JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 40
Capítulo 40




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Tinha prometido ao irmão não chegar nem perto da cena quando fosse dada a voz de prisão, mas ele não podia perder aquilo por nada. Assistiria tudo de longe, dentro do carro, comendo a maldita galinha que ficava bicando os cadarços do seu sapato quando ia comprar água no bar. Tinha pago uma nota para convencer o dono do botequim a assar a infeliz. O gosto da vingança realçava no palato mais do que a carne velha da ave. Notou a chegada de Donizete em uma viatura, acompanhado de mais um policial. Enquanto triturava os ossos de uma asa, encostou o binóculo nos olhos e regulou as lentes. Pelo horário, a velha já deveria estar regando os canteiros de coentros, e o alvo da operação, provavelmente dormindo abraçada com a filha, como se lhe tivesse algum afeto genuíno. Aquilo seria divertido.

 

Piscou as pestanas para lubrificar os olhos e ter certeza de que o investigador estava penteando a cabeleira antes de cumprir o papel da lei. Tinha acertado quanto a vaidade daquele ser, mas achava um pouco de exagero os cuidados com aquelas mechas grisalhas lhe caindo por sobre as orelhas. Talvez se fosse um vagabundo perigoso a ser capturado, ele passasse as mãos nos pneus da viatura para sujar o rosto e assanhar o cabelo. Ao sair do carro, levantou as calças e puxou a camisa para baixo, segurando umas folhas de papel e metendo a algema no bolso traseiro da calça. Abriu a cancela e caminhou calmamente até a casa de madeira, com uma montanha de músculos a lhe acompanhar dois passos atrás.

 

Viu que a velha foi a primeira a se aproximar sem entender o que aquela dupla queria com a sua filha. Mesmo desconfiada, entrou em casa e foi chamá-la, achando que Patrícia tinha aprontado algo na cidade e estava ali para se esconder. O único pensamento de Conceição era proteger a criança de alguma cena constrangedora, logo agora que mãe e filha estavam se entendendo. Donizete pediu que ‘’a montanha’’ contornasse a casa para alertá-lo caso ela tentasse escapar, e foi prontamente obedecido e desnecessário, visto que a visão da beldade surgiu bocejando na sua frente, com os cabelos revoltos, numa exígua camisola rosa bebê que lhe desenhava através do tecido fino cada segredo do seu corpo.

 

Peixoto segurava o binóculo com uma das mãos, e com a outra abriu o zíper da calça, de onde retirou o seu membro intumescido, começando a friccioná-lo. Empurrou uma fita cassete no toca fitas, de onde saíram as primeiras notas da Nona Sinfonia. Começou a ritmar a sua homenagem a Onan, acompanhando as notas da música, enquanto se deleitava com a pouca resistência que Patrícia ensaiou para não ser levada, logo contida pelo investigador, já na companhia da sua escolta. Conceição corria atabalhoada com um casaco para cobrir o corpo da filha, enquanto a menina chorava gritando pela mãe na barra da sua saia. A vibração do que via e ouvia o fez ejacular dentro de um saco de papel, onde repousava no seu interior, a cabeça da galinha morta. Ainda arfando, viu a viatura pegar a estrada. Limpou o suor da testa e restos do sêmen que respingaram no volante, jogou o saco de papel pela janela junto com os ossos da ave e saiu dali com um enorme sorriso a lhe enfeitar o rosto encovado, que admirava pelo retrovisor. Aquilo era apenas uma parte do que tinha planejado para destruir a vida daquela mulher.

 

Pelo vidro do carro já em movimento, ela viu Cidinha chorando abraçada a avó, que lhe lançava um olhar de decepção. Só se podia esperar dela o pior dos mundos. No seu íntimo era quase certo que jamais conseguiria ver aquela criança outra vez, mas faria daquilo a razão da sua sobrevivência. Tinha consciência do que vinha pela frente, e nada era bom. Se ao menos o seu pai pudesse ficar na mesma cela para cuidar dela. Talvez já tivesse sido preso. Aquele caso sairia nos jornais, e era certo que Peixoto faria uma carnaval de três dias na redação com manchetes espalhafatosas, apesar dela ter sido funcionária do jornal. Aquele homem era perigoso e tinha sido um erro se envolver com ele. Olhou a diferença de porte físico entre os dois homens que estavam nos bancos da frente e tentou ver alguma graça, mas só enxergava o tamanho dos seus problemas no gorila, que para caber no veículo precisava viajar com um dos braços para fora da janela. Também precisava pensar fora da caixinha.

 

Com a chegada da viatura no pátio da delegacia, um princípio de alvoroço se formou para recepcionar a detenta que ganharia com facilidade o concurso anual de beleza das penitenciárias do país. Em apenas um momento em que ela levantou a cabeça, enquanto era guiada pelo investigador, viu a fotógrafa sapatona disparar a sua máquina várias vezes. Teve a impressão de que ela passava a língua nos lábios por ter visto o casaco aberto expondo o seu corpo, que não pode vestir adequadamente por estar algemada. Peixoto deveria ter ao menos mandado trazer uma torta e refrigerantes para a festa, apesar de ter a impressão que era dela que aqueles ratos de tragédia estavam se alimentando.

 

— Isso aqui está me apertando - Reclamou das algemas para o brutamontes que a segurava, enquanto Donizete posava para fotos e dava entrevistas.

— Não se preocupe que enquanto você não for transferida para o presídio ficará numa cela só sua. Terá bastante espaço e conforto por uns dias. Aguente mais um pouco que a suíte presidencial já vai ser liberada - Ironizava ‘’a montanha’’, analisando os seios duros da traficante de cadáveres por mais tempo do que deveria.

 

Os hóspedes que haviam chegado antes, esticaram o pescoço pra ver quem era a celebridade escoltada, e apenas Jonas a reconheceu, com pesar. Preferia que eles tivessem trazido comida, já estava quase na hora do almoço, e não aquela marmita que ele já tinha se servido um par de vezes. O borracheiro interpelou o rapazola com rispidez, querendo saber quem era a mulher, no que este respondeu com detalhes a sua participação no esquema. A atenção que era toda para o seu alvo principal, agora era desviada para Patrícia. Por não conseguir dividir o seu ódio ao meio, dobrou-o de tamanho, enquanto via a vadia sendo acomodada na cela em frente. Tinha recuado um passo, e esperaria o momento certo para caminhar dois para frente. Voltou a sentar-se e a vestir a fantasia de derrotado para não levantar suspeitas, enquanto coçava a cabeça para se certificar que a agulha de costura ainda estava escondida debaixo da sua cabeleira black power. Tinha que fazer acontecer antes de ser transferido, pois a sua cabeça seria raspada no presídio.

 

Donizete tomou um susto ao entrar na sala do delegado. O homem parecia ter se engalfinhado com meia dúzia de gatos, tal a quantidade de arranhões no pescoço, que ele procurava disfarçar levantando a gola da camisa preta, lhe dando uma aparência meio gótica. Também estava de óculos escuros e neste caso apenas para não demonstrar vergonha. Era quase um vampiro acostumando-se com a claridade.

 

— Não me pergunte nada a respeito - Pediu, mandando o seu subordinado fechar a porta.

— Acho que nem precisa. Que danadinha, hein! Quem poderia imaginar? Daquele tamanho..- Comentou apenas para aborrecer ainda mais o homem.

— Trouxe a talzinha pelo jeito, né? - Perguntou, apenas para desviar do assunto.

— Eu já falhei em alguma missão, chefe?

— Eu poderia comentar sobre aquela vez lá na plantação de epadu que você perdeu o traficante de vista porque achou de enrolar umas folhinhas daquilo em um papel de seda e fumar. Também poderia jogar na sua conta aquela vez lá em…

— Ok, ok, já entendi. Todos somos seres humanos, certo?

— Agora estamos de acordo. A equipe já está pronta pra ir buscar os outros?

— Só vou preencher a papelada e caio fora atrás do resto.

 

Depois que o delegado soube que não havia ninguém no local, por medo do irmão psicopata atrapalhar a prisão da mulher, relaxou e começou a descrever com detalhes o seu coito no meio do mato com a leoa bípede. Com alguns floreios e exageros, fez Donizete imaginar Eros e Afrodite rolando agarrados num tapete de carvão em brasa para escapar de flechas fecundantes e purificadoras de Apolo. Um verdadeiro mito. De qualquer maneira, aquele cleptomaníaco já tinha conseguido ‘’roubar’’ a sua atenção.

 

—---

 

Já havia tomado a sua decisão. Nada mais existia com o que pudesse se importar. O seu pecado lhe cobrava um preço e ela estava disposta a pagá-lo. Não consertaria o estrago feito há tantos anos, mas aquela correção de rota faria com que obtivesse algum crédito. Não com o Divino, mas com o seu pequeno, a quem tanto mal imputou descartando-o como lixo. Nunca esteve tão certa do que tinha que fazer para tirar um pouco daquele peso que a fez uma meia mulher. Pela primeira vez estava se sentindo inteira. Seria o seu primeiro e último gesto como mãe de Aurélio, e apesar de saber que não iria para o céu, apenas queria ocupar o lugar que era dele no inferno.

 

Rogou pela misericórdia de Deus, ouvindo as batidas desesperadas na porta que havia trancado momentos antes. Escreveu algumas linhas para explicar o seu gesto. Retirou a seringa da embalagem e mergulhou a agulha no líquido marrom. Aproximou-se do cadáver pálido do filho e deu-lhe um beijo na face, encaixando o papel entre os seus dedos, que mais pareciam velas tortas. Arrastou uma maca vazia para perto da gaveta onde o corpo estava prostrado e subiu. Com alguma dificuldade e ajuda dos dentes, amarrou o torniquete de látex no antebraço. Deu tapinhas no pulso e não demorou para que uma veia graúda viesse à tona. Fez o sinal da cruz e pediu perdão. As batidas na porta se transformaram em chutes e gritos. Não conseguiu nas primeiras tentativas por medo de derrubarem a porta e a impedirem. Mas estava decidida a ir em frente. Sentiu o sangue quente correndo para dentro da seringa cheia de chocolate líquido e viscoso como óleo. Aos poucos, o êmbolo foi empurrando aquilo para dentro dela. Sentia na boca o mesmo gosto do bombom que comia no dia da morte do seu irmão. Deitou-se esperando que a porta aguentasse mais um pouco. Não sabia quanto tempo havia se passado, mas quando ouviu o ronco dos motores do hidroavião, sabia que o seu Alemão tinha finalmente vindo lhe buscar.

 

Quando por fim o reitor deu a ordem para arrombar a porta, o cenário já não era favorável, dentro e fora da morgue da universidade. Do lado de dentro, encontraram uma senhora já sem os sinais vitais deitada ao lado do cadáver do seu filho biológico, de mãos dadas a ele. Em uma breve missiva escrita às pressas, fazia um último pedido. Que o seu corpo substituísse o do filho, ao final do semestre, já que foram vítimas da mesma causa mortis. E que Aurélio tivesse um enterro digno na mesma cova a que era destinada a ele, no Cemitério do Jardim Bagdá, sobre o qual ela rezou debruçada e continha apenas um caixão recheado de tijolos. E fora da morgue, Donizete chegava para dar voz de prisão ao Reitor no momento em que faziam uma prece com os funcionários sobre o corpo de Agda. Quando soube o motivo da visita da polícia, reverteu de pronto a sua prece em praga, excomungando a velha, e pensando em ordenar jogar o defunto do filho no lixão.

 

Donizete também excomungou o Reitor porque não posaria para fotos ao seu lado no pátio da delegacia, já que teria que ficar no local da morte aguardando a polícia técnica para periciar o local e recolher os dois cadáveres, e também por designar outra equipe para ir atrás do coveiro no asilo onde tinha sido visto em meio a uma balbúrdia que estava ocorrendo por lá. Resignado, acionou o chefe pelo rádio explicando a situação. Em seguida, começou a tomar o depoimento dos presentes. A barrinha de chokito que tinha tirado do bolso do colete para enganar a fome, voltou intacta para o mesmo lugar depois de tomar conhecimento daquele caso bizarro.

 

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— Sempre foi um menino rebelde, mas nunca me faltou com o respeito e nunca me dirigiu a palavra sem que eu o autorizasse a falar - Explicava o mestre de capoeira aos jornalistas, deitado em uma maca, com os socorristas impacientes para lhe enfiarem no fundo da ambulância.

— O que o senhor acha que pode ter ocorrido então, para que ele chegasse a esse ponto? - Questionou uma repórter.

— Vivemos tempos difíceis em que.. - Começou a falar, logo sendo interrompido pelas duas recém chegadas.

— Tempo difícil vai enfrentar é você se não entrar logo aí nessa ambulância pra ver o que tem nesse ombro! - Rugiu Janete, tomando conta da situação e enxotando os microfones com as mãos.

 

Os minutos de fama do professor foram interrompidos da melhor maneira possível. Janete e Vilma tinham ido ali para vê-lo. É claro que gostaria que apenas uma delas estivesse por perto, mas quem mexia as peças do tabuleiro eram os seus orixás. Beijou sua guia pendurada no pescoço, enquanto o colocavam na traseira do veículo de socorro. Ficou decepcionado quando disseram que apenas uma poderia acompanhá-lo, e logo o seu sonho de começar um harém foi por terra. Lamentou por não poder escolher a sua companhia, mas também ficou satisfeito quando viu Janete lhe sorrir e tascar um beijo na sua boca. De esguelha, espiou Vilma para ver se havia uma nesga de ciúme que fosse. Mas só viu preocupação quando ela falou.

 

— Nete, vou ficar por aqui - Disse, olhando para o bosque, achando ter visto um rosto conhecido.

— Tem certeza, amiga?

— Toda a certeza do mundo.

 

Acenou quando a ambulância arrancou com a sua sirene estridente, e começou a caminhar em direção às duas silhuetas que corriam na direção oposta. Uma delas, ela tinha quase certeza que era dele.


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