Cisne Negro escrita por Atena


Capítulo 3
Despedidas


Notas iniciais do capítulo

Oi, oi, gente! Como estão?
Desculpem a demora em atualizar, espero que gostem do capítulo para compensar ♥



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Bella

 5 de setembro

 

Acordei assustada, sentada na cama, como se tivesse tido um pesadelo. Minha mente estava nublada pelo sono, e eu me sentia confusa.

Aos poucos meus olhos foram se acostumando a escuridão até que eu estivesse enxergando tão claramente como se as luzes estivessem acesas. Peguei meu celular na mesa de cabeceira - 3:43 da manhã – e esfreguei os olhos. Ainda tinha umas boas horas de sono.

No entanto, assim que voltei a deitar percebi que algo estava errado. Apurei os ouvidos, tentando ouvir qualquer som incomum, e saí lentamente da cama, caminhando até a janela para enxergar lá fora.

Ao longe, podia ver o contorno dos muros que cercavam todo o perímetro da minha casa, o qual eu outrora apelidara carinhosamente de A muralha devido à sua altura de quase cinco metros. Minha janela tinha vista para o extenso gramado e o pequeno lago que ficava próximo ao caramanchão coberto de trepadeiras da minha mãe. Tudo estava tranquilo e iluminado pela lua – aliás, tranquilo até demais.

Por segurança, peguei a arma que havia guardado debaixo do travesseiro. Não havia nada que indicasse que algo estava errado, e eu sabia que cinco guardas faziam rondas pela Muralha toda noite, além dos outros dois que sempre ficavam guardando os portões, mas meus sentidos estavam apitando.

Lembrei da forma como a noite anterior havia terminado, e sabia que em poucas horas estaríamos na estrada, indo para algum destino até então desconhecido. Talvez eu estivesse apenas nervosa ou ansiosa, mas no fundo da minha mente eu sabia que não.

Ainda descalça segurei firme em minhas mãos a arma destravada, e em passos lentos e silenciosos caminhei até a porta do quarto antes de colar o ouvido na superfície de madeira: nada, nenhum som incomum.

Protegi o corpo na parede ao lado da porta e lentamente girei a maçaneta, impulsionando a porta com força suficiente apenas para que ela abrisse pela metade, e dei uma espiada para fora do quarto.

O corredor escuro me encarou de volta, completamente vazio além dos quadros e plantas que decoravam as paredes. Eu devo estar maluca, pensei. Me perguntei se deveria ligar as luzes, mas algo me dizia que não. Ao invés disso, caminhei até a porta do quarto dos meus pais e a abri devagar. 

A luz da lua entrava pelas janelas panorâmicas, iluminando o chão e a cama onde meus pais dormiam com tranquilidade. Fechei a porta atrás de mim, caminhei até onde meu pai estava e toquei seu ombro levemente.

— Pai – sussurrei -, pai! Acorda.

Assim como eu ele acordou assustado, os olhos arregalados.

— Bella?

— Tem alguma coisa errada – tornei a falar.

— O que foi?

— Eu não sei, mas tem.

Rapidamente ele levantou, pegou uma arma na gaveta da mesa de cabeceira e me olhou.

— Acorde a sua mãe, leve-a para o quarto do pânico e fiquem lá.

— O que? Não!

— Faça o que estou falando, Isabella – ele devolveu, pegando o celular. – Estou sem sinal. Você também?

Tateei os bolsos por alguns segundos antes de lembrar que havia deixado meu celular no meu quarto.

— Eu não sei – respondi, observando-o caminhar até a janela para olhar a vista lá fora.

— Eu não sei o que você está sentindo, mas confio no seu julgamento e, de qualquer modo, não estou vendo nenhum segurança lá fora.

Estávamos conversando aos sussurros, tão baixo que mal nos ouvíamos, apesar da minha audição ser excelente.

Caminhei até onde ele estava e olhei a mesma vista que havia observado do meu quarto. Sim, estava calmo demais.

— Não consigo enxergar os portões daqui – ele disse -, mas eles deveriam estar de ronda e ainda não vi nenhum deles. Você tem razão, tem algo errado.

Eu confiava muito nos meus sentidos e no meu julgamento, mas ter a confirmação deles vinda do meu pai me tranquilizou – apenas por um segundo.

— O que está acontecendo? O que vocês não estão me contando? Eu preciso saber para poder ajudar, pai.

Ele me olhou, exasperado, mas pude ver a preocupação brilhar nos olhos dele.

— Bella – seu tom era extremamente cortante, mesmo em sussurros -, agora não é hora para conversa. Se você quer ajudar, acorde a sua mãe e faça o que eu mandei.

Bufei e caminhei até a minha mãe, tocando no ombro dela da mesma forma que havia feito anteriormente com meu pai. Antes mesmo que ela acordasse, no entanto, fiquei ereta: um som abafado de janela quebrando veio do andar de baixo, tão baixinho que apenas eu ouviria.

— Estão aqui!

Meu pai me olhou, e pude ver o entendimento passar pelo rosto dele. Imediatamente cobri a boca da minha mãe e chacoalhei seu corpo com urgência, colocando meu dedo indicador sobre os lábios assim que ela acordou, assustada.

O plano de ir para o quarto do pânico adquiriu um novo nível de dificuldade, tendo em vista que ele ficava no primeiro andar, mas mesmo assim ajudei ela a se levantar e entreguei minha arma a ela, que logo se pôs com as costas coladas na parede ao lado da porta, nos dando cobertura.

Enquanto isso meu pai já estava no closet e fui até ele, mais uma vez impressionada com a enorme coleção de instrumentos mortais que geralmente ficava escondida no fundo do cômodo, mas que estava a vista agora que papai tinha removido do pedestal o espelho de corpo inteiro que cobria o esconderijo. Diversos tipos de facas, armas, pentes, coldres, granadas e até fuzis estavam arrumados organizadamente, cada um em seu respectivo local.

Ele me passou um cinto igual ao que ele já estava usando, e como sempre, me cérebro já estava dividido: uma parte prestando total atenção nos sons vindos do andar abaixo, onde eu podia ouvir as janelas sendo abertas devagar, provavelmente para abrir passagem; outra bolando alguma estratégia que me permitisse levar minha mãe para o quarto do pânico; e outra se perguntando como eles conseguiram passar pelos seguranças e desativar os alarmes.

A quarta parte estava focada ali: meus movimentos tão automáticos que eu mal pensava. Fechei o cinto ao meu redor e encaixei uma faca, três pentes cheios e uma Glock g17. A essa altura eu já podia ouvir diversos passos subindo a escada, portanto corri até a porta, agradecendo o carpete que silenciava meus passos ao mesmo tempo em que não permitia que meus pés descalços deslizassem pelo chão.

O corredor do segundo andar era largo, em formato de T, no qual a escada em curva encontrava-se no meio e dava para um hall amplo que se dividia em duas pontas compridas: à direita, um corredor com a biblioteca, um banheiro e dois quartos de hóspedes, e à esquerda o quarto dos meus pais ao fundo, perpendicular ao meu, além do escritório do meu pai e o ateliê da minha mãe.

A ideia era chegar até o fim do corredor, antes do hall, e surpreendê-los. Eu precisaria eliminar o máximo de homens possíveis para conseguir chegar ao meu destino: o quarto do pânico, escondido atrás da estante de halteres da academia no primeiro andar.

Meu pai veio atrás e, sem emitir som nenhum, vi seus lábios se mexerem em uma pergunta: quantos?

Eu forcei meus ouvidos. Eles subiam as escadas devagar e, além desses, mais alguns caminhavam pelos cômodos do primeiro andar. Apesar da lentidão, eu não conseguia contar com exatidão, porque eram tantos.

Ele entendeu a resposta estampada no meu rosto. Apesar de ter sido treinada para aquilo a minha vida inteira, eu jamais imaginaria que algum dia fosse ser usar todo aquele treinamento. Na minha cabeça, meu pai era apenas um homem muito maluco e super protetor, mas agora via que não.

Eu estava apavorada – precisava admitir aquilo para mim mesma. Estava completa e irrevogavelmente cagada de medo. Por mim, mas principalmente por eles. Um passo em falso e eu poderia perde-los.

Tudo isso passou pela minha cabeça em um décimo de segundo, meus pensamentos tão rápidos quanto uma bala. Respirei fundo e sussurrei:

— Eles estão subindo a escada. Eu vou na frente, mamãe por último, e você cobre a minha retaguarda.

Surpreendentemente ele concordou, levantando a mão direita para eu pudesse ver o que ele estava segurando: uma granada de fumaça. Assenti, decidida, e olhei para o rosto lindo da minha mãe, tentando ignorar o sentimento de que era a última vez que eu veria aqueles olhos – mas ela me olhava da mesma forma.

Ela segurou a minha mão com força.

— Independente do que acontecer – ela sussurrou -, quero que me prometa que vai se proteger. Sua segurança acima de tudo.

— Mamãe...

— Prometa.

Olhei nossas mãos juntas, o calor dela me aquecendo até os ossos. Suspirei e respondi:

— Eu prometo – menti.

Juntos, abrimos a porta em silêncio e eu fui na frente, as costas rentes a parede. Assim que chegamos ao final do corredor, ainda escondidos, ouvi um clique e algo rolando até parar no meio do hall.

E então tudo ficou nublado pela fumaça.

A partir daí passei a enxergar tudo em câmera lenta e em uma resolução tão boa quanto uma câmera 5K: o corredor escuro, a fumaça tão densa que era quase palpável, o som do coração dos meus pais. Levantei a arma e saí do meu local seguro, atirando em tudo o que se mexia, sempre mirando a cabeça. Os corpos caíam como frutas maduras, o som abafado na superfície coberta pelo carpete.

Por um milésimo de segundo lembrei de um dos treinamentos com alvos em movimento que meu pai havia me dado: os alvos se mexendo tão rápido, às vezes em zigue-zague, sempre vindo em minha direção.

Aquilo era completamente diferente. Eram pessoas. Pessoas com vidas pessoais, família... pessoas que queriam honesta e sinceramente me matar.

Eu podia ouvir os passos agora apressados, os gritos deles chamando reforços, os corpos caindo. Meu pai se juntou a mim e, juntos, nos movemos em meio a fumaça, aproveitando a vantagem tática de estarmos acima da visão de qualquer um.

Logo o chão ficou coalhado de corpos, tantos que eu mal podia contar, alguns por cima de outros, alguns de barriga para cima, de lado... e conforme fomos avançando, senti meu estômago se retrair quando meus pés descalços deslizaram em algo morno e pegajoso – sangue.

Antes eles do que nós, pensei.

Ao chegarmos no alto da escada contei cinco corpos espalhados pelos degraus, e então tudo ficou em um silêncio absoluto. Não mais que três minutos haviam se passado desde o primeiro disparo, e meu coração estava tão acelerado que parecia querer sair do peito.

— Tem mais lá embaixo – eu sussurrei, obrigando meu pai a recuar para que saíssemos do campo de visão.

Eu sabia que, assim que descêssemos, viraríamos alvos fáceis. Talvez por isso mais ninguém houvesse subido, apesar de eu conseguir ouvir seus sussurros ininteligíveis vindos de todos os cômodos da casa.

Olhei para os meus pais. Eu precisava de outro plano. Não poderíamos ficar ali, em algum momento eles subiriam. Além disso, não havia rota de saída do andar de cima. A menos que...

— Fiquem aqui – eu falei. – Vou fazer a volta e surpreende-los.

— O quê? – minha mãe perguntou.

— Pela janela da biblioteca. A treliça das trepadeiras.

— Nós não vamos nos separar – meu pai contrapôs. – De jeito nenhum.

— Não tem outro jeito.

— Então vamos juntos – minha mãe concluiu.

Eu não estava nem um pouco certa de que aquela era a decisão correta, mas antes que eu pudesse argumentar meu pai pegou outra granada de fumaça do seu coldre e a jogou por cima do guarda-corpo, diretamente na sala lá embaixo, onde ela acionou, tornando tudo ainda mais escuro do que já estava.

Aproveitando a distração, corremos em passos silenciosos até a biblioteca e trancamos a porta.

— O plano é o seguinte – meu pai começou.

 

Poucos minutos depois eu estava sozinha ao lado da porta da frente, do lado de fora da casa. Havia prendido os cabelos engrenhados em uma trança, e ainda restava um pente e meio no meu cinto, além da faca. De onde eu estava, eu podia ver os corpos dos seguranças pontilhando nosso gramado, e bem ao lado da porta, grudado na parede, havia algum tipo de dispositivo com uma luz verde piscando – talvez aquilo fosse a explicação para a falta de sinal ou o alarme desativado. Ou ambos.

Me perguntei se deveria fazer algo a respeito, mas eu precisava entrar na casa e, de qualquer modo, faria barulho demais, então decidi ignorá-lo e seguir o plano conforme meu pai havia organizado.

Fiquei ali, à espreita, sempre atenta, mas aparentemente todos estavam dentro da casa. E então ouvi um estrondo: o meu sinal.

Logo os sons de tiros enchiam o ambiente novamente, e foi aí que eu comecei: mirei na tranca da porta e atirei, o som abafado graças ao silenciador que meu pai me dera, e abri a porta. Se tudo estivesse saindo como o planejado, todos estariam concentrados no meu pai.

Entrei na casa às pressas, sem parar no hall, onde eu possivelmente poderia ficar encurralada, e me joguei atrás do sofá mais próximo. Repassei rapidamente a imagem em minha memória: meu pai havia entrado pela varanda da sala e estava atirando em tudo o que se movia, sendo fácil distinguir ele dos demais pelo seu pijama azul dentre os diversos homens vestidos de preto e verde-militar. Além dele, pelo menos outros 24 estavam presentes, divididos entre vários pontos da sala que oferecessem o mínimo de proteção.

24 homens. Minha respiração ficou presa na garganta. 24, no mínimo, fora os que estavam mortos lá em cima. O que eles queriam com a gente?

De joelhos, ainda escondida atrás do sofá, voltei a olhar a multidão de homens dentro da sala. Mirei no primeiro e, a partir daí, acertei mais 10 antes que eles se dessem conta do que estava acontecendo. Eu ainda tinha 7 balas.

A essa altura já não fazia ideia em qual cômodo meu pai estava, mas se estivesse indo como o planejado, ele deveria ter ido para a cozinha.

Ouvi alguns passos se aproximando da minha localização e, antes que eles pudessem me pegar de surpresa, eu rolei até o outro lado do sofá e, com um impulso, levantei e voltei a atirar.

A sensação era incrível: tudo parecia estar em câmera lenta, de modo que eu conseguia atirar antes que eles pudessem reagir. Haviam 6 voltados para mim, e consegui acertar quatro quando senti alguém às minhas costas enrolar o braço em meu pescoço.

Mesmo assim eu não parei. Impulsionei minha cabeça para traz com força, ouvindo com prazer o som de um nariz quebrando e um gemido baixo. Aproveitei a distração para acertar os últimos dois, meu dedo mal saindo do gatilho.

Hora do corpo-a-corpo.

O braço ainda estava ao redor do meu pescoço, apertando cada vez mais, e eu podia sentir todo o corpo do homem grudado às minhas costas, pelo menos duas vezes maior que eu, então dei mais uma cabeçada antes de pegar minha faca no cinto e cravar no abdômen dele.

Por que ele não atirou em mim antes?

Me joguei no chão e rolei, e parei de joelhos. Uma parte do meu cérebro me avisou que havia uma queimação no ombro direito e sangue escorrendo devido a algum tiro de raspão que não havia reparado antes, mas ignorei.

Me voltei para a sala de jantar, onde o cara que eu havia esfaqueado estava apoiado, e investi contra ele.

Eu não era pequena – longe disso. Para a média, era relativamente alta, e os treinos pesados haviam me proporcionado músculo e força que ninguém esperaria que uma garota de dezoito anos pudesse ter. Mesmo assim, precisei acertar três socos no rosto dele antes de finalmente tirar ele do jogo – incapacitado, mas vivo.

Retirei a faca da barriga dele, mas antes que eu pudesse finalizar como deveria, alguém pulou em mim e caímos ambos no chão. Minha cabeça bateu com força e o ar fugiu dos meus pulmões. Ele me virou de barriga para cima e socou meu estômago com tanta força que eu quase vomitei, não fosse o segundo soco que fez meu lábio se partir ao meio e o gosto de sangue inundar a minha boca.

Meu cérebro estava nublado pela dor, os sons daquela guerra interminável ainda acontecendo ao meu redor. Ouvi meu pai gritando meu nome, mas meus ouvidos zumbiam. Abri os olhos e observei o homem se ajoelhar por cima do meu corpo, suas pernas me apertando. Seus olhos brilhavam e, assim que nossos olhos se encontraram, dourado no preto, eu o vi sorrir de prazer.

— Te achei – ele sussurrou.

Talvez fosse a dor, talvez fosse a tontura – fosse o que fosse, eu não consegui fazer nada enquanto ele apertava meu pescoço com força, aumentando a intensidade lentamente, os dentes brancos reluzindo dentro do seu sorriso sádico. Quando mais sem ar eu ficava, mais seu sorriso aumentava.

Logo comecei a ver pontos pretos dentro da minha visão e passei a tentar inutilmente arranhar seus braços, o tempo todo ouvindo tiros e os gritos do meu pai chamando por mim, mas eu sabia que ele estava longe. Eram homens demais.

Meus braços caíram moles ao meu lado, minha visão escurecendo cada vez mais, quando senti o cabo da faca roçar no meu indicador. Ele aumentou a intensidade do aperto, e tudo o que eu senti antes de desmaiar foi seu corpo caindo ao lado do meu.

 

— Bella – ouvi alguém chamar. – Bella, levante.

A voz era sedosa, assim como a brisa que passava pelo meu corpo.

— Hey, Bella – ele chamou novamente.

Preguiçosamente eu abri os olhos, sorrindo ao encontrar seus olhos verde-esmeraldas me encarando, divertidos.

O cheiro de mangas maduras inundou meu olfato, e ele estendeu a mão.         No entanto, quando ele abriu a boca para falar algo, a voz soou diferente e distante:

— Bella! Bella, levante!

 

E então eu acordei.

Meus olhos fitaram o teto da minha casa, e tudo o que eu conseguia sentir era dor em todos os pontos do meu corpo. Meu cérebro estava tão enevoado pelo torpor que eu mal raciocinava.

— Bella! – a voz gritou novamente, e eu reconheci a voz da minha mãe.

Apesar da dor, a voz dela me trouxe de volta a realidade e em um pulo eu estava sentada. Não fazia ideia de quanto tempo eu havia apagado, mas o chão estava coberto de corpos e tudo era um repleto silêncio. Minha mãe estava sentada ao meu lado – longe da biblioteca, que era onde ela deveria estar o tempo todo. Era esse o plano.

— Mãe?

O rosto dela estava encharcado, seus olhos vermelhos, e então senti meu pijama estranhamente molhado. Meu estômago deu uma cambalhota quando vi que eu estava coberta de sangue, e imediatamente apalpei todo o meu corpo antes de suspirar de alívio ao constatar que não era meu.

Estávamos na sala de jantar, protegidas pela parede que servia de divisória para a sala de estar, e eu estava completamente desarmada. Minha mãe não deveria estar ali, e eu não sabia onde meu pai estava.

— Eu ouvi seu pai gritando por você – ela explicou, a respiração ofegante -, fiquei desesperada.

— E o meu pai? – perguntei aos sussurros, apesar de tudo estar em completo silêncio.

Mais lágrimas rolaram pelo rosto dela, os olhos transbordando dor. Fiquei a encarando, e levei um tempo até entender o que a expressão dela me dizia.

— Não – me ouvi dizer. – Não, não.

— Bella...

— Mãe, onde ele está?

A única resposta que eu obtive foi um soluço vindo ela, e então eu soube.

Eu levantei e passei a correr pelos corpos caídos, a procura dele. Ele não podia estar morto. De jeito nenhum.

Àquela altura eu já não ligava mais se estava sendo um alvo fácil, não importava. A dor escoava de mim em ondas, deixando minhas pernas moles. Eu ouvia os soluços da minha mãe enquanto corria pela casa, gritando por ele, meus pés deslizando no chão encharcado pela carnificina que havia virado aquilo que eu chamava de lar.

Passei pela cozinha, pela academia, subi até o segundo andar, mas não o vi em lugar nenhum. Abri todas as portas possíveis, fui em todos os cômodos que minha casa possuía. Eu nunca havia sentido aquele sentimento – um desespero tão profundo que corroía a minha alma e cegava meus sentidos. Eu não conseguia sequer imaginar perder meu pai, meu melhor amigo, minha maior companhia.

No entanto, foi quando eu desci as escadas novamente que eu o vi.

Foi como se eu batesse em uma parede invisível. Um choque passou pelo meu corpo, arrepiando todos os pelos que eu possuía, e eu precisei me segurar no corrimão para manter meu corpo em pé.

Embaixo de um dos invasores, perto da mesa de centro, eu reconheci o seu pijama azul.

Tudo ao meu redor pareceu escurecer, de modo que a única coisa que eu enxergava era o corpo dele parcialmente coberto por outro. Eu nem percebi que estava andando até estar ao lado dele, ajoelhada, segurando sua mão. 

Minha visão estava embaçada pelas lágrimas, meu rosto tão molhado que elas pingavam como chuva no meu colo. Eu não conseguia emitir som nenhum, nem ouvir nada, apenas olhar o rosto congelado do meu pai, seus olhos castanhos ainda abertos, embora não houvesse vida dentro deles.

Eu sabia que minha mãe me chamava, mas a sua voz parecia cada vez mais distante, cada vez mais fraca... meu corpo estava travado e o meu peito, em chamas, minha garganta tão apertada que eu não conseguia nem respirar.

Quando o primeiro soluço saiu foi como abrir a comporta de um oceano, e logo eu estava chorando em completa amargura. Meu pai era a pessoa mais forte que eu conhecia, era impossível acreditar que nunca mais o veria.

Puxei o corpo dele para mais perto de mim, abraçando-o o mais forte que eu podia. Todas os meus sentidos estavam em pura agonia, e perdi a noção de quanto tempo fiquei ali, embalando seu corpo junto ao meu, chorando tanto que enxarquei a nós dois com as minhas lágrimas.

Senti o toque da minha mãe antes de ouvi-la chegando, e logo éramos nós duas ali, abraçadas ao corpo do meu pai, chorando juntas.

— Eu amo você, Bella – ela sussurrou para mim entre os soluços. – Amo mais que tudo.

Eu não conseguia falar, então tudo o que fiz foi aperta-la mais em meu abraço, molhando seu cabelo com as lágrimas que eram fruto do meu desespero.

Com o passar do tempo, percebi – tarde demais – que eu embalava não apenas um, mas dois corpos. Abri os olhos, confusa, e o corpo da minha mãe desabou nos meus braços.

— Mamãe? – minha voz soou rouca aos meus ouvidos, mas ela não me respondeu. – Mamãe?!

Foi então que eu entendi, olhando seu corpo caído de lado, porque eu acordei tão encharcada de sangue. A sua camisola brilhava em um tom carmim, um degradê horrendo no que outrora era um branco impecável.

O momento em que acordei voltou à minha mente – seu rosto suado, sua voz fraca. Arregalei os olhos, percebendo tarde demais que eu havia perdido não só o meu pai, mas a minha mãe também.

Já era dia quando eu me acalmei. O amanhecer iluminava toda a sala, evidenciando ainda mais a cena horrenda a minha frente.

Eu estava encostada na mesa de centro, sentada no chão com os joelhos abraçados com força contra o meu peito enquanto observava os corpos dos meus pais, cercada por uma quantia absurda de corpos.

Eu havia sido treinada para aquele momento a minha inteira, e mesmo assim eu falhei. Fui pega na primeira oportunidade. A constatação de que ambos os meus pais provavelmente haviam morrido tentando chegar até mim era a única coisa que passava pela minha cabeça.

Era minha culpa.

Um raio de sol me atingiu, aquecendo meu corpo gelado. Uma risada irônica independente saiu dos meus lábios quando eu lembrei que, teoricamente, era para estarmos em um carro longe dali. Não tínhamos tido tempo.

Olhei mais uma vez para os rostos dos meus dois pais. Meu coração estava tão fundo dentro do meu peito que eu nem conseguia senti-lo. Com um último suspiro resignado, me inclinei para fechar os olhos do meu pai e, por fim, levantei de onde eu estava.

Por mais que eu quisesse ficar ali, lembrei do pedido do meu pai e fui atrás da minha faca, a qual eu levei um tempo até lembrar que ainda estava no pescoço do homem que havia me apagado.

Eu me sentia distante de mim, como se observasse toda a cena de fora. Retirar aquela porcaria de pendrive era a última coisa que eu queria fazer, mas precisava.

Voltei até o meu pai e me ajoelhei novamente ao lado dele. Precisei respirar fundo três vezes antes de cortar o tecido que cobria a sua coxa direita até encontrar a pequena cicatriz acima de uma elevação que havia em sua pele.

Fiz um corte superficial ao redor até expor o minúsculo quadradinho preto que meu pai havia colocado ali, tantos anos atrás, imaginando que isso – aquele dia – aconteceria em algum momento.

Levantei o pendrive até a altura dos olhos e, após enxugar minha última lágrima, fui até meu quarto.

Eu estava em um estado deplorável: a roupa cheia de sangue, os olhos inchados, o lábio cortado... tomei um banho rápido antes de me vestir com as roupas que eu havia separado no dia anterior, então peguei a mochila, meu celular, minha caixa de fitas de cabelo e voltei para o andar de baixo.

Eu não fazia a menor ideia do que fazer ou para onde ir, mas precisava sair dali. Provavelmente mais homens chegariam em algum momento, tendo em vista que nenhum sobreviveu para voltar. Além disso, eu havia prometido para a minha mãe que me manteria em segurança.

A partir disso, perdi o controle do meu corpo e deixei que apenas meu subconsciente agisse. De alguma forma, sabia que precisava apagar todas as evidências e todos os meus rastros, então fui até a garagem, coloquei a mochila no banco do carona do carro e peguei um grande galão de gasolina.

Comecei pelo segundo andar, deixando um rastro de gasolina por todos os cômodos antes de descer para o primeiro. Molhei as cortinas, os corpos, toda a cozinha e, quando entrei no carro, deixei um rastro de gasolina conforme dirigia para fora da minha casa.

Ao passar pelo portão, dei uma última olhada no local que havia sido meu lar desde o dia em que eu nasci. A casa imponente cercada por grama verde e fofa, as telhas azul-marinho, as varandas e as enormes janelas de vidro, o lago que tantas vezes eu havia nadado...

— Amo muito vocês – eu sussurrei.

Então joguei o isqueiro aceso na trilha de gasolina, engatei a primeira marcha e observei a trilha de fogo chegar até a minha casa antes de pisar no acelerador do carro que me levaria para longe dali.

Eu estava a três quarteirões de lá quando ouvi a explosão.


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? Não sei se sou boa em escrever emoções ruins, então aceito sugestões e críticas.

Um beijo, e até a próxima!



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