Quelíceras escrita por Shalashaska


Capítulo 1
Adiós, Miguel


Notas iniciais do capítulo

Segundo o flashback em Através do Aranhaverso, o Miguel O’Hara que morreu tentou evitar um assalto. É a partir daí que nossa história começa!



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Carregar um corpo não era uma tarefa difícil para sua força sobre-humana, mas ver o próprio rosto esculpido no cadáver atribuía mais peso a ele. Miguel O’Hara encarou por mais um momento a face dolorida e cada vez mais pálida daquele homem estirado no asfalto, absorvendo os detalhes de suas feições mal iluminadas pelo poste de luz fraca no beco, pelos letreiros neon rosa-choque. A poça de sangue aumentava abaixo do corpo. 

Quando Miguel pensava na sua própria morte, não pensava em algo tão simplório. Mas se existem tantos universos, não era ilógico existir uma versão de si que morresse assim. A ironia era ser justamente a única versão de si feliz que encontrou.

E ainda assim, era uma oportunidade.

Lyla protestou contra a ideia, os outros da Sociedade Aranha não precisavam de detalhes. O fato é que Miguel O’Hara substituiria aquele homem. Partiu de seu universo com o relógio multidimensional para evitar instabilidades ou desintegrar-se e por fim, parou ali — no instante perfeito e local perfeito. Aquele Miguel estava morto e, em breve, não estaria nem mesmo ali.

Ele abriu um novo portal, embora dessa vez fosse para um universo ainda primitivo no qual não existiam autoridades para estranhar o surgimento de um cadáver. Deste modo, a polícia do universo em que pisava naquele exato momento não iria se desgastar com investigações desnecessárias. Seria como se nada tivesse acontecido.

Miguel despediu-se do outro Miguel. Desejou ter lhe dado um fim mais digno, mas não havia mais tempo. O portal fechou-se atrás de si e a noite pareceu ainda mais silenciosa aos ouvidos dele.

Hesitou por alguns segundos. Tinha observado a vida daquela versão de si que se foi, as dificuldades que ele sofreu e como ainda a alegria escapava em seus sorrisos. Estudou o suficiente, ele pensava. E agora poderia continuar exatamente de onde ele havia parado. 

Era provável até que o outro Miguel aprovasse a ideia, se ele estivesse em condições de concordar com qualquer coisa. Afinal, era necessário alguém cuidar de sua filha, Gabriella.

Não demorou muito para chegar em casa depois de prestar um depoimento sobre o assalto que tentou evitar. Abriu a porta com a chave que pegou dos bolsos do cadáver e adentrou com calma. Inspirou fundo, acostumou-se com o cheiro. Tinha cheiro mesmo de casa, um aroma agradável de produtos de limpeza misturado com o cheiro de algo na cozinha, o aconchego da sala. Trancou a porta atrás de si deu mais alguns passos, levando um saco de papel pardo na mão esquerda. Trazia consigo só uma bolsa pequena transpassada no corpo, portando poucos pertences de seu universo original.

Um abajur acendeu-se de repente e logo ele viu uma menina levantar o torso do sofá. Ela coçou um dos olhos e reclamou, junto com um bocejo.

— Pai? Por que demorou tanto?

Algo dentro de Miguel ardeu de dor, de ternura, de preocupação. Talvez essa sensação fosse apenas a paternidade inflamando-se em seu peito, mas ele tentou manter o rosto neutro como se já tivesse visto o rosto de sua filha pessoalmente um milhão de vezes. Depois, concluiu que mesmo que isso fosse verdade, mesmo que ele até fosse o pai dela naturalmente, aquela sensação ainda o acompanharia toda vez que olhasse para Gabriella. 

— Perdão, mi hija. A noite foi cheia de… surpresas. — Ele mostrou o saco de papel pardo e tirou um pacote de hambúrguer dali de dentro. — Uma delas é isso aqui.

Ela sorriu e pulou do sofá. Vestia um camisetão e estava descalça, então era possível ver alguns hematomas coloridos em sua perna; todos causados pelos treinos de futebol na escola. Miguel fez uma nota mental para conferir se ela tinha joelheiras e caneleiras para vestir. Gabriella, por sua vez, arqueou uma sobrancelha e perguntou, mordendo o hambúrguer. Estava mais desperta.

— Comida pronta em uma quinta-feira?

— Não se acostume.

Miguel contemplou o quanto era absurdo falar como um pai, o quanto gostou de falar assim e como gostaria de continuar desse jeito. Imaginava ela sendo sempre doce e também tão satisfatoriamente ácida, porque afinal tinha puxado Miguel e sua língua. Diria coisas inteligentes e assertivas, provavelmente seria simultaneamente incrível e difícil ao se tornar adolescente, e não havia nada que Miguel já não aceitasse fazer por ela. 

Alheia a todas as reflexões dele, Gabriella sorriu e pegou as batatas fritas do pacote. Ofereceu o copo com canudo para o pai.

— Só me diz que você não tá me escondendo alguma coisa.

Miguel quase engasgou com o gole de refrigerante.

— De onde você tirou isso, Gabriella?

— Ué, lembra da mãe da Marina? Então, ela disse que a mãe começou a namorar escondido e…

Gabriella narrou o histórico de namoros e encontros da mãe divorciada da colega de um jeito que só uma menina de onze anos pode fazer. Sentaram-se na sala de novo, ligaram em um canal de esportes só pelo barulho de fundo enquanto ela falava. Miguel prestou atenção em cada detalhe, em cada expressão dos olhos castanhos dela e não pôde evitar o pressentimento de que não tinha pulado de universo para outro, mas sim que… tinha finalmente voltado para casa.

Que bobagem, ele também pensou. Não era sábio se entregar demais a esses pensamentos, ainda mais quando eles eram infundados. Sua consciência entendia melhor do que seu coração, mesmo que fosse o coração que tivesse conduzido a decisão de vir até aquele universo. Entretanto, ao assistir sua filha falar com entusiasmo e depois lembrá-la de escovar os dentes para ir dormir, Miguel O’Hara podia fingir.

Ele era pai. Sua filha era feliz. E tudo ficaria bem.


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