JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 42
Capítulo 42




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A experiência de ter guiado ambulâncias foi decisiva ao farmacêutico, que conseguiu driblar o estouro da manada humana com habilidade, alcançando rapidamente uma avenida de menor fluxo de trânsito. A todo instante perguntava se Samira e as crianças estavam bem, ou se havia alguém ferido. Diante das negativas, sossegava, e de vez em quando passava a mão nos cabelos dos pequenos e na mão da filha, que estava inconformada por ter deixado Justino e a mãe para trás.

 

— Ele é um homem forte e esperto. A polícia deve contornar a situação logo e Dinorá vai ficar bem - Disse Abdias, sem nenhuma convicção, espanando os cacos de vidro que conseguiram alcançar os bancos dianteiros.

— Preciso chegar em algum lugar para ligar a televisão e acompanhar o fim daquele inferno! - Lamentava Samira, cheia de planos e medos lhe rondando a cabeça.

— Vamos para a minha casa, e quero crer que lá tudo será revelado - Afirmou, pensando que há pouco achava que nunca mais voltaria naquele lugar que só tinha lhe trazido infortúnios.

 

As crianças pegaram no sono, ambas no colo de Samira, com as cabeças apoiadas uma na outra. E na cabeça de cada um dos adultos havia conflitos e angústias, algumas inconfessáveis, e outras gritando por serem ditas. O pai, sentindo as dores da tortura da sua alma por ter quem mais amava perto de si, sem que ela soubesse que o amor intransferível estava todo ele ao dispor dela, a filha. E ela, perto do único homem em quem podia confiar com plenitude, seu pai, assim dito por sua mãe que lhe obrigou a nunca tratá-lo como tal, sob pena de odiá-la.

 

— Com toda aquela confusão eu esqueci de perguntar por Cláudia. Ela está em casa? Talvez ela não goste de me ver com o senhor.

— Ela… - Ao titubear na resposta, viu uma cena incomum na sua rua.

 

Ao encostar o carro na frente de casa, percebeu um veículo da prefeitura parado na esquina oposta. Se fosse algo corriqueiro não haveria platéia. Pediu que Samira ficasse no carro e caminhou até o local com uma sensação estranha que lhe pedia para desvendar aquela ocorrência. Havia um rapaz fechando o zíper de um saco mortuário. Pediu licença ao agente da prefeitura e se ajoelhou próximo a cena.

 

— É alguém conhecido daqui do bairro, meu rapaz?

— Muita gente já passou por aqui e alguns reconheceram a moça como moradora daqui dessa rua. Parece que foi uma dose muito forte de alguma substância entorpecente que a matou. É só o que eu sei pela boca dos outros.

— É mesmo? Eu poderia vê-la por um instante?

— Mas é claro. O senhor pode aguardar só um momento que o meu superior está chamando no carro?

— Sim.

 

Ele continuou ajoelhado, com o olhar direcionado para os contornos do saco. Pousou a mão onde seria a cabeça e fez um carinho sobre a testa pronunciada, descendo para o nariz empinado. Fez um movimento delicado na região da boca miúda e seguiu para o queixo pontudo. Os seios eram pequenos, porém firmes e ele os evitou. Estendeu o toque para os braços até chegar nos dedos da mão direita. Não encontrou mais a aliança, apenas as unhas lixadas no formato de uma espátula de pedreiro, como garras, que era como ela gostava. Olhou para trás em busca do rapaz para que o autorizasse a abrir o saco. Os seus olhos se encheram de água e um soluço não lhe permitiu esconder a emoção por muito tempo. Os dedos que escalou para ir de encontro ao zíper tremiam como se não quisessem participar daquilo. Começou a deslizar lentamente o fecho ecler para baixo, desvendando o rosto maltratado e sujo da mulher que tinha lhe jurado felicidade eterna. Teve a impressão que ela tinha morrido com um sorriso no rosto, e quando pegou a sua mão, sentiu os calos que a vida tinha lhe dado. Ao esticar o braço frio, vislumbrou as marcas arroxeadas de uma vida sofrida e que ela tanto fez questão de esconder com camisas de manga comprida. Como ele não pôde perceber aquilo?

 

— O senhor conhece a moça? - Perguntou o motorista do rabecão que vinha arrastando a urna metálica para colocar o corpo.

— É a minha companheira - Disse, recebendo um abraço desajeitado do homem, enquanto olhava para o carro onde Samira lhe devolvia o olhar com preocupação, mas já se desvencilhando das crianças e passando para o lado do motorista ao ver a chave no contato, e chegar mais perto da cena.

 

Saiu do carro com as crianças chorando por terem despertado de maneira repentina, e se deparou com a cena.

— Eu estava cego de paixão e não desconfiei de nada. Ela foi embora porque não suportou a falta que essas porcarias faziam a ela - Desabafou, mostrando os furos de agulha ao longo do braço de Cláudia, levantando-se para dar um abraço em Samira.

— Minha filha, eu te amo tanto! - Gritou, no meio da rua, apertando Samira, que chorava como ele, retribuindo o amor do seu pai.

— Eu também te amo meu pai! Eu já sabia, mas a minha mãe…

— Ah! A sua mãe, sempre a sua mãe. Precisamos enterrar Cláudia. Meu Deus, as crianças! - Lembrou quando as viu saírem do carro e correrem na direção deles.

 

Cláudia se antecipou e as interceptou a meio caminho do corpo da mãe. Abdias agradeceu a paciência do pessoal do rabecão, avisando-os que providenciaria uma funerária para os trâmites legais. Viu o veículo partir junto com a esperança de que um dia pudesse amar alguém como mulher. Dedicaria o que restava dos seus dias para cuidar dos filhos dela, já que a sua primogênita já estava criada. Um sentimento estranho não colaborava para resolver qual o peso da felicidade e da tristeza que sentia. Se uma mistura dos dois fosse aquele sabor agridoce na boca, então era isso.

 

Recolheu o carro sem os vidros traseiros para dentro de casa e entraram para dar o que comer aos pequenos e a eles próprios, e assistirem a um programa na televisão que em nada lhes apetecia. Aproveitou para abrir o catálogo telefônico na letra F, enquanto Samira estava na cozinha mexendo nas panelas. Discou o número encontrado e pediu para falar com a viúva de Franchico, o dono da funerária que tinha falecido não fazia muito tempo e também fora seu amigo de infância. Naquela noite ele não conseguiria pregar os olhos sem juntar as mãos e rezar de joelhos. Para agradecer pela filha reconhecida, e para pedir perdão pela mulher falecida.

 

—----

 

Após os médicos constatarem que não se tratava de um caso grave, já que o projétil tinha lhe atingido apenas de raspão no ombro, apenas um curativo foi feito, e em seguida o Mestre Tuta recebeu alta. Janice disse que iriam para a casa dela onde faria a troca periódica dos curativos, observando o cenho dele franzir em claro sinal de malícia e concordância. Começaram a se cutucar ainda no banco traseiro do táxi, com as mãos do professor de capoeira passeando pelas coxas mirradas da ex-cocote. Foi com espanto nos olhos que ela percebeu o tamanho da ereção que se avizinhava. Parecia que o homem gostava de um pouco de perigo para chegar naquele ponto. Logo começou a maquinar algo para que aquele cacto não murchasse até cumprir o seu papel de polinizar sua florzinha.

 

Dado o grau de excitação em que se encontravam, ele deixou o troco com o motorista, coisa que não era do seu feitio. Era conhecido como um muquirana pelos amigos. Abriram a porta da casa com sofreguidão. Apesar de modesta,a casa de Janice  possuía um pequeno quintal, onde ela plantava mudas de flores que sempre ganhava de um admirador. Entre a sala e o pequeno roseiral arrancaram as roupas se esbarrando nos móveis e se atracando como dois púberes com os hormônios em ebulição. Só houve tempo para Janice arrancar a toalha da mesa da cozinha e jogá-la no chão de terra para se deitar com Tuta já mergulhando para dentro do seu corpo. Ele era viril, tinha porte físico e vitalidade de esportista, e ali era como se estivesse jogando em casa, diferente do ambiente do motel onde ficou deslumbrado, mas também intimidado.

 

O dia começava a perder a luz, mas a devassidão fazia ambos verem estrelas mais cedo que o normal. Com a ferocidade do ato, fazia-se ouvir as batidas secas dos dois corpos em intervalos curtos, cujo ritmo não diminuía, levando-a a um lugar que ela pensava não existir. Queria ficar lá para sempre. O suor do seu macho pingava na testa dela. Seus lábios estavam contraídos e a mente concentrada em extrair o máximo do ato. Ela o viu abrir a boca e fechar os olhos, num sinal de que a curva do prazer estava chegando no seu ápice. Ambos soltaram os gemidos presos como uma libertação e viram os fogos de artifício ribombando num céu imaginário. Com os corpos grudados um no outro e a respiração ofegante, ficaram se olhando sem dizer nada, até que sentiram um princípio de câimbra.

 

— Faz tempo que não sei o que é sentir essa coisa doida - Revelou, passando as mãos na nuca dele, ainda deitados.

— Que coisa?

— Esse formigamento na pele, como se eu estivesse sendo pinicada pelo corpo inteiro - Disse, vendo-o descobrir o que eram aquelas coisas pequenas caminhando pela toalha.

— Levante daí, estamos deitados em cima de um maldito formigueiro!

 

Correram apressados para debaixo do chuveiro esfregando as mãos pelo corpo, onde removeram os insetos que passeavam pelas suas dermes. Depois daquela experiência malograda dos alfinetes, as nádegas de Tuta agora eram uma floresta de calombos. De alguma maneira o seu traseiro sempre pagava o preço, mas daquela vez ele estava disposto a sentar-se nu sobre carvão em brasa, que ainda assim sairia daquela experiência satisfeito.

 

—-

 

Estava quase no horário dela sair da escola, e mesmo assim ainda estava na dúvida sobre se ela tinha vindo ou não. Talvez o problema com a mãe a tivesse abalado e ela não reunisse condições de frequentar as aulas naquela semana. No entanto, o seu instinto lhe dizia que ela não tinha motivos para tal, até porque soube por Patrícia que nunca mais teve contato com a filha até o momento que veio parar ali depois que foi demitida. Ouviu a campainha e ficou atento. Precisava abordá-la longe de olhos curiosos, e esperaria ela entrar na estradinha de terra para dar o bote. Daquela vez tinha evitado aparecer na vendinha, e fez questão de alugar um carro para que o seu não fosse visto rodando em Sabugueiro.

 

Não demorou muito para vê-la saindo pelo portão toda empertigada depois de se despedir de uma colega. A mochila parecia ter o dobro do seu peso, e somente agora ele tinha notado que a menina usava óculos, cuja armação escorregava pelo nariz enquanto andava, fazendo-a usar a ponta do indicador várias vezes para levá-lo de volta ao topo do nariz. Como era normal em uma criança naquela idade, andava distraída, dando saltos com um pé apenas ou com os dois, como se tivesse brincando de amarelinha. Seus devaneios o levaram a um tempo no qual ele também tinha aqueles mesmos oito anos, e a única brincadeira que lembrava, era de capturar ratazanas vivas no sítio do seu pai e amontoá-las numa gaiola de passarinho. Depois que se dava por satisfeito com a quantidade, chamava os colegas para vê-lo embeber os roedores com álcool, riscar o fósforo e abrir a portinhola, apenas para ver a disparada daquelas pequenas bolas de fogo. A brincadeira de Cidinha necessitava apenas de um cérebro sadio e uma casca de banana.

 

Esperou que ela passasse pelo veículo onde estava e deixou-a sumir no horizonte, na direção da estradinha que levava ao sítio da avó. Vestiu-se da malícia do lobo mau, girou a chave na ignição, e foi atrás da chapeuzinho. Abriu o porta luvas para se certificar que o lenço e o frasco de clorofórmio estavam à mão. Aquilo só seria usado no caso da sua lábia não ser o suficiente. Olhou pelo retrovisor e não viu nenhum carro na mesma via. Decidiu que uma curva mais adiante seria o ponto de abordagem e acelerou para interceptá-la naquele ponto, que era cego para ambas as direções. Ela percebeu que um veículo se aproximava, mas não se virou para vê-lo, apenas caminhou mais para a margem da estrada abrindo passagem, quando viu o Fusca branco parar ao seu lado com um rosto conhecido ao volante.

 

— Aparecida! - Chamou-a num tom de voz amigável para não assustá-la.

— Oi. Não foi o senhor que uma vez me trouxe uns presentes?

— Eu mesmo - Respondeu, lisonjeado por ela ter lembrado da sua cara doente. Talvez tenham sido as cicatrizes de acne ou o seu nariz adunco que lhe fazia parecer com algum vilão dos desenhos animados que ela assistia.

— Se o senhor veio ver minha mãe, sinto muito. Ela foi presa - Esclareceu, com uma sinceridade compatível com a educação que Conceição tinha lhe dado.

— Sua mãe me pediu para vim buscá-la assim que saísse da escola. Ela precisa conversar com você antes de levarem ela para um lugar muito longe daqui onde ela vai ter que passar muitos anos. Acho que ela quer te dar um abraço antes de partir.

— A minha avó pode ir?

— Não. Ela pediu que você fosse sozinha, por isso me pediu. Eu sou o chefe dela e ela só confia em mim e mais ninguém. Não vai demorar, é aqui perto. Depois te trago de volta pra casa e converso com a sua avó. Não vai dar tempo nem de ela ficar preocupada.

 

Cidinha capitulou um pouco. Ela queria muito abraçar a mãe e saber dela própria o que estava acontecendo. Tinha muitas perguntas para fazer e sabia que ninguém lhe daria qualquer informação sobre o seu paradeiro, muito menos a sua avó. Teria que esperar indefinidamente pela sua volta, como se ela é quem estivesse presa dentro dessa expectativa. Sabia que não suportaria a agonia da espera para sentir outra vez aquele cheiro bom de perfume caro, ouvir suas histórias, e ver mais uma vez as lágrimas de arrependimento lhe rolarem pelo rosto por tê-la abandonado. Logo agora que ela estava começando a admirá-la. Sem pensar em mais nada, entrou no carro, acomodou-se no banco e fechou a porta. O sorriso confortante que Peixoto lhe dava durou até pegarem o asfalto, quando decidiu abrir o porta luvas, embeber o tecido do lenço com o líquido, com a menina estranhando aquilo, e vendo-o parar o carro bruscamente no acostamento. Antes de ser forçada com brutalidade a aspirar o lenço, ela percebeu todo o mal contido naqueles olhos miúdos, que bailavam numa dança macabra dentro das órbitas.


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