JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 43
Capítulo 43




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A trajetória da bala não obedeceu ao desejo da atiradora, passando muito próximo do lóbulo da orelha direita do rapaz, avançando em direção ao corredor, onde dois homens caminhavam na tentativa de libertar a dupla de funcionários que estava cativa em um dos banheiros do asilo. A princípio, Balduíno assustou-se com o estampido, e depois tornou a se assustar quando Justino saltou para trás, derrubando-o no chão. O homem era pequeno, mas bastante pesado, e foi com alguma dificuldade que o coveiro se desvencilhou do seu corpanzil. Os olhos estavam esbugalhados e os lábios tremiam. Um palmo abaixo do queixo foi o lugar escolhido pelo projétil para se alojar. Um filete de sangue escorreu-lhe pelo canto da boca, seguido de um sussurro débil.

 

— Me… ajude! - Pediu, olhando nos olhos do homem que lidava melhor com a morte.

— Mantenha a calma rapaz, vou chamar alguém - Disse, apoiando a cabeça do capoeirista em um peso de porta que estava por perto, querendo avançar para a recepção, onde as coisas estavam acontecendo, mas recuou até a cozinha, onde Cândido também estava com a vida por um fio.

— Alguém me ajude aqui dentro por favor, temos um homem baleado! - Gritava, subindo na pia com a intenção de fazer o caminho de volta, desistindo quase de imediato quando viu o Delegado Peixoto entrando pelo portão dos fundos acompanhado de agentes da polícia, incluindo um investigador famoso. Aquilo não estava lhe cheirando nada bem.

 

Acordou de um breve devaneio sobre qual era o real motivo da presença da polícia investigativa em um local já guarnecido pela polícia repressiva. O único sentido que fazia, era que estavam atrás de um alguém específico para pôr as argolas nos pulsos. Tirando o ator principal daquela festa, não via outro personagem que tivesse cometido algum delito ali, além dele. Precisava picar a mula dali, mesmo que às custas de abandonar o barco amotinado com dois feridos graves. Estariam em boas mãos quando invadissem o local. Achava que já tinha feito a sua parte.

 

Como queria estar sempre a um passo à frente, esboçou um planejamento de fuga arriscado, mas que ainda assim poderia lhe auferir vantagens. Correria o risco, e se ela topasse, se evaporariam do mundo como fantasmas.

 

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Quando Dr Eliseu percebeu que a polícia se aproximava com rapidez da porta principal, tratou de fazer os arranjos depois de tomar o revólver das mãos de Dinorá e avançar para cima do irmão, que permanecia desnorteado com a cena.

 

— Tome! Segure isso! Você vai assumir o tiro e eu vou tentar aliviar a sua barra! - Ordenou, esticando o pescoço para tentar ver quem tinha sido o homem atingido e que agonizava no chão.

 

Montila segurou a arma, vendo o irmão colocar a munição no bolso do paletó, olhando para o revólver como se fosse uma novidade, e testemunhando a velha voltar a sentar-se na cadeira e retornar ao seu estado catatônico, como se tudo o que ele tivesse presenciado fosse uma traquinagem da sua mente.

 

— Mas ela, ela.. - Balbuciou, tentando articular o motivo do seu espanto.

— Cale a boca idiota! Ou eu vou te deixar mofar atrás das grades! Já foi um milagre você não ter morrido - Vociferou, trazendo o irmão à razão, dada a urgência que o momento pedia.

— Está tudo bem, Eliseu? - Perguntou o Comandante da polícia, entrando no recinto com mais homens invadindo a instituição com armas em punho.

— Esse é o bandeirinha? Então o jogo já pode começar, né? - Perguntou a ex-cafetina olhando para trás, onde viu Montila com as mãos nas costas sendo algemado, e com os olhos vitrificados em estado de choque. O Comandante coçava a cabeça por baixo do quepe com as palavras sem noção da velha senhora. Aquilo lhe fez lembrar de uma piada de hospício, mas o momento não era oportuno para contá-la.

 

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Tomou o pulso de Cândido e de Justino apenas para descarrego de consciência. O primeiro estava agitado, e o segundo estava se esvanecendo. Abriu a porta do banheiro, e encontrou dois homens se beijando com lascívia, que se espantaram com a sua aparição repentina.

 

— Foi um.. um tiro que deram aí fora? - Perguntou o segurança, arrumando o bigode todo assanhado.

— Em que mundo vocês estão? Saiam da frente! E bico calado, senão eu volto! - Gritou, subindo no bidê para alcançar a janela basculante, que abriu sem dificuldades, achando que já tinha visto coisas estranhas demais para um dia só. Precisava escapar daquele lugar bem rápido.

 

Aterrissou no gramado lateral, onde os arbustos que já precisavam ser podados o protegeram da visão da polícia. Esgueirando-se, conseguiu alcançar um aglomerado de curiosos e saiu abrindo passagem até a avenida principal, onde subiu em um ônibus sem ser visto. Tinha consciência do que havia feito e sabia o preço a pagar. Era provável que já tivessem levado Patrícia. Era provável que Conceição já estivesse tecendo loas malignas à sua pessoa. Sentia apenas uma melancolia profunda quando pensava em Cidinha. Ao menos teve a chance de conhecê-la, e saber que a partir dela, o bom nome da família talvez um dia pudesse ser lavado e enxaguado, quando ela vencesse na vida. E o que restasse daí para trás pudesse ser apagado da lembrança das pessoas que um dia tiveram contato com os membros daquele clã amaldiçoado.

 

 

Donizete e o delegado eram homens de compleição física magra, mas o investigador era ágil como um gato. Não à toa fazia o trabalho de campo, enquanto o seu superior mais parecia um macaco preguiça artrítico, devido aos gestos lentos demais para a urgência que certas situações exigiam.

 

Depois de alcançar o chão da cozinha, viu um homem desacordado debaixo da pia e gritou para o delegado chamar uma ambulância. No meio do corredor havia outro caído, com dois homens sobre ele, tentando reanimá-lo. A polícia que invadiu o imóvel pela recepção, vasculhava os cômodos e não houve demora até que um médico entrasse com o seu aparato para avaliar o caso mais grave. Quando se depararam com o óbito do jovem negro, correram para a cozinha em socorro do outro, que agonizava.

 

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Havia uma nuvem algodoada que aumentava de tamanho como fumaça de incêndio, e sobre ela um barco de papel parecia navegar destemido. À bordo, o capitão dava ordens aos marujos para que remassem com mais vigor, já que havia um homem a ser resgatado. Cantavam uma canção que ele conhecia desde a infância e tinha sido a única coisa que permaneceu na memória depois da morte do irmão. Abriu a boca com esforço para cantar, mas a canção era demasiado rápida, exigindo que a língua tocasse de maneira alucinada o céu da boca seguidas vezes. Sentiu um gosto metálico, o mesmo de quando Samira tinha lhe mordido a língua quando fizeram amor pela primeira vez. Ele queria tanto que ela estivesse ao seu lado! Ao menos para lhe abrir as pálpebras e poder vê-la só mais uma vez. Mas elas pesavam toneladas. O capitão pediu que os marujos diminuíssem o ritmo e encostou uma luneta em um dos olhos. Pareceu-lhe que ele tinha sorrido com o que viu, e logo alterou o rumo do barco. A proa parecia crescer cada vez mais na sua frente, até que já não conseguia ver o navio inteiro, apenas parte do seu casco gigantesco. Uma enorme âncora foi jogada, e lá da balaustrada viu um homem pendurar-se na grossa corrente e deslizar para baixo. Só podia ser uma pessoa. Reconheceu-o pelo sorriso escancarado, deixando entrever os seus dentes perfeitos. Era o seu irmão que tinha vindo buscá-lo. Jacinto aproximou-se e colocou um dedo nos lábios pedindo que ele não dissesse nada. Passou um braço por baixo do seu pescoço e levantou sua cabeça, mas ele estava ansiando por saber.

 

— Para onde vamos?

— Para casa, meu irmão. Para casa - Explicou com o sorriso que ele sempre esperou voltar a ver um dia.

 

Ouviram o apito do navio e subiram a bordo junto com a âncora que se movimentava como um elevador, segurado nos braços pelo seu irmão gêmeo. Foi-lhe dito para descansar porque o caminho seria longo, e então o seu coração parou de bater em obediência ao pedido. No último e longo suspiro, deixou gravada no cérebro uma imagem diáfana de Samira com as mãos abertas para o céu, soltando um pombo negro que já ganhava o céu.

 

 

— Não encontrei o safado em lugar nenhum - Lamentava Donizete, com a certeza que aqueles dois que estavam presos no banheiro estavam mentindo. Aquele basculante aberto e o bidê sujo de terra lhe diziam algo. Alguém tinha aberto aquela porta pelo lado de fora, e não foram os policiais. O que lhe deixou intrigado eram os olhares de cúmplices que a dupla trocava. Em todos aqueles anos de polícia só tinha visto aquele tipo de comunicação entre marido e mulher quando queriam esconder um crime, durante um interrogatório.

— Vasculhem o perímetro! - Ordenou aos seus homens, percebendo que somente agora o delegado tinha conseguido entrar no asilo pela janela da cozinha.

— Eu deveria ter vindo pela frente - Disse, espanando a poeira do paletó e deixando entrever em um dos bolsos um abridor de garrafa vagabundo com o brasão de um time de futebol que ele tinha surrupiado de um dos armários.

Donizete balançou a cabeça ao entender o motivo do atraso do chefe. Procurando um souvenir da cena do crime. Aquele homem precisava de terapia e vergonha na cara, já que desconhecia a existência dos ‘’Cleptomaníacos Anônimos’’.

— Temos um corpo para recolher, um possível homicida com derrame embaixo da pia, um coveiro procurado e evadido do local e um homicida juvenil. Alguma sugestão de por onde começar?

— Você sempre foi bom em fazer tudo ao mesmo tempo. Quase um polvo cheio de tentáculos. Te concedo o poder de decisão - Proferiu o delegado, arrancando com a unha um cascão de ferida do pescoço, uma daquelas causadas pela tal onça.

— Acho que no momento, preservar a vida daquele homem ali é mais importante - Disse, apontando para Cândido, que recebia os primeiros socorros.

— Se puder, fique de olho nesse aí que vou atrás do coveiro. O morto não volta e o moleque já está preso.

— Perspicaz e objetivo, mas se eu fosse você, com a experiência que tenho..

 

Quando o investigador percebeu que o pavão abriria o leque de penas da cauda, correu para a porta da frente, pulando por cima do cadáver fresco, pedindo passagem aos policiais que algemavam o assassino, quase tropeçando na cadeira de rodas de uma vovó demente feita refém e com um olhar perdido, e pedindo licença ao Comandante da Polícia Militar que conversava com um senhor distinto. Tudo isso levando a sua jamanta de estimação, que corria atrás do investigador com a elegância de um guarda roupas velho durante um terremoto.

 

—-

 

Ferveu uma água e fez um chá para ela e o pai. As crianças já dormiam e a televisão fazia um tempo que não passava nenhuma imagem do local do conflito. Ela estava com uma sensação ruim desde que saíram de lá. Abdias roncava no sofá quando entrou o plantão de notícias, interrompendo a novela. Ela estava lavando um prato, e quando viu o corpo coberto por um lençol, com um braço pendendo para fora da maca, o prato foi ao chão, espatifando-se, acordando o seu pai. O repórter confirmou o nome da vítima. Virou-se de costas para a pia e firmou as mãos nela para não cair. Antes de desmaiar, foi amparada por Abdias que a alcançou e a carregou no colo até o tapete da sala. Escutou com atenção o que o repórter dizia sobre o caso e entendeu a reação de Samira. Justino estava morto. Precisava achar um jeito de convencê-la a ir embora com ele para o interior depois que tudo aquilo terminasse. Tinha fé em Deus que o festival de infortúnios já estivesse chegando ao fim. Pelo menos Dinorá estava bem. Quem sabe até não pudesse levá-la também. O ar fresco do interior lhe faria bem. Acalentou aquele sonho por alguns segundos, mas logo retornou a realidade vendo Samira acordar atordoada.

 

— Ele morreu, pai? - Perguntou, achando que talvez pudesse ter tido um sonho ruim.

 

Abdias anuiu com a cabeça, passando a mão nos cabelos da filha, levantando-a para lhe abraçar. Choraram por longos minutos, se consolando mutuamente.

 

— Mas Dinorá parece que está a salvo, graças a Deus!

— Vamos buscar mamãe! Preciso ver Justino!

 

Pediu a uma vizinha de longa data, e que tinha sido babá dos seus filhos, para que olhasse as crianças enquanto estivessem fora. Se arrumaram com pressa e chamaram um táxi. A noite seria longa e dolorosa. Ao entrar no veículo, Samira notou um pombo de plumagem negra arrulhando e olhando na sua direção. Não era comum estarem longe dos telhados àquela hora da noite.


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