!

— ”A”, sou eu. — Auriam disse sem titubear perante aquela ameaça.

O homem arregalou os olhos e abaixou a arma.

— O que você quer aqui?

— Vim cobrar aquele velho favor...

"A" riu uma risada sonora, assustadora:

— Até você cobra favores, afinal...

— Não é nada grave, acalma-se, por favor.

— O que você quer?

— Meu amigo quer bater uma foto da sua bailarina, é possível?

Agora o homem estava realmente calmo, olhava para Heath com uma cara de bobo. Era assustador ver uma pessoa mudando de humor naquela velocidade

— Uma foto? Fotos não roubam a alma?

— É uma máquina de humano, quer checar?

— Não, não... Eu confio em você. Para que isso?

— O rapaz quer começar uma carreira nova, pode ser bom para o Circo.

O homem sorriu:

— Cero, certo... Era só isso então. Pregou-me um susto, homem. Que abordagem foi essa?

— Culpa do meu irmão, estou pegando as manias dele. Deixo ele nas suas mãos, então?

— Claro, claro — “A” deu-lhe um rápido apertão no ombro — Sabia que podia confiar em você, no fim das contas. Você não iria ferrar comigo, você não é esse tipo de demônio...

Auriam não se alterou:

— Preciso me retirar agora, meu caro. Venha me visitar e nos falamos.

Ele abriu os olhos e disse em um tom receptivo:

— Ah sim! Mas não, não tenho planos de visitá-lo de novo.

Auriam se forçou a sorrir:

— Ninguém planeja.

E afastou as mãos de “A”, reclinando-se suavemente. Retirou-se, deixando “A” a sós com Heath:

— Aqui, garoto, me siga.

— Sou Heath, Heath Ward. E definitivamente, não sou um garoto.

— Quantos anos tem?

— Trinta e seis.

“A” apenas riu outra risada sonora e continuou andando. Os bastidores daquele circo pareciam-se com uma sucessão de entradas vazias e cortinas, uma enorme e bagunçada tenda de circo. Uma passagem escondia o camarim de Diana, uma repartição que não fazia jus a sua beleza perfeita. Ela encontrava-se em sono, já com as roupas do show e maquiada. A aura banca não lhe adornava, mas ele já estava envolvido o bastante para não precisar daquele adorno para tê-la como divina e inumana.

Como que por impulso ele pegou a máquina e bateu a primeira foto. A bailarina despertou, assustada.

— “A”!? — Ela chamou, acuada.

— Não quer assustá-la, quer? Contenha-se! —  "A" pediu e se aproximou da bailarina, sentando-se ao lado dela e dizendo em um tom baixo, muito gentil — Diana, minha querida, esse homem é amigo de Auriam e quer trocar umas palavrinhas com você, ele não vai te machucar, só vai tirar umas fotos. Você se importa?

Ela lançou um olhar acuado para Heath, avaliando-o com algum receio. Sua voz saiu como em um suspiro:

— Acho que não tem problema...

“A” sorriu amavelmente.

— Deixarei os dois a sós. Qualquer coisa, Diana, é só gritar. Não deixe ele te tocar, estarei lá fora.

Ela assentiu com suavidade e “A” se retirou do cômodo. Heath franziu o cenho, a câmera na mão, prostrado diante de Diana, incapaz de dizer qualquer coisa. Ela lhe lançou um olhar, um questionamento silencioso. Ele bateu outra foto, capturando o momento.

— Vou ficar cega...

— Me perdoe.

— Você fala!

— Apenas estou um pouco...

— O que?

— Atordoado.

— Por que?

— Não esperava vê-la. Não desse jeito.

— Como queria me ver?

— Dançando.

— Logo, logo eu...

— Não, eu tentei, estou tentando há meses, mas não consigo...

— Então era você!

— O que?

— Que sempre sobrava na plateia. Eu tinha medo do jeito que você me olhava.

— Me perdoe...

— Não, não é sua culpa. Eu que tenho medo de quase tudo...

— Como você faz para brilhar?

— Eu danço... Quando a dança termina eu não brilho.

— Importa-se de levantar? Pode fazer aquela sua última pose? Aquela com a qual você termina todas suas danças.

— Tudo bem...

Diana disse levantando-se e obedecendo. O diálogo parou por algum tempo, Heath dava ordens simples “Vira a cabeça para cá”, “Olhe para lá” e ela obedecia em silêncio. Em dado momento, pediu:

— Posso ver depois?

— Claro... Preciso descobrir como vou fazer para revelar fotos aqui, sem meus equipamentos. Se tudo correr bem venho em pessoa lhe mostrar.

— Certo... o cenário? Não fica feio?

— Gosto do contraste, você nesse ambiente tão... decadente...

Ela sorriu um sorriso tímido:

— No fundo eu também sou parte disso aqui...

— Então você engana bem...

— Como você disse que se chamava?

— Não disse. Heath Ward. Seu nome é mesmo Diana?

— É sim.

— Como veio parar aqui?

— É uma longa história...

— Temos tempo.

— Não, não temos — Ela disse com um uma expressão tensa. — ”A” nunca me deixa ficar mais do que alguns minutos com um desconhecido.

— Por que?

Ela não respondeu. Baixou o rosto, uma expressão doída no rosto. Ele insistiu, e ela, sem muita resistência, cedeu:

— Ele tem medo... De alguém me roubar dele, de alguém me machucar. Ele tem motivo, sabe? Uma vez um homem muito mau, ele... Isso foi há muito tempo. “A” perdeu muita coisa para me salvar.

— Você é o que dele?

— Irmã mais nova... A gente entrou para o circo junto...

“A” entrou e olhou com reprovação para Diana:

— Eu já te disse...

— Mas ele...

“A” não deu ouvidos, maneou a cabeça para que Heath o seguisse. Ousado, ele ainda teve coragem de prometer:

— Quando revelar, te trago as fotos!

Diana lançou-lhe um sorriso triste, sentando-se em sua cadeira:

— Vai me ver danças?

— Não.

A expressão dela se tornou ainda mais melancólica. Ele se retratou:

— Ficaria preso aqui de novo.

E se retirou com “A”. Imaginou que seria ameaçado, apanharia, qualquer coisa. O homem apenas lhe conduziu para fora da sua tenda, no último instante, alertou:

— Gente muito mais poderosa que você, seu patife de merda, tenta em vão encontrar-se com Diana. Fiz essa cortesia em nome de uma velha amizade, mas, acredite, não irei me repetir.

Heath recuou perante aquela fala, assistiu em silêncio “A” sair da sua frente, retornando para a doce Diana. Com a câmara na mão ele refletiu, absorto, sobre as preciosidades que se encontravam escondidas lá dentro. Revelaria as fotos de Diana e daria a bailarina uma cópia de cada como presente.

Diana... Era óbvio demais para ele, estava completamente apaixonado. Ela, um anjo frágil, sofrido. O mundo fora gentil ao lhe dar aquele irmão protetor, ele tinha plena ciência disso. Custasse o que custasse, porém, Heath desafiaria a autoridade fraterna apenas para falar com a dançarina novamente.


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