JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 39
Capítulo 39




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Seu coração acelerado não lhe trazia boas notícias. A última vez que teve uma taquicardia ficou apagado por vinte e quatro horas. Talvez tenha sido o esforço de pular mais muros do que o recomendado para um só dia na sua idade, ou a descarga de adrenalina, ou ainda, o ódio que nutria no âmago do ser pela figura desprezível. Sua visão escureceu e preferiu recuar um pouco, procurando um lugar para se abrigar caso perdesse os sentidos, ao invés de aparecer vulnerável em cena. Havia uma cortina plástica que fechava a parte baixa da pia da cozinha, onde havia apenas um botijão de gás. Espremeu-se ali, tentando manter a respiração controlada e pedindo a Deus que houvesse tempo para consumar a sua vingança. Mas como resultado imediato do seu pedido, prontamente negado pelo Onipotente, sentiu os primeiros sinais de um acidente vascular cerebral a lhe repuxar a língua para dentro da boca, e uma dormência no braço e perna direitos. Ainda consciente, refez o pedido, apenas rogando por compaixão pela filha e a mulher distante dali, deixando de lado a desforra, e lutando para poder sair dali com vida e andando com as próprias pernas. Por ora precisava oxigenar o cérebro e respirar fundo até conseguir reunir condições de pedir ajuda. O resto que se matassem uns aos outros. Igualmente refez aquele pensamento antes que o Onisciente aumentasse a quantidade de sequelas que lhe seriam imputadas depois daquela rebelião arterial.

 

Diante da sua luta para permanecer vivo, pensou ter ouvido um tiro, ou seriam as suas têmporas latejando? Abria e fechava as mãos e fazia manobras circulares com os pés, tentando manter a calma. Ele sabia que se entrasse em pânico, poderia terminar os seus dias ali mesmo, debaixo de um sifão velho e furado, na cozinha de um asilo. O burburinho dos populares o manteve concentrado. Mesmo na penumbra do seu esconderijo mantinha os olhos abertos e quase não piscava, por medo de não abrirem mais. Ouviu alguém sussurrando do lado de fora, pela janela onde havia pulado momentos antes. Abriu a boca, mas não conseguia responder, emitindo apenas grunhidos. Com o pé que ainda conseguia ter domínio, empurrou o botijão de gás até que caísse no chão. Aquilo seria uma jogada arriscada, pois poderia tanto atrair alguém lá fora, ou Montila. O baque seco do pesado recipiente metálico no chão parece ter causado o efeito desejado. Alguém estava tentando pular para dentro da cozinha.

 

— Você consegue ver alguma coisa? - O coveiro perguntou a Justino, que deixou Abdias para trás, preocupado em dar notícias a Samira, que tinha ficado com as crianças, terminando por esquecer de informar o amigo sobre o sumiço de Cláudia.

— Sombras se movendo lá no fim do corredor. Aqui parece ser onde fazem a comida. Tem alguém batendo em uma porta lá no meio. Parece ser mais de uma pessoa pelas batidas e gritos. E.. - Explicava Justino o que via, quando pensou ter ouvido chutes vindos dali mesmo da cozinha. Cândido chutava com o pé que ainda funcionava, na parte de baixo da pia, fazendo com que algumas panelas pulassem sobre o granito, chamando a atenção de ambos.

— Tem alguém aqui logo abaixo. Acabei de ver a mão abanando, como se estivesse agachado ou caído no chão. Pode ser Cândido. Vou entrar! - Decidiu, ignorando os protestos do coveiro, que deu de ombros, avisando que ficaria montando guarda, sempre olhando para o muro, afinal tinham se aproveitado da distração do tiro disparado pelo qual os guardas rumaram para a frente do asilo, e pularam para dentro.

 

Com a agilidade de um capoeirista, esgueirou-se pela brecha da janela quebrada sem nem encostar nos cacos e alcançou o chão com os dois pés cravados como um ginasta após finalizar a sua série. Assim que virou de costas para fazer um gesto de positivo para Balduíno, que enfiava a cabeça pelo buraco para ver se estava tudo bem, notou a presença de Cândido embaixo da pia com o rosto retorcido e sacudindo os braços e os pés como se fosse um ataque epilético. O homem pedia socorro com os olhos.

 

— Jesus, vou precisar da sua ajuda, rápido! - Pediu a Balduíno, enquanto puxava o corpo semi desfalecido do ex-comerciante, que perdia as forças.

— Vamos ter que tirar ele por outra saída! Por aqui não dá! Vamos ter que enfrentar aquele maldito mesmo desarmados - Praguejou o coveiro, enfiando toda a sua anatomia comprida e magra como uma minhoca pelo buraco da janela quebrada.

Parece que tem gente presa naquela porta - Pontuou Justino, apontando para o banheiro no início do corredor, enquanto as sombras dançavam na recepção poucos metros adiante. 

 

Havia brados vindos da multidão, gritos de incitação, helicópteros voando em rasantes, alguma voz de comando em um megafone que tentava mediar a situação sem êxito, e um aparelho de tevê ligado no volume máximo na recepção para Montila entender o alcance do seu desatino. Jamais poderiam ouvi-los dali. O coveiro levantou as pálpebras do enfermo e viu que a situação era muito grave. Balançou a cabeça de lado desviando o olhar para Justino, que não estava tão habituado com a morte como ele.

 

——

 

Àquela altura, Madalena já devia estar disparando palavras de baixo calão devido a sua demora, tendo que servir às mesas sozinha, enquanto o filho cuidava das panelas na cozinha. O maior sinal daquilo eram as suas orelhas que estavam tão quentes quanto o clima dali. Trancou o carro e decidiu ir atrás de Balduíno que tinha sumido no meio da multidão. Precisava de outro motorista para tirar os dois veículos do meio daquele banzé. Caminhou na direção do bosque, sempre olhando para trás, com medo de lhe roubarem o seu possante de estimação.

 

Ao ver o cordão de isolamento feito pela polícia, começou a bolar uma mentira para poder ultrapassá-lo. Antes que a mentira estivesse pronta, ouviu um estampido vindo de dentro do asilo e um clamor da multidão. Arrepiou-se e virou a cabeça para a mesma direção que todos olhavam. Foi abrindo passagem como podia pelo meio do povo para conseguir ver o que tinha acontecido. A polícia tentava conter o tumulto, e chegou a jogar uma bomba de efeito moral, o que fez algumas pessoas recuarem tapando os narizes e abrindo a passagem. Ao chegar próximo de onde o corpo de um homem estava caído, espremeu os olhos míopes, ajeitando os óculos sobre o nariz para descobrir quem era. O homem em trajes sociais que se contorcia no chão, era o mestre de capoeira, que tentou um movimento de aproximação, mesmo sob a mira do revólver do próprio aluno. Correu para perto da cena, avisando aos policiais que era um conhecido seu. Felizmente a bala passou-lhe de raspão pelo ombro, possibilitando-o levantar-se com a ajuda do dono do botequim, que logo se apavorou ao perceber que o seu carro e o do filho estavam sendo rebocados por dois guinchos. Apavorado com a ideia de um prejuízo grande, deixou o homem ferido à mercê de outra alma caridosa.

 

Apresentou-se ainda sem fôlego como proprietário legítimo dos dois automóveis para um guarda que fazia anotações e nem lhe deu atenção. Pensando em atrair os olhares do policial de trânsito, enfiou a mão no bolso e puxou de lá uma nota de alto valor, olhando para os lados para se certificar que ninguém estava testemunhando o ato. A autoridade ao confirmar a tentativa de suborno lhe deu voz de prisão, dando início a outro tumulto. Como as coisas voltaram a ficar calmas na porta do asilo, as câmeras de televisão se voltaram para o alarido, com os repórteres entrando ao vivo nos seus canais. Madalena que enxugava as mãos no avental, assistiu à detenção do marido, sem entender o que estava se passando, mas disparando impropérios dirigidos a Desidério, que foi jogado na viatura algemado, com os microfones querendo chegar perto, mas impedidos pela polícia.

 

— Desidériôôôô! Seu filho de uma Inácia! Beócio! Mocorongo! Palerma! Patife duma figa! Sacripanta! Aquele filho da mãe agora virou socorrista?

 

Os clientes se divertiam tanto com as reações teatrais da proprietária, que esqueceram do jogo que já andava pela metade.

 

Janice levantou da cadeira para se aproximar do aparelho de televisão e confirmou a identidade do homem deitado no chão. Voltou para perto de Vilma, abriu a bolsa e deixou umas notas sobre a mesa.

 

— Preciso ver como ele está, minha amiga. É Tuta mesmo. Você vem comigo? - Perguntou, sentindo-se culpada, sabendo o quanto fora perdulária nos seus pensamentos a respeito do professor, que tinha sido bastante cavalheiro com ela.

— Claro que sim.

— Não sei o que aquele louco foi fazer no meio daquilo tudo, mas não posso deixá-lo lá sangrando e fingir que não está acontecendo nada.

— Parece que Montila perdeu o pouco de juízo que lhe restava - Comentou Vilma, colocando a bolsa no ombro e avisando a Dona Madalena que o valor da conta estava sobre a mesa.

— Vamos de táxi que chegamos mais rápido.

 

—---

 

— Nós estamos brincando de mocinho e bandido? - Perguntou Dinorá com um ar de quem estava se divertindo, enquanto a arma que estava apontada para ela, agora era direcionada para um senhor distinto que agitava as mãos ao longe, pedindo para se aproximar.

— Não chegue perto, Mestre! - Alertou ao homem, que a despeito das ameaças do aluno e do protesto dos policiais dos quais conseguiu se desvencilhar, continuou a caminhar.

— Eu fiz uma pergunta, meu rapaz. Porque se aquele homem que está se aproximando não estiver do nosso lado, você precisa atirar. Não lembro de ter me divertido tanto assim! - Dizia, em meio aos devaneios típicos do seu coquetel de enfermidades.

— Você deve ser doida mesmo. Nós não estamos do mesmo lado! Vou repetir! Eu vim aqui para me vingar do que você fez ao meu pai!

— Eu não conheço nem você, nem o seu pai, mas por favor preste atenção, senão a gente pode se dar mal. Eu não gosto de perder. Fique atento!

— Eu já perdi a minha paciência com gente que não fala coisa com coisa. Não se aproxime ou eu vou atirar! - Avisou pela última vez ao homem, que não se intimidou e continuou caminhando devagar com as mãos levantadas, procurando olhar para as câmeras das emissoras de televisão com o seu melhor sorriso.

 

Dinorá acompanhou, fascinada, o rapaz apertar o gatilho, com a arma empunhada a dois palmos acima da sua cabeça. Sua memória vagava em meio a imagens em preto e branco dos filmes antigos de faroeste. Estava finalmente matando a curiosidade de saber o que se passava dentro daquela caixa de madeira onde moravam tantos vilões e mocinhos, que a faziam rir e chorar ao mesmo tempo.

 

— Na mosca, meu rapaz! - Festejou a velha, ao ver o homem tombar no chão, ainda a uma boa distância deles.

 

Montila puxou a cadeira de rodas para trás, recuando para sair do campo de visão dos policiais que evitaram revidar o disparo. Fechou a porta e voltou para o interior do asilo, sem saber se tinha ferido de morte o seu professor. Por aquilo, sairia dali direto para uma instituição de recuperação para menores infratores. E aquela ideia não lhe descia pela garganta de jeito nenhum.

 

—--

 

— Acabei de vê-lo. Ele está em companhia de uma pessoa que conheço, depois do cordão de isolamento. Pediu pra dizer que tudo vai terminar bem e para você não se aproximar porque o negócio pode ficar ainda mais perigos.. - Disse para Samira, que estava sentada dentro do carro, com as crianças adormecidas no banco de trás.

 

Antes do final do recado, Abdias e a filha ouviram o barulho do revólver sendo disparado e a multidão se dispersando atabalhoada como um estouro de boiada. As crianças acordaram assustadas e começaram a chorar. Samira puxou Abdias para dentro do carro, subiu os vidros e trancaram as portas. O farmacêutico ligou o carro, mas não havia como sair dali sem atropelar muitas pessoas. Começou a buzinar, mas ela não se fazia ouvir diante do volume da gritaria. Pessoas estavam sendo esmagadas na lataria do carro, umas subiram no capô, e mesmo uma criança tinha sido arremessada pelo pai para o teto do veículo. Eles estavam literalmente cercados por uma parede humana, que não sabia que direção seguir, não sabia quem era o alvo do disparo, não sabia nem mesmo o que estavam fazendo ali. Conseguiram puxar as crianças para os bancos dianteiros pouco antes de uma pedra estilhaçar um dos vidros de trás.


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