No Limiar dos Mundos escrita por Claen


Capítulo 10
Agora não tem mais volta




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Assim como Miguel, Heloísa também estava dividida, mas não exatamente pelos mesmos motivos. Ela estava dividida porque queria agradecer devidamente ao rapaz desconhecido e também porque estava morrendo de curiosidade para saber o que tinha sido toda aquela loucura que havia acabado de vivenciar, mas dessa vez, o medo e a prudência falaram mais forte e ela cumpriu o que havia prometido ao irmão. Após o banho e o tratamento dos machucados, ela foi se deitar, porém também não conseguiu pregar os olhos.

As únicas certezas que os irmãos tinham naquele momento, eram as de que “a sensação” realmente nunca falhava e que ela finalmente tinha cumprido seu papel naquele dia. O tal acontecimento inesperado tinha realmente se concretizado, mas de uma maneira que ninguém jamais imaginaria.

Apesar do medo e da desconfiança que ainda pairavam no ar, os dois se sentiam mais leves. A sensação tinha ido embora novamente, da mesma forma que havia vindo, e as coisas pareciam ter voltado ao normal, se é que tinha alguma coisa de normal em tudo o que havia acontecido. Mas aí vinham outras dúvidas: se tudo o que tinha que acontecer já tinha acontecido, e o perigo havia finalmente passado, isso então significava que era seguro ir atrás do homem misterioso na casa do vizinho? Se eles estivessem correndo mais algum tipo de perigo a sensação voltaria e os advertiria novamente?

Infelizmente, naquele momento, eles tinham mais perguntas do que respostas e num piscar de olhos a madrugada se foi. O dia amanheceu e as obrigações com o trabalho continuavam lá, como todos os dias. Porém, depois de tudo o que os irmãos haviam presenciado na noite anterior, eles sentiam que aquele dia jamais seria como um outro qualquer, por mais que eles quisessem. Provavelmente nem mesmo suas vidas voltariam a ser as mesmas.

Heloísa estava cansada, afinal tinha passado a noite em claro e seu tornozelo doía. Ela achou que conseguiria ir trabalhar normalmente e pretendia fazer isso, mas ao firmar o pé no chão, viu que seria praticamente impossível ficar em pé o dia todo andando para lá e para cá dentro da loja.

Seu tornozelo estava inchado e ela precisou de algum esforço para se levantar da cama, mas ela o fez. Seguiu mancando até a janela e, ao olhar através dela mais uma vez e ver a casa do vizinho, se decidiu. Ninguém morreria na livraria se ela não fosse trabalhar por dois ou três dias, já o vizinho, ela não tinha tanta certeza. Então decidiu que iria ao hospital cuidar do machucado e depois faria algumas coisas mais interessantes.

Resoluta, pegou o telefone e ligou para Vanessa.

— Alô? – atendeu uma voz feminina sonolenta do outro lado da linha.

— Oi, Vanessa. Bom dia. – cumprimentou Heloísa. – Será que você poderia me fazer um favor?

— Bom dia, amiga. Claro. O que é?

— Avisa pra chefe que eu não vou hoje, estou indo ao hospital.

— Hospital? Como assim? – perguntou a amiga, já desperta e preocupada.

— Não foi nada grave. – acalmou Heloísa. – É que ontem à noite eu torci o tornozelo quando estava voltando pra casa e está um pouco inchado.

— Sério, Helô? – continuou Vanessa, um pouco mais aliviada. – Então aconteceu mesmo. Ainda bem que o seu irmão estava certo, e foi só uma torção. E olha que ele te avisou pra ter cuidado!

— Pra você ver, né? – respondeu Heloísa, achando graça. Ela nem se lembrava mais de que Miguel tinha mesmo falado para ela tomar cuidado, porque poderia encerrar o dia com o pé machucado. – Eu não dei ouvidos ao que ele disse e acabei me machucando quase aqui na porta de casa. Acredita?

— Vindo de você, eu acredito em tudo, amiga. Então se cuida, viu? Eu aviso pra chefe. Se der, eu dou uma passada aí de tarde. Melhoras!

— Obrigada! Tchau!

Resolvido o problema do trabalho, agora era hora de falar com Miguel e ela sabia que o irmão certamente acabaria faltando também só para levá-la ao hospital, mas ela estava decidida.

Com mais algum esforço, a moça segurou no corrimão e foi descendo as escadas lentamente. Ela não sentia nenhuma dor excruciante, mas não foi uma tarefa das mais fáceis chegar ao andar térreo, e quando Miguel a viu, ainda de pijamas e descabelada, entendeu que a irmã não estava bem.

— Bom dia, Miguel. – cumprimentou a moça, com um sorriso mesclado com uma careta de dor.

— Bom dia.

— Acho que hoje não vou precisar de carona pro serviço. Vou dar uma passada no hospital.

— Então eu te levo. – disse ele prontamente, sem pensar duas vezes.

— Não. Pode deixar. Eu chamo um táxi.

— Nem pensar! Eu vou com você.

— Mas você não tem que devolver as provas hoje? Os alunos estão esperando.

— Não tem problema. Primeiro a gente passa lá na escola, eu deixo as provas e peço pra alguém entregar, depois a gente vai pro hospital. Garanto que os alunos vão é ficar felizes se eu não for.

— Então tá bom. – aceitou ela, agradecida pela gentileza do irmão. – Só vou trocar de roupa e já volto.

Cerca de meia hora depois, as provas já tinham sido deixadas na escola aos cuidados de uma professora substituta, e eles seguiram para o hospital. Miguel não queria falar sobre a noite anterior, mas a irmã não iria deixar as coisas passarem fáceis daquele jeito.

— Miguel, eu já me decidi. – disse ela, de supetão. – Eu vou na casa do Velho Gaida hoje à noite.

— Será que você ficou doida? – perguntou Miguel, quase tendo que parar o carro pra não sofrer um acidente com a notícia inesperada.

— Nunca estive tão lúcida na minha vida. – respondeu firmemente.

— Como é que você vai ter coragem de ir lá, encontrar com aquele homem... ser... criatura... sei lá o quê?

— Você não está curioso também? Eu sei que está. Você não consegue esconder nada de mim e sabe disso, né? – instigou a moça, tentando fazer com que o irmão confessasse que queria fazer exatamente a mesma coisa.

— Sim... eu estou... mas... – respondeu ele tendo que dar o braço a torcer.

— Nem mas, nem meio mas. Eu sei que se eu não for, nunca vou ter paz. Eu também preciso saber o que aconteceu com o Velho Gaida e o que ele tem a ver com toda essa história.

— Eu também queria entender tudo isso, mas não sei se é seguro ir até lá, ainda mais de madrugada.

— Eu te entendo e você tem razão, mas acho que tem alguma coisa muito importante acontecendo, ou vai acontecer, e parece que nós estamos bem no meio dela. Você lembra que ele disse que estava aqui para nos proteger? Mas nos proteger de quê? De quem? Será que seremos atacados por outros malucos?

— Eu não sei Helô, e não vou mentir pra você. Eu queria poder dizer que está tudo bem e que se alguma coisa acontecer, eu estou aqui pra te proteger, mas não sei como te proteger nem me proteger contra coisas como aquelas que vimos ontem.

— Por isso mesmo. Não acho que corremos perigo ao lado dele, muito pelo contrário.

— Mas e se ele estiver mentindo?

— Bom, isso a gente só vai descobrir se falar com ele.

Miguel sabia que a irmã tinha razão e por mais que quisesse negar, pensava exatamente como ela. Aquela incerteza e aquela curiosidade o estavam consumindo, porque ele também precisava saber o que estava acontecendo. Todas as fibras do seu corpo pediam por uma resposta. No fundo, ele até ficou feliz por ter uma desculpa para faltar ao trabalho naquele dia, já que jamais conseguiria se concentrar, porque passaria o dia todo pensando se deveria ou não ir até a casa do vizinho e, se decidisse ir, ainda teria que esperar até o horário combinado e ficaria ainda mais impaciente e ansioso. O fato de Heloísa ter resolvido ir ao médico, aliado àquela conversa que tinham acabado de ter, haviam ajudado em sua decisão.

— Então é isso. – disse ele de repente, depois de algum tempo de silêncio dentro do carro. – Está decidido, nós vamos falar com ele!

A resposta repentina do irmão fez com que Heloísa sorrisse, apesar da dor que sentia. Com a decisão tomada por ambos, foi um pouco mais fácil encarar aquele dia, cuja metade foi passada dentro do hospital entre consultas, exames e uma visita à farmácia.

De acordo com os exames, felizmente não era grave mesmo. A vendedora tinha apenas tido uma entorse no tornozelo esquerdo e não havia fraturas nem rompimento de ligamentos, somente um estiramento. Ela estava oficialmente de molho por sete dias, que passaria aplicando compressas de gelo para diminuir o inchaço e sendo medicada com anti-inflamatórios.

Após o diagnostico, os gêmeos retornaram para casa e por mais que quisessem, era impossível não ficar olhando para o relógio o dia inteiro, contando os minutos. Vanessa fez uma visita após o trabalho para ver como a amiga estava, e Heloísa fez de tudo para recebê-la bem, mas sua cabeça estava longe. Ela sempre contava tudo para a amiga, mas daquela vez era informação demais, até mesmo para ela, então preferiu manter a mentira que havia contado de manhã. Se bem que não era inteiramente mentira, já que ela tinha mesmo torcido o tornozelo quase na porta de casa. Achou melhor não contar nada a respeito de cenas de luta e pessoas desaparecendo no ar no meio da noite. Ela não iria acreditar mesmo...

Meia-noite parecia um horário longínquo que não chegava nunca e logo que Vanessa se foi, os gêmeos correram para as janelas de seus respectivos quartos e ficaram olhando através delas, mas, decepcionantemente, não viram movimentação alguma na casa ao lado. Estava tudo como de costume e parecia que não havia ninguém lá, nem o Velho Gaida, nem seu misterioso inquilino. Eles começaram a temer que suas suspeitas iniciais pudessem estar corretas e que o rapaz tivesse mesmo feito alguma coisa com o vizinho, depois ido embora, sem lhes dar a tão esperada explicação.

Se Heloísa pudesse, ela teria ficado andando de um lado para o outro, como Miguel fazia sem parar, mas sua condição lhe não permitia, o que a deixava ainda mais nervosa, então o jeito foi esperar e ter paciência. O cansaço acabou dando uma mãozinha também, porque mesmo contra a vontade, ambos acabaram eventualmente cochilando algumas vezes durante o dia, fazendo com que ele passasse ao menos um pouquinho mais rápido. E assim, os minutos se transformaram em horas até que finalmente o relógio marcou meia-noite.

Imediatamente Miguel voltou para a janela de seu quarto e, dessa vez, a luz da varanda do vizinho estava acesa. Finalmente um sinal de vida! Ele correu para o quarto da irmã, que estava sentada na cama com o pé apoiado em cima de duas almofadas, enquanto roía nervosamente as unhas.

— Vamos, Helô! Está na hora!

Sem pensar duas vezes, a moça pulou da cama, derrubando as almofadas. O tornozelo já doía menos por causa da medicação e não era uma dorzinha qualquer que a impediria de tirar toda aquela história a limpo.

Com a ajuda de Miguel ela desceu as escadas e, apoiada nele, foi mancando até o portão do vizinho.

Eles pararam por um instante e respiraram fundo antes que o rapaz empurrasse o velho portão e ele rangesse. Estava mesmo aberto. Sem a corrente e o enorme cadeado, que sempre o haviam prendido por tantos anos. Não voltariam mais atrás, estava feito. Eles entraram.


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