JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 9
Capítulo 9




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808851/chapter/9

O olhar que Conceição lançava pra bichinha era de orgulho e pena. Toda aquela ânsia de conhecimento e inteligência acima da média sem ter onde usar, ou até uma mãe presente para se exibir. Naquele cafundó onde Judas tinha perdido as botas ninguém ia pra frente por saber ler ou fazer contas, a não ser o velho Cazuza do armazém que aproveitava a ignorância do povo para roubar na conta dos seus fiados. O currículo vistoso por ali era saber manejar com destreza uma enxada e já ter a pele curtida de nascença pra tomar sol no couro sem reclamar, se abaixando para juntar bosta de gado em um saco de aniagem e adubar a horta. Enquanto a mãe escolheu usar os dedos numa máquina de escrever, seja lá que bicho fosse esse, ela queria usar os dela para escrever no quadro com giz e ensinar o que já sabia a quem ainda não sabia o que ela sabia. Palavras dela.

 

Partilhava o crescimento da neta enviando retratos todos os meses. O fotógrafo lhe custava caro, e ainda tinha as despesas dos correios, na esperança de receber uma mísera carta de resposta. No início a menina perguntava e chorava pela falta de notícias da mãe, mas com o passar do tempo o coração dela foi esfriando a ponto de pedir para não ser avisada quando esse milagre acontecesse. Ainda assim, ela fazia o trabalho de mãe e avó. Nunca recebeu um níquel furado para custear as despesas e sabia muito bem que a filha estava ganhando o suficiente para isso. Mesmo com a sua idade avançada, submeteu-se a trabalhar no canavial para custear as despesas das viagens periódicas que fazia quando ela estava internada e grávida, longe dali. Aquele era o que ela achava ser o papel de uma mãe, nunca abandonar a sua cria, mesmo que fosse enxotada.

 

Colocou o prato de comida na mesa e puxou o livro que Cidinha lia com avidez, caso contrário, aquelas páginas seriam o seu único alimento. Aliás, Maria Aparecida, que batizou em homenagem à sua santa de devoção, a mesma que a tinha salvo de aflições diversas, haveria de trilhar por um caminho de tochas acesas pelo Altíssimo. A mãe tinha ficado brava por não poder nem dar o nome à filha. Queria um troço chamado Madonna, por causa de uma artista. Se fosse pra dar nome de artista ela batizaria de Betânia.

 

Mesmo com a coluna em frangalhos, pensou em voltar para o canavial, pois a lista dos livros que a menina queria ler era grande, e eles eram caros para os seus parcos rendimentos. A outra alternativa seria ligar para o jornal e pedir a filha, mas ficou com medo da resposta. Ela era profissional em inverter situações e se vitimizar. Deveria escrever livros de ficção e não fatos em jornais que necessitavam da verdade para sobreviver. Sabia que Patrícia nunca mudaria. Aquilo estava com ela desde muito cedo.

 

***

 

Sentiu uma pontada de orgulho quando não a viu na cama. Talvez ela tivesse escutado os seus conselhos e num rompante de lucidez, levantado cedo e ido pra lida no seu lugar. Era dia de feira e as hortaliças precisavam ser colhidas o mais frescas possível. Os sábados eram exaustivos e ela havia dito no dia anterior que estava impossibilitada de fazer a féria do dia porque os joelhos inchados e cheios de água não a deixariam trabalhar. Sem faturar alguma coisa, a mãe não teria condições de lhe dar o dinheiro para o ingresso da festa. Com o orgulho materno como analgésico, ela embrulhou com dificuldade duas pamonhas ainda quentes para levar na horta. Faria aquele sacrifício, mesmo com os meniscos inflamados a ponto de quase não poder dobrar os joelhos. Caminhava sentindo as agulhadas no osso, mas o sorriso não conseguia fugir da sua face. O trajeto não era tão longo, mas cada passo era como uma penitência.

 

— Patríciaaa! Patriciaaa! Venha tomar café, minha filha! - Chamava, com o dia ainda por clarear, sem obter resposta.

 

Caso ela tivesse acordado cedo para arrancar os pés de alface, deveria estar exatamente ali. Observou com tristeza as aleiras ainda cheias de hortaliças por colher e ouviu um leve sibilar, como alguém pedindo silêncio. Fez um esforço para chegar mais perto de onde vinha o som e se viu pisando em algumas peças de roupa. No meio de duas bermudas e duas camisetas, havia algo que ela sabia ser da filha. Um vestido de estampa floral. Tomou um susto quando Patrícia surgiu de trás de um arbusto nua, pedindo socorro e correndo na direção da mãe, cobrindo os seios ainda miúdos e a genitália sem pelos.

 

— Mainha, eu fui abusada por aqueles dois lá! - Acusou num choro fingido, apontando para o arbusto. Mas o que Conceição conseguiu ver à distância foram as nádegas de dois homens correndo nus mato adentro.

— Vá se vestir Patrícia, e passe pra dentro de casa, você está de castigo. Não quero ouvir uma palavra saindo da sua boca pelo final de semana inteiro - Ordenou com firmeza, analisando aquela cena com desconfiança.

 

Depois que a filha pegou a roupa fazendo birra e insistindo na história mal contada, algo caiu do grande bolso do vestido que era usado para colocar sementes. Sem perceber, ela foi pra casa, deixando a mãe esperar que ficasse longe o suficiente para saber do que se tratava. Logo, as suspeitas de Conceição se confirmaram quando ela apanhou o dinheiro que estava no chão. Não era muito, mas aquilo era o que faturava em dois sábados na feira. Catou as roupas dos homens para descobrir de quem era, e devolver aquele dinheiro sujo. Voltou manquitolando para casa, desta vez com dor também na cabeça, não sem antes jogar as pamonhas para os porcos comerem.

 

 

Aquele dedo inchado jamais seria desculpa para faltar ao trabalho, no entanto, ele estava precisando dos cuidados de Cláudia. Fazia tempo que estavam flertando sem no entanto terem uma chance de ficarem juntos. O trabalho na pedreira era pesado, mas não podia reclamar. Aquele emprego tinha tirado os gêmeos das ruas. Como o irmão estava de folga, pediu que ele fosse no seu lugar. Como sempre foram muito calados, ninguém perceberia a diferença entre ambos naquele acerto para que não levasse falta e o dia fosse descontado do seu salário. O irmão, sabendo o motivo do pedido, topou na hora. E ainda deixaria o quartinho dos dois livre para ficarem à vontade. No caminho para a pedreira, Jacinto passou na farmácia e comprou os remédios que o médico tinha prescrito para Justino, contra a vontade do irmão, que era um cabeça dura achando que o dedo ficaria bom sozinho. Achava que remédio era um dinheiro jogado no lixo e se mantinha sempre saudável, correndo na estrada todos os dias e cuidando da alimentação e hidratação. Jacinto não discordava por completo, mas por se tratar do seu irmão, era melhor se precaver. Ele o amava.

 

Justino foi atender as batidas da porta, que ficava no alojamento da empresa, caminhando normalmente. Tinha feito um pouco de drama e até mancado para que o irmão não se negasse a substituí-lo. Voltou a encarnar o personagem, quando viu Cláudia, quase implorando por cuidados, no que foi prontamente atendido. 

 

Passaram o dia deitados nas duas camas de solteiro juntas como uma só, com ela fazendo compressas de água quente na cozinha do alojamento, preparando uma macarronada, e coando um café quase no fim da tarde e no mesmo horário que bateram na porta outra vez. Olharam o relógio na parede e ainda era cedo para Jacinto sair do seu turno. As batidas ficaram fortes e insistentes. Ele começou a se preocupar quando chamaram o nome do seu irmão. Vestiu as roupas e foi ver do que se tratava. Era o seu chefe dizendo alguma coisa sobre Justino. No início ficou confuso com alguém falando com ele como se fosse o irmão e lhe contando algo sobre o irmão que deveria ser ele.

 

— Houve uma explosão que saiu do controle na mina e algumas pessoas ficaram soterradas - Dizia o chefe de segurança da área, com um pesar tão grande na voz, que ele já imaginava que ninguém poderia ter escapado com vida.

 

Depois que resgataram os corpos, Cláudia o ajudou com os arranjos para o enterro. Como ele não tinha onde enterrá-lo, ela ofereceu uma cova que ganhou como ‘’presente’’ de divórcio do ex-marido no cemitério do Jardim Bagdá, demonstrando todo o ‘’amor’’ que ele nutria por ela. 

 

Após a morte do irmão ele entrou numa depressão profunda e passou uma temporada em institutos psiquiátricos inconformado com a perda e com um sentimento de culpa que o fez tentar o suicídio por duas vezes. Com isso, Cláudia se afastou aos poucos e conheceu outra pessoa com quem casou e teve filhos. Quando Justino recebeu alta, recebeu também uma intimação da justiça do trabalho para explicar a troca de identidades no dia do acidente. Aquilo o fez perder a indenização e o processo que moveu contra a empresa.

 

Ainda com a culpa a lhe carcomer os ossos, e sem dinheiro, foi morar num casebre alugado próximo ao cemitério onde o irmão fora sepultado e aos poucos aprendeu um novo ofício. Dedicou-se com afinco à profissão de letrista e em pouco tempo começou a angariar fama pelo seu belo trabalho artístico em lápides, juntando dinheiro para comprar o casebre e ampliá-lo, à medida em que fazia o mesmo com o jazigo do irmão. Sabia dentro de si que o seu irmão já o tinha perdoado, da mesma maneira que sabia que precisava agradecer com as palavras devidas a Claúdia. Precisava encontrá-la um dia. Apenas para isso.

 

 

Conhecia o histórico médico de quase todo mundo ali, assim como a vida pregressa daqueles que eram seus contemporâneos, quando o Jardim Bagdá ainda era um pântano insalubre. Era somente um reles farmacêutico que fazia as vezes de médico, fisioterapeuta, dentista e psicólogo, este último, quando apareciam os seus hipocondríacos de estimação. Diria que após a leitura de tantos compêndios médicos, bulas e estudos, o Sr Abdias podia se considerar um homem da medicina. Sabia que concorria com a Veia Guida e as suas garrafadas, mas via com bons olhos a concorrência.

 

O que não via com bons olhos era a proximidade daquele dia, não sabia ao certo o que fazer, porque não havia o que ser feito. Aquele pensamento o confortava, mas logo voltava para o início do problema, e ele era comprido. Foi logo depois do ‘’incidente’’. Ela queria ser cobaia do tratamento experimental, mas ele achava que alguma coisa podia dar errado e de alguma maneira sofrer consequências irreversíveis. Depois de muita insistência dela, já que era o desejo maior da sua vida, aquele que faria a sua existência galgar outro patamar, ele pediu ao laboratório o que era necessário, e tudo aquilo tinha custado os olhos da cara. Ele não queria usar diretamente na esposa e ficou muito feliz com a cobaia voluntária que dizia sofrer dos mesmo males que a sua senhora. Ambas estavam com quase cinquenta anos e compartilhavam a maldição, segundo a sua cônjuge, de ainda menstruarem. Eram dias de sofrimento sem sentido.

 

Aquele representante de laboratório fora persuasivo e bastante claro na sua linguagem técnica. Ele compreendia perfeitamente que a reposição hormonal  servia para quem queria aliviar os sintomas da menopausa e já se recomendava o uso pouco antes que ela ocorresse, mas não haviam estudos suficientes. Ele queria aliviar o sofrimento dentro de casa, mas antes testaria em alguém de fora. Dinorá, do alto dos seus 47 anos, ainda era uma mulher incrível de se ver andando na rua, a despeito da sua atividade profissional. Não tinha papas na língua e fumava como uma caipora. O que ela queria, conseguia. E foi com o poder de convencimento de um corpete colado ao corpo que ela o fez decidir começar o tratamento, já que o desejo maior da criatura da noite era parar de menstruar e estar disponível todos os dias para os seus clientes. Aumentar o faturamento.

 

No início, não houve diferença alguma, mas algo mudou depois. Ele pedia um relato pormenorizado de tudo o que ela estava sentindo de diferente do seu habitual. De tudo o que vira e ouvira, o que mais lhe chamou a atenção foi o aumento da libido. A cada encontro, Dinorá parecia mais sedutora e atraente, mais jovial e feliz. De alguma maneira aquilo estava funcionando, e assim resolveu aplicar o mesmo na sua mulher. Antes que isso acontecesse, ficou viúvo. Após um gracejo da concubina, dizendo que ele também poderia usar aquilo, ele resolveu aplicar o tratamento em si próprio, num gesto de desespero e abandono. O que se mostraria um desastre, fez com que ambos ganhassem mais disposição. Quando finalmente começaram a namorar e ir pra cama com frequência como dois pombinhos em lua de mel, Dinorá descobriu a gravidez. Não tinha sido a primeira. Mas era a única que queria levar até o fim.

 

Abdias, como era conhecido no bairro, mas registrado Abdullah, tinha origem árabe, e batizou a sua quinta filha mulher de Samira, a ‘’cheia de vida’’. Depois da recuperação do parto de risco, onde ele se desdobrou cuidando de ambas e também da farmácia, pediu-a várias vezes em casamento com o intuito de tirá-las de um ambiente ruim, do qual nunca saíram. Ela o fez jurar que a criança jamais poderia saber que ele era o pai, mais para protegê-lo, assim como o seu negócio. Ele pensou naquilo por um tempo, e aceitou o acordo, desde que se encontrassem e ele pudesse ver a ambas. Pouco depois, Dinorá entrou na menopausa com sintomas terríveis, o que a fez parar de se deitar com os clientes e culpar Abdias pelo malfeito. Desde então se falaram muito pouco, como dois estranhos, alternando tempos sem terem notícias mútuas e migalhas de informações da filha. 

 

Coçou a cabeça de preocupação e tornou a pensar se havia um jeito de Dinorá parar com aquela insanidade de leilão, afinal a menina também era a sua filha. Mesmo com a rabugice e cara de avô, ele era o pai.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "JARDIM BAGDÁ" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.