JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 41
Capítulo 41




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Não estava gostando nada daquele teatro macabro. Apesar de estar acostumado com contingências nefastas que teimavam em sair do controle, precisava minimizar os impactos que o irmão beligerante estava causando a sua imagem. A palavra que martelava dentro da sua cabeça era ‘’mitigância’’. Mas como parar uma caçamba de areia sem freios? Se até quando segurou o caçula no colo com poucos dias de nascido, em uma foto feita durante sua formatura, ele cagou e mijou na sua beca? Era exatamente o que estava fazendo ali outra vez, soltando os intestinos em cima da sua toga. Desde então cultivava um ranço pelo garoto, que atualmente só não era maior porque sempre podava aquele sentimento para que não desse frutos. O certo seria enfiar-lhe atrás das grades para amolecê-lo, mas o risco daquele pequeno cramulhão liderar um motim era grande, como se podia acompanhar ao vivo na televisão.

 

Alternou sua visão entre o corredor polonês que a polícia fazia, desde a porta do carro oficial até os repórteres, e daí para o comandante da operação, um pouco mais à frente. Sua secretária lhe empoava as bochechas para eliminar o suor do seu rosto apinhado de rugas, enquanto ouvia um pedido para que tivesse cuidado. Tinha que lidar com vagabundos todos os dias, e com gente daquela laia não havia acordo, mesmo que o meliante em questão tivesse o seu sangue. Precisava ser imparcial, e esse seria o seu trunfo para alcançar o objetivo principal. A desembargadoria. Acionou o vidro elétrico para ouvir os apupos da multidão, mas só sentiu um ar carregado de fuligens e cheiro de pneu queimado. Quando percebeu a movimentação dos veículos de imprensa que se aproximavam do carro, decidiu sair com a anuência dos dois seguranças que o escoltavam.

 

Afastou os microfones informando que mais tarde falaria com a imprensa, dirigindo-se ao comandante, um velho conhecido seu, frequentador da mesma sauna. Aquele homem de meia idade, empertigado dentro do seu uniforme, não lembrava em nada o péssimo contador de piadas que era. Ao vê-lo sorrir, logo lhe veio à lembrança o último chiste infâme.. ‘’Porque o policial não usa sabão?’’. Eliseu não tinha muita paciência com aqueles joguinhos, e sempre arregalava os olhos em claro sinal de que queria ouvir logo a resposta. ‘’Porque ele prefere deter gente!’’. E o homem ria daquilo, sacudindo a barriga até quase lhe cair a toalha, enquanto caminhavam para os chuveiros, depois do banho turco. Sempre esboçava um sorriso forçado para que a amizade não caísse por terra, por culpa das pilhérias de mau gosto.

 

— Qual a situação, meu caro Vitorino? - Perguntou, cumprimentando-o com efusividade.

— O rapaz não quis negociar e pediu para chamá-lo. Fez um disparo que felizmente não feriu de morte o seu professor de capoeira. Ainda não invadimos pela consideração que tenho a sua pessoa, mas estou sendo pressionado pelo alto comando para resolver a situação com brevidade. O trânsito está caótico para além de vários quilômetros daqui.

— Esse menino não saiu aos irmãos mais velhos. Vai precisar de um corretivo. Se ele mandou me chamar, preciso saber das intenções. Peça que anunciem a minha chegada. Vou entrar.

 

Sem argumento que impedisse o juiz de ter contato com o irmão delinquente, o comandante deu algumas ordens aos seus homens, e alguns segundos depois, após o megafone ser utilizado, a porta do asilo se abriu lentamente. Como se tomados por uma hipnose repentina, a multidão que estava enfurecida, calou-se. Com a respiração de milhares de pessoas em suspenso, sentiu-se como a bater um pênalti na final do mundial. O goleiro, ao invés de luvas, deixava entrever por uma fresta, o revólver. Se perdesse aquele gol estaria morto, e se o fizesse, seria carregado nos braços do povo. Era tudo ou nada. Ficou tentado a olhar para trás, mas estava concentrado demais. Seu batimento cardíaco estava inalterado, fazendo jus a sua fama de frio e durão. Seus lábios crispados e o senho franzido de forma ameaçadora era uma assinatura pessoal que despertava temor a qualquer oponente, mas quando se tinha uma arma apontada para si, poderia denotar preocupação.

 

— Abaixe essa arma, Rogério! - Ordenou, com a voz mais grave que conseguiu emitir.

 

Não houve contestação, e o recolhimento do trabuco indicava que o fedelho tinha obedecido. Montila deu ré na cadeira de rodas para abrir a porta e dar passagem ao irmão, sob os olhares curiosos de Dinorá, que parecia uma criança esperando a chegada do padrinho com um saco de guloseimas.

 

— Quem está chegando, meu rapaz?

— Não é da sua conta.

— Mas que falta de educação para com uma velha senhora.

— A educação que você merece é essa aqui - Disse, apontando a arma para a testa da velha.

— Você vai me ensinar a atirar?

— Pode ser que eu te ensine a atirar em você mesma. Seria legal assistir a essa cena, mas não teria graça nenhuma. Nós temos algo pessoal para resolver, mas antes tenho umas coisinhas para falar com o juiz que está chegando.

— Juiz? Vai ter futebol aqui no asilo? É por isso que essa torcida tá gritando lá fora? E vamos torcer pra qual time?

 

O rapaz respirou fundo e desistiu de continuar a responder. Era inútil. Mesmo apontar a arma para a cara da cafetina não lhe infligia medo. Aquilo não estava saindo como ele tinha planejado. Antes de meter uma bala naquela idosa precisava ter certeza que salvaria a sua pele. E o seu salvo conduto estava entrando pela porta. Não lembrava de como a presença do Dr. Eliseu lhe afetava. Parecia maior do que era realmente. O seu olhar lhe penetrava nas entranhas que chegava a doer por dentro. Não podia demonstrar o quanto estava intimidado com a proximidade do irmão, que trajava um terno caro, sapatos de cromo alemão, uma boina italiana, que logo tirou da cabeça junto com os óculos escuros, causando o efeito esperado. Usava o mesmo perfume almiscarado que lhe era familiar. Sua respiração era controlada e o semblante demonstrava contrariedade, mas nunca impaciência. Era uma pedra de mármore fria. Ele sabia o poder que tinha, sabia como afetar o interlocutor sem precisar dizer palavra. E quando abria a boca, deixava-se ouvir junto as sílabas, um leve sibilar de cascavel.

 

— Esse é o nosso juiz? Como é elegante!

— Sim, minha cara Dinorá. Sou um juiz de um jogo no qual muitas vezes não há ganhadores ou perdedores - Respondeu, com uma voz ainda mais grossa que a do rapaz.

— O senhor me conhece?

— Sim, conheço a senhora e não lhe culpo pelo que fez ao salafrário de prenome Cassandro, ao qual uns poucos gatos pingados chamavam de doutor. Pelo contrário, devo os meus respeitos - E curvou-se para beijar a mãe estendida da cafetina, mas com o olhar no rosto contorcido de ódio do irmão, que segurava um recipiente de vidro com um conteúdo que ele apenas imaginava o que poderia ser.

— E você?

— Eu o que?

 

Eliseu lançou-lhe um olhar enigmático, seguido de um sorriso no canto de boca, que deixou Montila ainda mais perturbado e fazendo-o pensar em levantar a arma na direção do irmão. Logo desistiu da ideia, sabendo que as consequências seriam nefastas a um ponto, que o juiz faria de tudo para que ele mofasse na cadeia para sempre. Era o mesmo que morrer. E ele não queria abreviar a sua vida com tão pouca idade.

 

— Eu só pedi pra você vim aqui porque…

— Pra livrar a sua pele. Mas não estou disposto a isso. Você tem ideia do que está causando aí fora? Da bagunça? Do caos? Já que de caos você entende.

— Você sabe o que é isso? - Perguntou Montila, sacudindo o frasco de vidro.

— Eu também estou curiosa! - Interrompeu Dinorá, interessada na resposta.

— Se o dono disso fosse digno, eu diria se tratar de parte de um homem honrado. Mas é apenas um pedaço inútil daquele que você chamou de pai, e que ele costumava usar bastante para trair a minha mãe. Essa senhora aqui é prova do que digo. Mas vejo não estar em condições para confirmar.

— Confirmo sim! Se o senhor pedir que eu confirme qualquer coisa, eu confirmo! O senhor é mais distinto do que esse rapaz, que é muito rude!

— Você vai me dar isso aí na sua mão, ou vai me enfrentar?

— Tanto o frasco como a arma, você vai ter que tirar das minhas mãos. Você têm mais a perder do que eu, não é?

— Rogério, você acha que eu vim aqui pra perder? - Perguntou, enfiando a mão no bolso traseiro da calça para buscar o lenço que enxugava de vez em quando o seu suor profuso.

 

 A cena foi confundida com uma ameaça pelo irmão caçula, que deixou o frasco cair no chão e empunhou a arma com a intenção de puxar o gatilho. Montila estava atrás da cadeira de rodas e se assustou com a mão de Dinorá aparecendo como um fantasma, que num golpe rápido demais para uma idosa doente, lhe tomou a arma e deu pulo para fora da cadeira, ficando em pé ao lado do juiz, que enxugava o rosto, sem demonstrar nenhuma surpresa ou medo.

 

— E agora seu verme? Onde você quer a porra do tiro? Fale moleque escroto! - Gritava a idosa de olhos vivos, empunhando a arma como um caubói, e que ainda a pouco era tratada como alvo fácil pelo delinquente, paralisado com a cena inexplicável e sem saber se levantava as mãos ou gaguejava alguma pergunta. Não conseguiu ter qualquer reação depois de ser pego de surpresa, vendo a cafetina lhe apontar a arma e ser amparada pelo juiz, que abria um largo sorriso.

 

—-

 

Depois de fazer o check-in da beldade mórbida na melhor ‘’suíte’’ da delegacia, agora era a vez do pai dela. Não sabia de quem ela tinha herdado os traços tão delicados, já que o coveiro parecia o resultado de um atropelo. Com a dica do irmão do delegado, sabiam onde procurá-lo, pois parecia haver uma rixa entre o procurado e o talzinho que estava tocando o terror no asilo. Desconfiava que Balduíno tentaria alguma coisa, até mesmo entrar no recinto. Além do seu ‘’king kong’’ particular, trouxe mais dois homens para circularem pelas redondezas. Ao menor sinal de reconhecimento, acionariam o rádio para que pudessem fechar o cerco e prendê-lo.

 

Donizete andava com desenvoltura, disfarçado no meio da multidão. Ficou tentado a dar voz de prisão a meia dúzia de elementos que banhavam pneus velhos com gasolina e acendiam fósforos, interrompendo o tráfego de veículos. Concorriam com aquele desejo, um adolescente jogando pedras para separar o cachorro de uma cadela que estavam grudados após o coito, zanzando de um lado para o outro na tentativa de desviar dos arremessos. Ele precisava seguir focado, mesmo naquele terreno fértil para atos de desordem. Percebeu que andava com o peito estufado demais, e desinflou um pouco o ego que andava a lhe deixar maior do que realmente era para não atrair uma atenção que não queria. Vasculhava os rostos anônimos como um funcionário do controle de qualidade de um laranjal. Era muito bom em identificar frutas podres.

 

Foi nas suas pupilas e não no rádio que recebeu a confirmação visual do seu alvo. Caminhava junto a outra pessoa para os fundos da construção. Ficou tentado a alertar o grupo, mas dividir os louros era complicado em se tratando de um policial com um escore de detenções digno de condecoração. Avançou a passos largos, aproximando o distintivo para ultrapassar o cordão de isolamento porque o jovem palerma de farda que tinha cara de quem ainda bebia leite no peito da mãe, franziu o cenho ao vê-lo sacudindo o emblema à distância na tentativa de ser reconhecido com mais rapidez. Naquelas ocasiões, sua vontade era de pedir o endereço do entrave, e enviar-lhe uma fita de videocassete com os seus melhores momentos. Ou então pedir ao ‘’king kong’’ que apresentasse o seu método de persuasão principal. A sua própria presença.

 

Caminhando pelo bosque com a sua cautela de sempre, e fazendo a varredura do local, pensou no delegado. Ele tinha feito algumas tentativas de trocar a sua missão de fazer o levantamento cadavérico dos dois corpos na casa do primo de Zuleide, o tal Cândido que estava foragido ou com paradeiro incerto, pelo cumprimento daquele mandado de prisão. Aquilo era um aceno da serpente, querendo estrear seu chocalho novo. Ele não caiu na armadilha da vaidade alheia e optou por empoar ainda mais o seu personagem para que a imprensa pudesse captar o seu melhor ângulo, afinal o chefe tinha se engalfinhado com a parente do suposto assassino, e portanto devia satisfações a tal onça. Aos poucos o homem estava se tornando uma piada nos círculos policiais, já que o maior felino avistado naquelas bandas era o gato maracajá.

 

Seu faro experiente lhe dizia que o coveiro tinha tentado entrar no local, caso já não o tivesse feito. Devido a quantidade de policiais protegendo o local, nem se deu o trabalho de guardar o distintivo durante o seu desfile entre fardas, distribuindo autoridade para abrirem a sua passagem até os fundos da instituição, onde vislumbrou um muro baixo e uma janela quebrada recentemente, devido aos cacos de vidros no chão do quintal. Com o reencontro da sua equipe no local, orientou que ficassem circulando nas cercanias enquanto decidia se entraria no asilo sem comunicar ao comandante da operação. Faltava pouco para que alcançasse o patamar de mito na segurança pública, mas não queria ser o pomo da discórdia naquele evento. Pediu ao gigante que o levantasse nos ombros para tentar ver algo além dos muros. Conseguiu apenas ver o clarão do segundo tiro disparado naquela tarde tumultuada.


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