Quelíceras escrita por Shalashaska


Capítulo 2
Detalhes


Notas iniciais do capítulo

Vamos a um tour pela casa de Miguel O'Hara!



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Depois de levar Gabriella para a escola, Miguel ligou para o trabalho para pedir o dia de folga. Não foi muito difícil, já que o Miguel daquele universo era funcionário de uma pequena indústria farmacêutica, nada comparável a Alchemax — e talvez justamente por isso, as condições de trabalho eram melhores. Ele falou sobre o assalto no beco que tentou impedir na noite anterior, as roupas sujas de sangue e choque pelo suposto episódio violento. Precisava de um tempo para reorganizar as ideias e esperava estar mais em si até segunda-feira.

Em pouco menos de dez minutos de conversa, ele foi liberado. Era bom funcionário, tinha horas acumuladas no banco de horas e todos sabiam que ele tinha uma filha para cuidar.

Até pouco depois da hora do almoço, Miguel ficaria sozinho.

Seu objetivo com o dia livre era se adaptar melhor em casa, com os objetos e documentos e demais detalhes da vida do outro Miguel. As impressões digitais dos dois eram as mesmas, então não houve problema com o sistema de segurança do celular. Felizmente, o outro Miguel era avesso às redes sociais, limitando-se a um perfil único em um aplicativo que Gabriella também usava, para melhor acompanhá-la na vida online. Bom sinal de responsabilidade parental. Documentos, correspondências, histórico médico de Gabriella e senhas, por sua vez, estavam bem organizados no escritório e ele só podia agradecer ao próprio instinto metódico que atravessava dimensões. Suas chances de confusões e sufocos com burocracia eram bem menores. Porém, mais coisas poderiam complicar o começo de sua nova vida; por exemplo, o nome de vizinhos, colegas e demais situações sociais que Miguel não pôde acompanhar em totalidade para memorizar. A desculpa de seu pequeno estado de choque seria plausível somente até determinado ponto, então nada mais lógico do que tentar se habituar o mais rápido possível. Ele andou pela casa, pontuando mentalmente alguns tópicos.

Mais fácil começar pelo básico:

Miguel O’Hara, trinta e quatro anos. Funcionário há sete anos da Apotena, indústria farmacêutica. Uma casa, um carro. Pai de uma menina, Gabriella. Não tinha poder ou habilidade incomum, exceto uma disposição invejável para trabalhar, cuidar da casa, da filha e ainda praticar atividades físicas intensas. Solteiro.

Ele encarou os porta-retratos apoiados na mesa do hall e pegou um deles, o qual mudava de foto de dez em dez segundos. Bom, tecnicamente Miguel era viúvo. Em todas as imagens daquele porta-retratos eletrônico, havia o rosto de Tempest Monroe, sua esposa. E era difícil conceber a ideia de que, naquele universo, Miguel tinha realmente se casado com ela e formado uma família, já que os dois eram distantes no seu próprio universo. Mais difícil ainda era entender que ela havia morrido de câncer não muito tempo depois de Gabriella nascer.

Uma tristeza que não era sua crescia em seu peito, mas ele achava justo compartilhar das dores daquele Miguel se ele agora aproveitava de suas alegrias. Uma troca razoável. Se ele desejava abraçar a felicidade, tinha que aceitar o luto.

Depois, passou a pensar nas coisas que podia inferir sobre a vida do outro Miguel.

Ele parecia um sujeito tranquilo pelo o que pôde julgar pelas cenas que viu na base da Sociedade Aranha. Um pouco solitário, talvez. Não, ele próprio era solitário, o outro Miguel soava mais… Reservado. Sim, aquela era a palavra certa. Só a ligeira menção de Gabriella sobre namoro escondido que deixou-o um tanto desconfiado. Não queria lidar com dramas românticos agora.

Sobre sua relação com vizinhos e conhecidos, talvez fosse bom fazer uma espécie de jogo com Gabriella para desvendar mais informações. Ela pensaria que seu pai só estava sistematizando uma lista com nomes e demais dados de pessoas que podiam ampará-la em alguma situação adversa — por exemplo, ela voltar para a casa sozinha e esquecer a chave ou então algum acidente na cozinha. Ele perguntaria sobre a família que morava na casa à direita, ela diria os nomes e se eram próximos o suficiente para pedir ajuda, e assim por diante. Ou quem sabe montar uma agenda com nomes, endereços e contatos de conhecidos junto com sua filha fosse bom para aprender quem eram as amigas delas, os nomes dos pais…

Miguel foi até a cozinha para preparar a próxima refeição, pois em poucas horas Gabriella voltaria da escola. Qualquer outra pessoa poderia sentir mais estresse por tantos detalhes a se pensar e equilibrar de repente, mas ele aceitava de bom grado. Já tinha passado por situações piores. Sua família era um desastre. Portanto, era um alívio pensar em obstáculos simples que não envolviam traições de parentes e namoradas, nem tragédias ocorrendo no Multiverso. Só pequenos desafios domésticos.

Até que um lampejo de luz laranja trouxe uma voz conhecida.

— Você tornou mais difícil te acompanhar. Ainda bem que fui projetada para ser eficiente.

Miguel se virou, encostando o quadril no balcão da cozinha. Cruzou os braços, deu uma olhadela no relógio multidimensional e enfim parou para encarar o holograma.

— Lyla.

— Então essa é a sua casa. Aconchegante. — Ela sumiu e apareceu perto da fruteira cheia, depois surgiu na frente do armário superior com portas de vidro. Lá dentro, estavam os grãos, azeite, farinhas e até um suplemento de proteína ao lado de um pote de achocolatado para crianças. — Espero que esteja preparado para passar algumas horas na cozinha.

— A comida não é tão diferente da que eu já comia. E Gabriella está em fase de crescimento, precisa de coisas saudáveis.

Lyla riu, quase parecendo uma pequena e inconveniente fada, e apontou para o pacote de fast-food ainda sobre a bancada.

— Tô vendo.

— Assistentes virtuais e IAs não são incomuns nesse universo, mas não quero que apareça do nada perto dela. Ou pelo menos, não ainda. — Miguel desviou a conversa do tema “alimentação”. Não era por isso que Lyla tinha conseguido burlar o bloqueio que ele programou sobre sua localização exata e o acesso através de seu relógio, então era melhor ir direto ao ponto. E não era necessário maior contexto para Lyla entender que ele estava falando de Gabriella e do outro Miguel. — Ele não tinha uma assistente virtual.

— Mas você precisa de ajuda. Nem todos os eventos canônicos foram mapeados ainda, sabe disso.

— Sei. E foi você que me deu uma estatística bem favorável de que esse universo está limpo. O Homem-Aranha foi um herói do passado aqui. Não estou interferindo em nada.

— Os dados não são absolutos, Miguel.

A voz dela foi amável e aquilo alfinetou a paciência dele. Era quase como se ela estivesse explicando algo de forma muito didática para uma criança. De súbito, ele sentiu seus caninos incomodarem a boca. O desconforto, porém, era mais fundo e Miguel entendia isso. Lyla deixar implicado no ar que ele era uma criança não significava tanto quanto a sugestão implícita de que seu pequeno desejo de felicidade era pura vaidade — e estava fadado ao fracasso matemático. Era só uma questão de tempo ou de identificar as variáveis certas.

— Aconteceu alguma coisa na Sociedade Aranha?

— Não, mas…

— Então não entendo essa comoção. — Cortou-a. — Você ainda não detectou nada, não é?

— Negativo. Mas eu também fui projetada para elaborar medidas preventivas, não somente contenção de problemas. E quem mais vai conseguir indexar o nome das pessoas que você vai ter que lidar agora? Sua memória continuará questionável enquanto você não regular seu sono. — A figura dela exibiu mais um sorriso despreocupado, mesmo que o assunto fosse sério. Lyla caminhou perto da garrafa térmica colorida. — Café não vai te sustentar para sempre.

— Não prevejo nenhum problema grave. Só contratempos, no pior dos cenários.

O holograma de Lyla cresceu até uma estatura média. Ela não estava mais sorrindo. Só ajeitou os óculos em formato de coração no rosto e inspirou fundo, mesmo que hologramas não precisassem disso. 

— E é por isso que trouxe doses de ruptura com você? Para meros contratempos? Soa como mirar um tiro de canhão em uma mosca.

Ele não respondeu de imediato. Era ingenuidade sua achar que ela não teria percebido a ausência de frascos de ruptura na base da Sociedade Aranha, mas parte dele esperava que a voz adorável e debochada de Lyla evitasse tocar nesse assunto. Ela sabia o que aquela desgraça de droga tinha feito com ele. E se pelo lado positivo, a ruptura levou-o a desenvolver um experimento genético responsável pelos seus caninos, garras retráteis e habilidades sobre-humanas, a ruptura também transformou-o em um escravo por um tempo. Hoje, não mais afetava-o da mesma forma. Era mais como… Café. Miguel não tinha uma dependência física, de fato. Apenas psicológica.

Seus sentidos ficavam mais aguçados, seu corpo respondia melhor ao perigo. Era uma ferramenta a mais caso precisasse proteger sua pequena e incipiente alegria.

— Chame isso de excesso de cautela.

A expressão dela foi de triunfo. Afinal, ela havia acabado de fazê-lo provar o ponto dela. 

— Então concordamos sobre a importância de prevenir transtornos nesse universo.

Foi a vez dele de suspirar fundo. Virou-se, pegando utensílios nos armários inferiores e gavetas. Melhor não discutir, ele pensou, já que não tinha realmente fatos para contradizê-la — só sua vontade de estar sozinho e fingir que sua vida anterior não existia. De costas e separando ingredientes, ele propôs a trégua: 

— Vamos combinar assim: quando estivermos a sós, está liberada para projetar seu holograma no ambiente. Fora isso, somente notificações no relógio multidimensional. Estamos de acordo?

— ¡A huevo!

Ela voltou à sua forma pequenina e sentou-se na lata de milho. Houve um instante de silêncio, depois Lyla cantarolou o refrão de uma música. Miguel, por sua vez, tentava entender a própria irritação. Ansiava para que ela estivesse certa da primeira vez. Chances nulas de interferências no cânone. E apesar de entender a lógica da preocupação de Lyla — preocupações que ele, em seu íntimo, também carregava — havia o ímpeto de negar problemas. Era sua chance, talvez sua única chance. Por último, existia certa gratidão por ela estar ali.

— Lyla, — Ele chamou. — Agora narre o preparo de pozole para mim e encontre aquela receita de jericalla que eu testei da última vez. Por favor.

O holograma alaranjado alegremente obedeceu.


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Notas finais do capítulo

* Pesquisar vocabulário mexicano para o idioma espanhol tem sido bem legal kasjaksj e sim, eu quero experimentar a jericalla do Miguel.

* O Miguel O'Hara é um personagem bem complicado nas HQs também. Vi uma pessoa até questionando o quanto as pessoas não sabiam bem lidar ele, já complicado na adaptação do filme, ainda mais complexo nas HQs. Achei interessante e concordo que, meudeus, esse sujeito tem uma vida desastrosa.

* A Tempest Monroe é um dos interesses românticos do Miguel nas HQs.

* Nas HQs, existe uma droga fictícia chamada "rapture", que em português traduziram pra "êxtase". Longe de mim questionar o tradutor kkkk mas eu preferi colocar "ruptura" para não ter confusão com a ooutra droguita com nome parecido com êxtase. Sendo a "ruptura" uma droga fictícia alucinógena, achei que seria interessante colocar ruptura no sentido de ruptura/romper com a realidade. E também mantém a sonoridade da palavra original. E sim, o coitado foi drogado.



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