No Limiar dos Mundos escrita por Claen


Capítulo 14
Reencontro desagradável




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— Eu procurei esse desgraçado por tantos anos e nunca o encontrei, mas sabia que cedo ou tarde ele daria as caras por aqui! – disse Gaida tentando se manter calmo, embora todo o seu corpo tremesse de raiva por desejar acabar com aquele que havia destruído tudo o que lhe era caro. – Eu juro que vou me vingar pelo que ele fez a Vartaris, mas esse ainda não é o momento. Confrontá-lo agora não seria uma boa ideia, só colocaria vocês em perigo. Temos que sair daqui!

— Mas onde é que ele está? – perguntou o professor, olhando ao redor sem ver ninguém, mas também começando a ter uma sensação ruim.

— Muito perto, eu posso sentir. Perto demais!

Gaida mal teve tempo de finalizar a frase, quando alguém o chamou do lado de fora.

— Você está em casa, meu caro Gaida? – perguntou uma voz masculina grave, em um tom estranhamente amigável.

Ao ouvir aquela voz, Gaida ficou confuso. Ele tinha certeza absoluta de que a presença que sentia era a de Kyrios, a ruína de Vartaris, mas aquela definitivamente não era a voz da qual se lembrava. Mesmo depois de tanto tempo, ele nunca se esqueceria da voz de seu inimigo.

Curiosamente, mesmo sendo diferente, ela estava repleta do sarcasmo e do deboche tão inerentes a Kyrios, e por isso, por mais que Gaida quisesse levar os irmãos imediatamente para longe dali, ele não conseguiu se manter imune à força avassaladora da curiosidade. Ele também desejava rever o rosto de seu inimigo, que tanto mal havia feito ao seu mundo. Ele tinha sentimentos contraditórios que guardava já há meio século, porque por mais que quisesse dar cabo de sua vida miserável de uma vez por todas, Gaida também tinha muitas dúvidas que talvez apenas Kyrios pudesse ser capaz de sanar, então ele precisava ficar cara a cara com o recém-chegado.

— Não saiam daqui. Eu já volto. – ordenou Gaida aos irmãos.

Os dois assentiram com a cabeça e ficaram dentro da residência, enquanto Gaida foi cautelosamente até a porta, que tinha ficado aberta. Da soleira ele observou um homem parado em meio ao matagal que era seu jardim. Ele estava elegantemente vestido com terno, gravata e um sapato tão impecavelmente lustrado, que reluzia até mesmo com a pouca luz existente no local. Mesmo não conseguindo ver seu rosto claramente, Gaida sabia que aquele não era o Kyrios que ele conhecia, embora ao mesmo tempo tivesse certeza de que era.

— Aí está você! – disse o homem alegremente, se aproximando de Gaida como se fossem velhos amigos que não se viam há tempos. O dono da casa não se moveu e permaneceu em silêncio, com o semblante bastante sério. – É tão bom finalmente rever um rosto conhecido depois de mais de 50 anos! Já faz um bom tempo que eu estava planejando fazer uma visitinha a você e aos seus queridos vizinhos. Até tentei algumas vezes, só que nunca deu muito certo, mas agora o momento finalmente chegou.

Gaida continuou calado, apenas observando o recém-chegado e tentando entender o que de fato estava acontecendo. O intruso se divertiu durante algum tempo com a expressão grave e confusa do dono da casa, até que decidiu explicar algumas coisas.

— Ah, já sei! Você deve estar estranhando essa minha nova aparência, não é? – continuou, animadamente. – Eu sei que os cirurgiões plásticos daqui da Terra são excelentes, mas eu não recorri a eles, se é o que você está imaginando.

Essa ideia tinha realmente passado pela cabeça de Gaida por uma fração de segundos, mas ele sabia que não poderia ser isso, porque não eram somente a voz e as feições de Kyrios que estavam diferentes, ele também estava mais baixo pelo menos uns vinte centímetros. Mas a dúvida de Gaida não perdurou por muito mais tempo, porque Kyrios parecia mesmo estar empolgado para contar toda a sua jornada desde o último encontro conturbado que haviam tido há 50 anos e continuou falando.

— Bom, acho que você se lembra que da última vez em que nos vimos, os ânimos estavam um pouco exaltados e, por mais que eu deteste admitir, os seus amiguinhos brutamontes estavam bastante determinados e causando um belo estrago. Eles me acertaram em cheio e tenho quase certeza de que não sobrou muito do meu antigo corpo para contar a história, mas para a minha sorte, vocês ainda não tinham fechado o portal. Então, numa medida desesperada para salvar a minha vida, tentei uma última cartada sem saber se daria certo e fiz algo que eu apenas tinha lido nos livros: separei minha energia vital do meu corpo e me transportei para cá. Para minha surpresa e alegria, o truque funcionou, mas eu sabia que não conseguiria sobreviver por muito tempo com minha “alma” vagando por aí sem um corpo, então não pude ser muito exigente quanto a quem seria meu hospedeiro humano. Me apoderei da primeira pessoa compatível que encontrei e assim eu sobrevivi. Precariamente, é verdade, mas sobrevivi.

— Então foi isso... – disse Gaida, finalmente entendendo o que havia acontecido no passado, logo depois de ele também ter chegado na Terra. – Eu não senti sua presença de imediato, mas depois de algum tempo eu percebi que você não tinha morrido e que também estava aqui, só não entendia porque não conseguia te encontrar. Agora eu vejo que é porque estava enfraquecido.

— Sim, se eu não tivesse sido rápido, vocês teriam conseguido acabar comigo lá em Vartaris. – disse Kyrios achando graça da situação. – Eu escapei por um triz e levou uma eternidade para que eu conseguisse me restabelecer, mas o problema é que esses humanos são muito frágeis, não duram muito. Por causa disso, eu preciso ficar trocando de corpo de tempos em tempos e me readaptar toda vez. Além de ser um processo demorado, isso é muito inconveniente e eu já me cansei. Esse que estou usando agora foi o melhorzinho dos que eu encontrei.

— E o que isso tem a ver com eles? – indagou Gaida, referindo-se aos gêmeos.

— Tudo. – respondeu Kyrios, dando mais alguns passos por entre o mato e se aproximando mais da porta. – Venham crianças, já faz tanto tempo que eu queria conhecer vocês. Vocês são duas criaturinhas muito especiais, sabiam disso? Não tenham medo, eu não vou fazer mal a vocês. Pelo menos, não para um de vocês...

Contrariando as ordens de Gaida os dois foram até a porta, mas permaneceram dentro da casa, atrás de seu protetor.

— Mas que alegria finalmente ver vocês de pertinho! – disse o invasor, vendo pela primeira vez os rostos confusos das pessoas que ele queria tanto conhecer. – Eu estava tão ansioso para falar com vocês, que até mandei um amigo vir buscar um de vocês ontem, mas parece que ele não era tão competente quanto eu achei que fosse. Mas vou dar um desconto para ele, porque não pensei que Gaida abandonaria a sua reclusão daquela maneira tão heroica.

— Então aquele homem veio mesmo atrás da Heloísa a mando seu. – confirmou Gaida suas suspeitas.

— Sim, eu precisava me aproximar deles e achei melhorar “convidar” um de cada vez, mas como você pode ver, não importa o mundo onde estejamos, sempre estou cercado de incompetentes, e como diz o ditado terráqueo, se você quer algo bem feito, faça você mesmo. E aqui estou eu.

— Por que você está atrás da gente? O que nós fizemos para você? – perguntou Miguel.

— Vocês? Vocês não fizeram nada, meus queridos. O problema é que eu precisava me aproximar para ter certeza de qual dos dois era quem eu procurava. Mas isso é mesmo incrível... Nem mesmo aqui, há menos de cinco metros de vocês, consigo ter certeza. Aquela desgraçada ainda continua me confundindo. – constatou ele com uma gargalhada em seguida.

— Mas do que é que você está falando? – perguntou Heloísa.

— Ah, minha doce Heloísa, então quer dizer que ele ainda não contou para vocês? Acho que minha empolgação fez com que eu viesse um pouco antes da hora e estragasse a surpresa. Mas eu acho que você ainda não contou para eles porque não sabia de tudo e também tem dúvidas, não é, nobre Gaida?

— Sim, mas não importa qual deles seja, eu vou proteger os dois de você!

— Mas eu só quero um deles. O outro pode ficar para você. Ou melhor, eu vou dar um fim no outro antes que ela desperte por completo, assim já te faço um favor e você finalmente vai poder descansar dessa missão que já consumiu tantos anos da sua vida.

O sangue dos irmãos congelou nas veias quando ouviram aquilo. Apesar de aquele homem não parecer ser um perigo para ninguém, à primeira vista, e ter até um certo charme e simpatia, com certeza havia um motivo muito sério para Gaida chamá-lo de “ruína de Vartaris”, afinal ele tinha, tranquilamente, acabado de ameaçar os dois de morte como se não fosse nada.

— Vamos Gaida, conta pra eles. Agora que você já entendeu melhor as coisas, aposto que se deu conta que você está aqui exatamente pelo mesmo motivo que eu. Eu estou em busca do meu hospedeiro definitivo e você, do corpo para o qual a Rainha Árya se refugiou para vir atrás de mim.

— Eu não vou deixar você encostar um dedo neles! – disse Gaida, assumindo uma postura defensiva e de certa forma, confirmando a declaração de Kyrios.

— Para com isso, Gaida. Eu só quero viver mais um pouco e usufruir tudo o que esse mundo é capaz de me dar. – continuou Kyrios tranquilamente. – Há algum tempo eu descobri que apenas um desses belos jovens é capaz de comportar a minha alma eternamente. Eles são muito especiais, são únicos, não são como esse bando de cascas fracas que eu venho descartando já há tantos anos. Depois de me apoderar do corpo de um deles, eu não vou mais precisar ficar pulando de casca em casca e finalmente vou conseguir atingir o meu propósito neste belo mundo. O que vocês me impediram de fazer em Vartaris, eu farei aqui e ninguém vai me impedir. O único problema é que eu ainda não sei qual dos dois foi feito para mim. Por isso eu preciso dos dois para avaliar calmamente e escolher com sabedoria, porque não vai ser muito divertido, se eu pegar o errado e tentar entrar no que já está sendo ocupado pela maldita Árya, que mesmo ainda semidesperta, está tentando me confundir.

— Você está enganado em pensar que ninguém te impedirá. EU farei isso! – bradou Gaida, furiosamente.

— Isso é piada, né Gaida? – perguntou Kyrios com uma gargalhada. – Você e toda a sua trupe não conseguiram me deter em Vartaris e acha que vai conseguir alguma coisa aqui, sozinho?

— Eu não estou sozinho, eles estão comigo!

Ao dizer isso, as mãos de Gaida brilharam de um jeito incrivelmente intenso e geraram uma esfera de energia muito maior do que aquelas duas que os gêmeos haviam presenciado anteriormente. Em questão de segundos, os três foram completamente imersos pela luz azulada e desapareceram, deixando Kyrios sozinho na casa, que agora parecia ainda mais abandonada do que nunca.

O movimento de Gaida foi muito rápido e pegou o inimigo desprevenido. Ele sabia que o rapaz não iria entregá-los facilmente, assim como também conhecia bem a sua habilidade, então seu desaparecimento não foi nenhuma surpresa, mas ele estava tranquilo, porque agora tinha conseguido recuperar boa parte de seu poder e encontrá-los novamente seria apenas uma questão de tempo. O problema é que ele não tinha mais todo esse tempo, pois o corpo temporário já estava no limite e se fosse obrigado a ocupar outro corpo humano fraco e incompatível, teria que recomeçar tudo de novo o processo de fortalecimento e levaria novamente vários anos para atingir o nível em que estava naquele momento. Enfraquecido, ele jamais conseguiria enfrentar Gaida, por isso havia esperado tanto tempo. Aquele era o momento perfeito e ele não o deixaria passar.

Kyrios viu que sua investida inicial não tinha conseguido atingir o objetivo, mas para o seu retorno triunfal, o resultado até que não tinha sido tão ruim assim. Ele estava ainda mais obstinado e não se daria ao luxo de deixar suas presas escaparem uma segunda vez. Contudo, naquele momento não havia nada a ser feito, então ele se retirou, pois precisava concentrar todas as suas energias em encontrar aqueles três novamente.


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