JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 10
Capítulo 10




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O respeito junto aos colegas, e o fato dele não negar o serviço que ninguém queria fazer, tinha outro fundo de verdade. De natureza selvagem. Logo que chegou ali, o campo santo era pouco mais que um terço do que era hoje, e eram poucos os coveiros que queriam trabalhar naquele fim de mundo. Ele aprendeu rápido, e começou a mostrar mais serviço do que os outros, chamando a atenção dos seus superiores. A rivalidade além da conta e os mexericos foram consequência do seu bom trabalho, e aquilo começou a incomodar. Diziam que eram mais antigos e quando alguém novo chegava, trabalhava mais que os outros. Esse não era o problema, nunca fez gosto ruim para a lida. Acontece que os fulanos começaram a sair mais cedo, e deixar tudo nas suas costas. Não queria ser alcaguete e ir reclamar na chefia, portanto o jeito a dar era outro.

 

Aquele moleque de treze anos andava com uma turma barra pesada, e se viam vez ou outra nos botecos do Jardim Bagdá. A despeito de ser proibido por lei, os donos de bares eram coagidos a lhe servirem bebidas alcoólicas sob pena de retaliação. Todos eram menores de idade. E às vezes cruzava com os desordeiros juvenis quando parava pra tomar a sua pinga antes de seguir pra casa. Uma vez chegaram a trocar duas palavras e pagou umas cervejas para os garotos. Aquilo despertou alguma gratidão em Montila, que disse que caso precisasse de alguma coisa era só falar com ele. E naquele dia em que ele saiu do trabalho já com o dia escuro, exausto por cavar covas e baixar caixões em buracos sozinho, decidiu que era hora de pedir um pequeno favor ao garoto.

 

— O que é que tá pegando, coroa? - Perguntou numa voz grossa que não condizia com a sua idade, levando o copo de cerveja à boca.

— Preciso que você dê um susto em dois caras.

— É gente conhecida?

— Dois folgados que trabalham comigo.

— Acho que sei quem é. Vi os dois ontem naquele barzinho lá da baixada. Ainda estavam vestidos com esse macacão aí.

— Os filhos da puta estão saindo mais cedo do cemitério e deixando tudo nas minhas costas, só porque sou o novato da área.

— Já falou com o patrão?

— Quero evitar intriga.

— Muito esperto da sua parte, coroa - Concordou, pegando a garrafa para encher o copo novamente.

— Tem jeito de dar uma surra neles?

— Têm sim, mas o que eu ganho com isso? - Perguntou, encarando o coveiro.

— Vou deixar meia dúzia paga aqui.

— É pouco - Disse, emulando um timbre mais pesado. Se alguém ouvisse apenas a voz sem vê-lo, juraria ser um adulto, alto, forte e másculo.

— Fico devendo. O que você precisar de lá do cemitério, eu estarei às ordens.

 

O delinquente pensou um pouco e enxergou alguma vantagem no acordo. De momento não tinha nada a pedir, mas cobrar aquilo no futuro poderia ser uma boa ideia. Apertaram as mãos sem dizer mais nenhuma palavra, o coveiro pagou as cervejas prometidas e foi tomar a sua pinga no final do balcão, enquanto Montila foi se juntar ao seu bando que bebia escondido nos fundos do bar. Quer dizer então que os safados saiam mais cedo do cemitério pra beber, enquanto ele se estrupiava de trabalhar. Deu um último gole e saiu sorrindo por dentro, que era o único lugar em que conseguia sorrir.

 

Dois dias depois, simularam um assalto quando a dupla saía mais uma vez de um bar, bêbados que nem um gambá. Apanharam como um cão sem dono e só apareceram no cemitério dois dias depois ainda com olhos inchados como ovelhas atropeladas, hematomas aparentes e um deles com um braço na tipóia, levando atestados médicos. O de braço quebrado foi demitido, e o outro ficou sóbrio no meio da surra quando ouviu um recado de Montila no pé da orelha. O patrão perguntou se ele tinha condições de trabalho, pois não havia ninguém para substituí-lo. O coveiro viu à distância, do lado de fora da secretaria, aquela vítima do assalto simulado rasgando o atestado médico e batendo uma continência desajeitada para o chefe, indo depressa vestir o seu macacão. Quando passou por ele, aquele olhar que costumava ser debochado ao se encontrarem, agora era de um cão obediente pedindo que lhe colocasse uma coleira. A partir daquele dia, a subserviência era tal, que até a mansidão do colega passou até a aborrecê-lo. 

 

 

Quando Janice bateu à porta, Samira ainda estava vestida, pois tinha chegado do asilo não fazia muito. Abraçaram-se como mãe e filha que não se viam há tempos, e depois dos apupos iniciais, logo estavam conversando com a mesma intimidade de sempre, como se o tempo não tivesse passado.

 

— Me arrependi da hora de não ter dado um pé na bunda daquele desgraçado há mais tempo. Minhas economias foram pro beleléu, minha filha. Quando descobri que ele queria dar a minha casa como garantia na mesa de jogo, eu dei um basta. Disse pra ele que ia botar veneno de rato no café dele se fizesse aquilo. Ele começou a desconfiar de tudo que eu servia na mesa pra ele comer. Um dia eu comecei a botar umas gotinhas de óleo de rícino e fui aumentando a dose. O homem se borrava nas calças o dia inteiro, me acusando de ter envenenado ele. Continuei aumentando a dose, mesmo com ele no meu cangote na hora que eu fazia o prato de comida dele. Mas eu era mais esperta. Deixava ele sentar na mesa primeiro pra começar a comer e depois ia buscar o suco de caju que ele gostava, e pã!

— Meu Deus, Jana, que doidice - Comentou Samira rindo e imaginando a cena.

— Com uma semana esse homem sumiu da minha vida e ouvi dizer que nem aqui no bairro ele tá mais. Levei três dias pra tirar o cheiro de cocô que já estava impregnado na casa. Bendito óleo de rícino, minha filha! Mas me diga como é que tá sua mãe? - Perguntou, puxando da bolsa um dos seus cigarros fedidos, que sem cerimônia acendeu, já que Samira fez o mesmo.

— Não estava muito animada, mas aconteceu um negócio que me fez ir - Disse, caminhando para a janela sendo seguida por Janice - Aquele negócio ali - Apontou para Justino que saía na calçada, coçando a cabeça, olhando de um lado para o outro, como a procurar alguém.

— Hum, aquele negócio, entendi. Ele parece ser um bom rapaz. Dizem que é trabalhador.

— Disso não tenho dúvidas.

— Solteirão, é?

— Nunca vi enrabichado com ninguém. Ele é maravilhoso e só me arrependo de não ter descoberto isso antes! - Suspirou.

— Minha filha, com aquele peito de estivador, tem que ser! - Brincou a decana, evitando as lembranças e se perguntando se algum dia alguém a fizera feliz daquele jeito - Mas me conte de Dinorá.

— No geral, a saúde dela parece que é boa, não reclama de nenhuma dor, é disposta e obedece aos enfermeiros. O problema é a cabeça. Ela não lembra mais de mim. Nadinha - Relatou com uma ponta de tristeza.

— Acho que no fim da vida a gente deveria esquecer tudo de ruim que passamos e lembrar só das passagens boas - Filosofou, dando uma tragada profunda e soltando a fumaça para o teto.

— Também tenho medo que ela lembre de algumas coisas e morra antes do tempo, sofrendo. Talvez seja suficiente que só eu lembre.

— Mas vamos acabar com esse lero lero baixo astral. Não foi pra isso que eu vim até aqui. Olha só o que eu trouxe - Disse, remexendo a bolsa e tirando alguns itens cosméticos - Vim te dar umas aulas de maquiagem, Samira. Não custa aprender um pouco mais com quem tem experiência - Falou, arrancando um sorriso da rapariga, que ainda pecava naquele quesito.

 

Janice trouxe aqueles batons, cremes e pós como um presente de aniversário, e sabendo como ela se pintava muito mal, juntou a fome com a vontade de comer. Ela jamais esqueceu aquela data. Afinal, como esquecê-la?

 

 

‘’Que mulher doida’’ - Ele pensou, quando não a encontrou deitada ao seu lado, sobre os destroços das camas quebradas. Ainda arrancava farpas de madeira grudadas nas costas, enquanto procurava alguma pista do seu paradeiro já que o carro dela estava sendo retirado de um buraco por um guincho. Resolveu entrar novamente para não ter que encarar algum cliente saindo da casa de Samira.

 

Ele estava numa sinuca de bico. Tanto tempo pra levar a vizinha pra cama e acontece aquilo tudo no mesmo dia. Tinha sido prazeroso, ele jamais negaria, mas o atropelamento que sofreu da madame fez ele balançar. Tinha que deixar passar o efeito daquilo tudo pra descobrir o que fazer. Samira tinha má fama, mas tinha um bom coração. Já tinha passado tanto perrengue na vida e ainda assim seguia sorrindo. Da outra louca ele não tinha nenhuma informação, mas a mulher era uma pomba gira na cama. Mesmo sem cama.

 

Fez um café, e depois de tomar duas xícaras providenciou um saco grande para catar os pedaços de madeira no quarto. Entregaria a lápide da criança que já estava pronta, e com aquele dinheiro, compraria uma cama de casal. Já estava na hora de dar um rumo na vida, namorar, deixar o passado onde deveria estar: Enterrado. Precisava decidir apenas qual o futuro que queria ter e quem estaria nele. Olhou de relance novamente para o meio da rua e viu o Monza vermelho sendo rebocado. Achou curioso aquele senhor que trabalhava no cemitério acompanhando toda a ação. O que será que ele tinha a ver com aquilo? Deveria ser apenas um curioso. Do outro lado, uma senhora na porta se despedia de Samira. A mãe, ele sabia que não era. O que ele queria era que todos os dias fosse o aniversário dela para não precisar se deitar com mais ninguém, apenas com ele.

 

Até sair da casa de Samira, ainda na penumbra, ele queria uma coisa. Depois de fornicar com a madame, quis outra. E agora lhe subia um gosto ruim na boca. Depois que conseguiu recobrar os sentidos, se arrependeu. Samira sempre foi honesta com ela, nas suas conversas, quando vinha filar um cigarro e um café.

***

 

— Não vou florear o termo. Sou rapariga e pronto. Isso é o que eu sou, e ainda gosto de levar a vida desse jeito. Já gostei mais, é verdade. Talvez eu goste de ser usada, de ser punida por algo que fiz a alguém que nem eu mesma sei. Ou apenas goste de ganhar dinheiro fazendo a única coisa que sei fazer. Enquanto houver uma aura de encanto para mim, e der pra pagar as minhas contas que não são poucas, essa será a minha vida - Enfatizou, tirando um cigarro da carteira que ele lhe entregou - É engraçado que você nem fuma e tem cigarro em casa - Emendou com um sorriso.

— Talvez eu compre isso aí só pra você vir aqui. Assim posso ficar mais perto de você.

— Você não se importa que uma mulher da vida entre na sua casa e fique aqui tomando o seu tempo? Ficar mal falado?

— Se for pra ficar olhando pra você, podem falar de mim até as orelhas esquentarem que não ligo. Eu cuido do meu e eles cuidam do deles. Se eu disser que não ligo para o que você faz eu vou tá mentindo. Mas isso não é por minha causa. É por você.

 

Alguma coisa ia sair da boca de Samira, mas ela evitou para que a voz não saísse embargada. Esperou um pouco mais antes de dizer algo diferente do que tinha pensado. Preferiu desconversar.

— Um dia desses vou te fazer uma massagem daquelas! - Disse, mexendo os dedos na direção dele, que se abriu num sorriso.

— Ás vezes eu acho que tu também gosta de mim.

— Também? Significa que você gosta?

 

Ele balançou a cabeça afirmando e ela o abraçou. Sentiu cada tendão dele tensionado e fechou os olhos por um instante, deixando-se levar um pouco naquela correnteza benfazeja que ela sabia muito bem aonde a levaria. Os batimentos dos dois corações aumentaram de ritmo e um calor repentino afogueava as faces. Havia muito a ser dito, mas nada seria. Ela segurou-lhe a cabeça por trás e levantou a blusa, fazendo-o baixá-la apenas um pouco em direção aos seus seios desnutridos. Deu-lhe um pouco do que ele queria, não porque era boazinha, apenas porque aquele era um desejo dela também. Havia uma fronteira demarcada entre os dois, e ultrapassá-la significava perigo iminente. Ela não estava preparada, e talvez nunca estivesse. Interrompeu a cena com os mamilos entumecidos e foi embora.

***

 

Despertou do seu transe quando Mestre Tuta lhe cumprimentou, lembrando para que ele não faltasse ao treino de mais tarde. Aproveitou para atualizar o aluno sobre quem tinha nascido, morrido, divorciado, se casado, internado ou estava tomando remédio. O homem tinha uma língua tão grande que quase não cabia dentro da boca. Era quase uma rádio comunitária, sabia da vida de todo mundo, mas a sua própria, era da casa para a igreja e da igreja para casa, segundo ele.

 

Contou também, com riqueza de detalhes, o caso do vizinho que perdeu tudo com os alagamentos, dizendo que aquilo tinha sido castigo de Deus, chamando o homem de herege por que era amasiado com duas mulheres. Aquilo fez Justino parar de rir. Olhou o Mestre se afastar, esperando que nunca precisasse contar um segredo para aquele homem. O que tinha de ótimo professor de capoeira e conselheiro, tinha de fofoqueiro.


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