JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 8
Capítulo 8




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Tinha que sair dali ainda no escuro e se mandar pra casa, tomar um banho e ir para a redação. Não queria o chefe-namorado fazendo perguntas e brincando de gato e rato. Justino roncava profundamente e ela não tinha intenção de se despedir. Ele já tinha cumprido a missão de saciá-la. Abriu o ferrolho da janela e colocou a cara pra fora. Havia estiado e a água já havia escorrido para algum lugar mais baixo. Mas que droga! Onde estava o seu carro? Espremeu os olhos para os dois lados temendo ter sido roubado, o que era algo corriqueiro por ali. Mas para a sua surpresa, um quarteirão adiante, sob o clarão da luz de um poste, enxergou o seu Monza enfiado numa vala, com a traseira pra fora. Fechou a janela, pegou a bolsa, enfiou os tamancos nos pés e saiu, encostando a porta com cuidado, não sem antes ter deixado a cópia da foto dele no braço do sofá. 

 

Não esperava bater de frente com ele naquela hora no meio da rua, mas se aquilo era providência divina, ela tinha entendido o recado.

— O que é que você está fazendo aqui uma hora dessas? - Ele perguntou, mais preocupado do que surpreso, indo para o trabalho.

— É uma longa história. E vida de repórter não é fácil. Não me pergunte mais nada. Vai me ajudar? - Questionou, apontando pro carro, com o dia já clareando.

— Pra arrancar ele daí vai precisar de um guincho. Eu mando fazerem isso e te aviso pra vim buscar. Vou te deixar no ponto de ônibus, aqui não chega táxi.

— Não precisa, eu não quero que ninguém me veja com você. Pra que lado é?

 

Ele apontou a direção, e desapontado pela recepção fria, viu a moça sair batendo os pés no meio da lama. Por precaução, ficou escondido atrás de um poste do outro lado da rua até ela subir no transporte e sumir na curva. Se tranquilizou sabendo que logo ela estaria de volta, mesmo que apenas por interesse. Retomou o seu rumo para chegar mais cedo no cemitério, escutando o miado estridente dos gatos que faziam safadeza nos telhados próximos.

 

 

A Véia Guida foi abrir a porta para receber Janice. As amigas de infância não se viam há algum tempo. Depois que ela se aposentou como concubina, logo depois que Dinorá fora internada com os primeiros sintomas de demência, e já contava com quase cinquenta anos, amasiou-se com um vagabundo viciado em cartas que praticamente a deixara sem eira nem beira. Quase tudo o que tinha economizado se deitando com homens, fora parar nas mãos de outro. O pouco que lhe restava, ainda tinha que comprar remédios para manter as suas hemorróidas sob controle, consequência da sua antiga profissão. Agora ambas, já sexagenárias, viviam de uma minguada aposentadoria. Agda ganhava uns trocados fazendo suas mandingas e garrafadas, e Janice fazia reparos em roupas.

 

— As meninas hoje não sabem nem fazer uma bainha de calça, não sabem o que é um ilhós. Antes de fazer vida, aprendi a costurar e cozinhar, e essa foi a minha herança - Ponderou Janice dando um suspiro e tossindo em seguida, resultado de anos fumando cigarros sem filtro.

— Não pense que a vida não foi madrasta comigo também, Jane - Retrucou, vindo da cozinha com um bule de café recém passado, e duas xícaras - Você conhece a minha luta até chegar aqui e ser amparada por Mãe Dolores. Depois que a sua mãe morreu eu fiquei num mato sem cachorro, com uma mão na frente e outra atrás. Aquilo foi sorte. Por isso continuo com o trabalho dela de ajudar o povo, e o povo me ajuda. Mestre Tuta é um primo distante dela, e eu deixo ele trazer a roda de capoeira aqui todo dia, só pra lembrar de Mãe.

— Isso é o mesmo que você ter vencido na vida e eu não. Não prestei nem pra parir. Embuchar no prostíbulo era o mesmo que pedir um pé na bunda. Dinorá sempre ensinava uns truques, mas nem sempre dava certo. Na hora do coito a gente ficava olhando nos olhos do cliente e quando eles revirassem era pra tirar o negócio pra fora ligeiro. E se escapuliu alguma coisa dentro a gente ficava de pé e começava a pular e passava rapé no nariz pra espirrar. Às vezes não adiantava nada daquilo, e a gente tinha que correr pra farmácia do Sr Abdias dois meses depois e tomar aquelas porcarias pra expulsar o menino.

 

Agda pensou na falta de sorte da amiga de não ter tido uma criança nos braços, enquanto que ela teve a chance e desperdiçou. Daquele vez foi ela quem suspirou lembrando coisas que ela não deveria e não queria.

***

 

Tudo ainda era muito novo, e ela tinha voltado a se sentir sozinha quando Mãe Dolores morreu de repente. Os médicos disseram que foi coração inchado, por causa da picada de um barbeiro, a tal Doença de Chagas. Ela tratava aquilo como se fosse um encosto, uma entidade ruim que tava grudada nela. Quando chegou ao hospital já era tarde para medidas paliativas. Agda que tinha passado a sentir-se amparada novamente com o afeto que a curandeira lhe dispensava, perdeu o chão. Passou a comer sem controle, e tornou-se uma glutona. Engolia quantidades absurdas de ovos e pães no café, assava frangos no braseiro do quintal e devorava todos no mesmo dia. Chegou a pesar 120kg, que para uma estatura de 1.60m, a tornava uma obesa mórbida.

 

Enquanto descontava a sua tristeza na comida, passou a se achar feia e repelida pelos homens, aquela menina viçosa, bem feita de corpo, de cabelos compridos e olhos negros que um dia encantou um aviador Alemão. A sua autoestima estava no chão quando conheceu Astolfo, um rapaz boa pinta, falante como um papagaio e galanteador, que jogou todo o seu charme pra cima da moça gordinha, que logo se deixou encantar pela lábia do malandro. O resultado foi que a decepção de saber que ele queria apenas ir para a cama com ela e ganhar uma aposta feita com os amigos de bar, ela soube mais adiante, deu-lhe ainda mais fome.

 

Alguns meses depois, durante um surto que a fez comer ao ponto de se engasgar com um osso de galinha, correu para o banheiro a fim de regurgitá-lo. Com a força despendida, as ânsias de vômito e engasgos, ela sentiu algo escorrer por debaixo da saia. Imaginou que tinha feito suas necessidades, e ainda de joelhos, de frente para o vaso sanitário, ela abaixou a mão procurando fezes. Mas o que tocou foi a mãozinha de um bebê, que só não morreu durante a expulsão porque ela tinha o hábito de colocar um tapete felpudo para repousar os pés inchados enquanto estava sentada fazendo suas necessidades. Um princípio de desespero tomou conta dela, por não saber que estava prenha. O seu corpo rotundo a tinha lhe pregado uma peça. E os seus enjoos frequentes devido a ingestão excessiva de comida não a fez perceber o que ocorria dentro dela.

 

Primeiro pensou em colocar o feto vivo no vaso e puxar a cordinha da descarga. Depois, em gritar por ajuda.  Mas apenas levantou-se com dificuldade, tomando cuidado para não pisar na criança que debatia os membros minúsculos, e indo buscar uma sacola de papelão de supermercado. Forrou-a com um pano de prato limpo e pegou o serzinho, acomodando-o dentro. Percebeu que era um menino. Fez uns furos nas laterais para que ele pudesse respirar, o cobriu com uma fronha de travesseiro. Depois de se limpar, saiu pelos fundos da casa, atravessando um matagal que dava atrás do cemitério, caminhando até um terreno com muitos pés de cacau. Ali seria passagem de pessoas que cortavam caminho para chegar no ponto de ônibus assim que amanhecesse. Passou a alça da sacola por cima de um galho a meia altura para que os cachorros não a alcançasse, e voltou quase sem fôlego para casa rezando para que o menino chorasse e alguém ouvisse.

 

Nunca teve crença alguma, e Deus para ela era algo tão abstrato quanto o oxigênio que respirava. Mesmo assim, fez um esforço para se ajoelhar novamente, dessa vez, em frente ao rosário da mãe adotiva, que ficava pendurado num prego acima da cabeceira da sua cama. Prometeu que se o menino fosse encontrado vivo, perderia todo o peso que ganhara sofrendo pela mãe que não voltaria mais. E assim ela fez. Com o dia claro, voltou à trilha e a sacola não estava mais lá. Foi diminuindo a quantidade de alimento ingerida com o passar dos dias, e voltando a ter uma vida normal, começando a pôr em prática os ensinamentos da mandingueira falecida. Voltou próximo ao seu peso normal em um ano, sem nenhuma sequela física, mas as feridas emocionais sangravam todos os dias. Só veio ter notícias do que ocorreu naquele dia muito tempo depois.

 

 

— Preciso ir minha amiga, ainda vou passar na casa de Samira pra ter notícias de Dinorá. Ela foi visitar a mãe lá no asilo. Enquanto fui cocota dela na maison não tive do que reclamar. Era meio pão dura, mas cuidava da saúde da gente melhor do que muita mãe. Claro que era por interesse próprio, zelando pelo nome da casa, mas nunca deixou de sentar pra conversar com uma de nós quando tínhamos problemas. Depois da confusão que houve por causa do leilão ela começou a definhar dia após dia. Passamos tempos difíceis. Os clientes de sempre sumiram e os que apareciam ou eram repórteres de algum pasquim vagabundo ou gente estranha ao nosso convívio. Até mulher de buço começou a aparecer por lá. Foram anos de decadência. Só fiquei porque Samira implorou muito e eu gosto muito dela. Se eu tivesse uma filha, seria como ela, mas jamais faria o que Dinorá fez naquela noite.

 

 

Às vezes permanecia calada durante toda a visita, olhando para o vazio, como a procurar sentido na visita daquele pessoa estranha, que insistia em dizer que já se conheciam. Olhar para o nada era mais confortável do que fazer um esforço inútil de reconhecimento. Ela nunca tinha visto aquela fulana que ficava repetindo que era a sua filha. Ela não sabia nada sobre ter uma filha, senão teria recordado ao menos de quem era o pai. A moça de boa aparência, mas de maquiagem mal feita, outro dia tinha trazido um retrato antigo, dizendo que era o único que tinham juntas. Estavam sentadas num sofá, numa sala grande. Ela própria não se identificou na imagem, e nem a mocinha que se arreganhava num sorriso pueril. Estavam vestidas como madames, gente de posses. Como saber se era ela mesma no retrato antigo, preto e branco e já amarelado? Talvez ela pagasse a conta do asilo por caridade, mas filha? A tomavam como louca, mas louca podia ser aquela jovem se fazendo passar por quem não era.

 

— Bom dia, mãe! - Cumprimentou Samira, entrando pela porta do quarto, que a sua mãe dividia com outra idosa na mesma situação.

Dinorá virou o pescoço na sua direção e depois em direção a sua companheira.

— Deve ser visita pra você - Disse, sem demonstrar qualquer emoção.

— Não senhora, eu vim ver você - Adiantou-se para sentar na cadeira ao lado do leito.

Ficou satisfeita ao perceber que a mãe estava vestindo o pijama novo que trouxera da última vez. Era bem cuidada, apesar de alguns enfermeiros torcerem o nariz para o seu passado. Mas se compadeciam com o seu estado. Como alguém com tantas histórias pra contar não lembrava de nenhum capítulo da sua vida? Tudo estava sendo apagado, as folhas dos seus dias sendo deixadas em branco dia após dia.

 

Dinorá olhou para a filha, abria e fechava as mãos parecendo ansiosa, procurando em algum lugar da mente corroída um fragmento que a fizesse ter algum assunto para conversarem, como um náufrago buscava um pedaço de qualquer coisa que boiasse para se manter à tona.

 

— Não quero que a senhora fique nervosa. Vim para conversar sobre o assunto que você quiser. Faz de conta que somos velhas conhecidas.

— Assim é melhor - Falou a idosa, com o rosto anguloso e ainda imponente, cujos olhos adquiriam alguma vivacidade quando ficava relaxada.

— A senhora já tomou o seu café? - Perguntou, testando se a sua memória já tinha apagado aquela informação.

— Ah, sim! Aqui se come muito bem. Às vezes nem quero o que trazem, mas são muito rigorosos. Dizem que preciso engordar um pouco, mas quando lembro o trabalho que deu entrar no meu vestido de baile! Ai, ai! Era lindo, todo prateado e tinha plumas! É verdade! Ele tinha plumas e paetês! - Relatava com entusiasmo, enquanto Samira segurava uma lágrima teimosa que a muito custo manteve presa no olho. O vestido ao qual se referia, era justamente o que ela vestia na noite do leilão. Talvez aquela fosse a sua última lembrança ainda viva, ou o momento exato em que ela tinha parado de gravar suas memórias.

 

A descrição da roupa tinha sido tão perfeita nos detalhes, que se uma boa costureira tivesse escutado a conversa, já estaria sentada na máquina de costura replicando-a. Samira rezava para que as lembranças desse dia parassem por aí, porque a alegria de vê-la tão motivada supria momentaneamente o alto preço de não ser o alvo da recordação. O alumbramento seguiu até a descrição perfeita dos seus sapatos. Assim que discorreu sobre a maquiagem ela cessou, como se o assunto tivesse esgotado. Logo se mostrou irritada por não lembrar de mais nada.

 

— Gosta de bolo? - Perguntou a filha, retirando da bolsa uma fatia de bolo de carimã, o predileto de Dinorá.

— Não sei. Nunca comi.

— Quer experimentar?

— Não vai ter problema aqui com os meninos? - Perguntou com receio dos enfermeiros.

 

Depois que entregou o bolo, observou-a comer saboreando cada mordida, enquanto Samira sorria pensando em alguma maneira de fazer ela saber que aquela receita era dela mesma, da sua mãe, a quem nunca culpou por nada que aconteceu de ruim na sua vida..


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