JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 38
Capítulo 38




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Registrar aquela ocorrência tinha sido um desafio para o escrivão. Houve necessidade de se recorrer a uma escola de libras para suprir as necessidades que aquele depoimento demandava. No princípio ele providenciou caneta e papel, mas a testemunha estava atordoada demais para conseguir escrever, já que tremia da cabeça aos pés, com os olhos arregalados quase saltando das órbitas. Parecia ter sofrido um ataque de bichos papões, mas pelo pouco que foi absorvido pelos atendentes de plantão, o caso era sobre dois cadáveres encontrados na sala da casa de um primo. Pairavam no ar várias dúvidas sobre invasão de propriedade privada, adultério e, claro, um suposto duplo homicídio.

 

Além da deficiência da depoente, havia mais pedras no caminho. O delegado estava sendo aguardado, mas estava trancado com o investigador chefe comemorando o ato de bravura do mesmo. Talvez até o estado lhe desse uma comenda em caráter excepcional por heroísmo, tal eram os efusivos apupos e tapas nas costas. A despeito de Donizete ter lançado a modalidade de captura por atacado disparando apenas um tiro, precisavam seguir os ritos do ambiente judicial. O odor de uísque exalava pelas frestas da porta, e o escrivão borrifava no ar um produto que cheirava a alfazema para acalmar as vítimas que chegavam para prestar queixa. Os policiais não estavam tão preocupados com o estado de choque da mudinha, tanto quanto estavam com a condição ébria com a qual o delegado atravessaria aquela porta para atender os queixumes dos padecentes. O pior era ter que servir como voz da consciência da santidade máxima da circunscrição para lembrar soprando-lhe aos ouvidos os artigos do código penal quando lhe dava branco.

 

Ela tinha conseguido o efeito desejado, e as primeiras impressões da sua atuação estavam registradas nos gestos de caridade dos policiais, até então muito solícitos com uma jovem mulher surda muda, talvez mais pela minissaia de vedete com estampa imitando couro de cascavel que vestia, do que pela sua deficiência. Ela fazia o tipo mignon, com tudo no lugar, um mulherão em escala menor. O escrivão precisou manter o controle para não colocá-la no colo, tal o desconsolo visto. A quantidade de copos com água que chegavam até ela era como se tivesse sido resgatada desidratada do deserto. Evitou escrever naquelas folhas em branco para não produzir provas contra si, e estava aliviada pelo cheiro de álcool e tabaco que pairava ali, para que o odor do seu caráter de mulher ordinária não chamasse a atenção. Ela não era uma mulher barata, e cada minuto de uso do seu corpo pelo primo de quem queria se vingar, seria cobrado. O acaso já tinha lhe feito um favor com aqueles dois patetas mortos. Não queria demorar muito por causa de Sultão. Foi a muito custo que ela o manteve calmo com a presença de Cândido. Não fosse as fraldas que comprava para embeber com o cheiro das suas partes íntimas, o pastor alemão teria devorado o homem por ciúmes. E por abstinência das suas carnes.

 

Não poderia de maneira alguma dar ciência ao delegado de que a sua tia, mãe do dono da casa que abrigava os dois mortos, foi convencida pelo seu primogênito a atestar na justiça que a sua irmã, que sofria de convulsões recorrentes, era louca. Aquilo retirou a sua parte na herança da mãe morta e ceifou os sonhos da menina defeituosa de nascença. A polícia poderia interpretar aquilo como desejo de vingança. A moça miúda e inofensiva que não podia ouvir e nem falar, era apenas uma prima distante levando um bolo de fubá para um parente que não via há muito tempo. O presente que tinha derrubado de propósito no chão da sala estava fazendo falta ali na delegacia. Sua barriga roncava, e as opções eram os espetinhos de carne da carrocinha lá fora que cheiravam a incineração de cachorro morto, ou um convite do delegado para degustar algo em um lugar decente que pudesse receber toda a sua beleza e encanto, já que a sua fome era um moto perpétuo.

 

A aparição das duas figuras de rosto afogueado já era esperado a qualquer momento, e quando a porta se abriu, caso alguém estivesse acendendo um cigarro naquele instante, a delegacia poderia ter ido pelos ares devido a contaminação do ar pelo álcool que se expandiu pelo ambiente. O investigador disse que daria uma passada na cela para fazer uma visita aos cativos e talvez tirar um retrato com a dupla atrás das grades para enviar à redação dos jornais. O delegado fixou seu olhar na mudinha, que o escrivão interpretou como uma flechada certeira do cupido. O sorriso da moça miúda operou o milagre de trazê-la à sobriedade num estalar de dedos.

 

— Essa é a moça, Pereira? - Perguntou, sem se virar para o escrivão.

— Sim, senhor. A pessoa que entende os sinais está aí fora.

— Pois vá chamar - Ordenou, aproximando-se dela e cumprimentando com um beijo na mão, o que fez a moça lhe dar o seu melhor sorriso.

 

Passou-se um minuto inteiro, e o encantamento ia se tornando constrangimento por não saber lidar com a deficiência daquela mulher cintilante. Seus cabelos negros caíam apenas até os ombros, mas eram os olhos cor de mel que gritavam por atenção. A boca delicada emoldurava os dentes perfeitos, e as covinhas nos cantos da boca se pronunciavam quando sorria. Os seios e as nádegas eram a fartura que lhe faltou na altura. Mas os olhares comilões do delegado concluíram que não fazia falta alguma. O silêncio foi interrompido com a chegada de outra baixinha, mas ao contrário da primeira, tinha uma cara de carranca e era magra como uma vaca na sêca. A única coisa que lhe chamava a atenção eram as mãos de dedos longos e unhas bem cuidadas, afinal era o seu material de trabalho. A mulher era tradutora de libras. Em seguida, a mudinha começou a se comunicar gesticulando na direção da sua tradutora, que por sua vez verbalizava com o delegado e o escrivão, que tomava notas.

 

— …de um primo que não via há muitos anos. Levei um bolo de fubá e lembranças da minha mãe…

— …um bom tempo aguardando alguém atender a porta, daí bati mais forte porque eu não posso falar…

— …me assustei quando percebi que a porta estava apenas encostada e entrei fazendo barulho pra chamar a atenção de alguém…

— …foi quando vi os dois caídos no sofá, quase abraçados, sobre uma poça de sangue que manchava o sofá branco…deixei o bolo cair…

— …parecia que foram mortos por tiros porque havia buracos na cabeça e miolos espalhados na parede…

 

Nessa parte do depoimento o delegado mandou uma equipe ao local imediatamente para proteger a cena do suposto crime. Depois de mais algumas perguntas sobre o tal primo, bem como ela tinha deixado a casa depois do susto, e se conhecia os homens mortos, pediu que ela deixasse anotado o seu endereço para qualquer intercorrência. Aquilo não era uma queixa corriqueira e algumas regras podiam ser alteradas ao bel prazer da autoridade de plantão, por isso pediu para levá-la em casa alegando proteção ao estado emocional da depoente, como se ela não estivesse imbuída em seduzi-lo. Pelo retrovisor viu a tradutora carrancuda agitando as mãos. Talvez estivesse pedindo uma carona ou fosse apenas um singelo adeus na linguagem dos surdos mudos, como poderia saber? Na dúvida, pressionou o acelerador e fingiu que nada viu, tendo como único objeto de sua atenção aquela baixinha que lhe despertava os instintos mais primitivos. Era imperativo subtrair algo pessoal dela para uma apreciação posterior, quando estivesse sozinho.

 

Não foram muito além da estrada de terra que levava ao começo do asfalto da rodovia, que por sua vez, levava à casa dela. Esticou o pescoço para fora da janela da viatura e viu o pneu arriado. Bem que aquela tradutora podia ter avisado sobre o pneu murcho com todas as letras e vibração das suas cordas vocais ao invés de acenar, apesar de conduzir mais preocupado em se pavonear sem notar que viajava numa condição insegura. ‘’Inês era morta’’, e um jeito precisava ser dado, de preferência com uma saída à Francesa, para que não revelasse a sua falta de habilidade com apetrechos mecânicos. Acionou o rádio e convocou subalternos para o trabalho sujo que só deveriam chegar ao local em pelo menos meia hora, enquanto explorava os arredores, citando o nome científico da vegetação da beira da estrada, que ele inventava na hora. Parecia não ter impressionado a moça, que apontava para um caminho aberto no mato, com peças de carro espalhados no chão.

 

A princípio achou se tratar de um local para desmanche de carros roubados, mas ao começar a seguir a trilha se deparou com um veículo incendiado de ponta cabeça. Zuleide o seguia a uma curta distância, se abaixando para pegar um relógio escondido atrás de uma touceira de capim, cuja pulseira reluzente lhe era familiar. Gravado na carcaça estava o nome completo do seu avô. Começou a processar as informações de dias antes e concluiu que ali era a cena do acidente que o primo tinha relatado ao bater na sua porta. Guardou o objeto na bolsa. Na placa amassada e calcinada, próximo aos destroços, ainda podia se ver as letras iniciais do seu nome..CS. Chutou-a discretamente para longe da carcaça para que o delegado, abaixado com metade do corpo no interior do veículo, não visse e a associasse de alguma maneira àquilo. Antes que algo mais fosse encontrado que pudesse identificar o motorista, ela abaixou o bustiê e deixou os seus peitos fartos à mostra, tocando nas costas dele para que se virasse.

 

Os últimos seios expostos que o delegado tinha visto ao vivo, foi no carnaval do ano anterior, quando teve que dar voz de prisão a uma foliã por atentado ao pudor. Neste caso, ao invés de repreendê-la, apenas abriu a boca para abarcar o que pudesse daquele portento, enquanto tirava a camisa de mangas compridas e forrava o chão para fazê-la deitar. O coito-embate se sucedeu entre um homem com abstinência de libertinagem, e uma mulher que tinha sido talhada para o ofício, pois só conseguia emitir um ruído pela boca.. Gemidos. Zuleide mordia os lábios do delegado até fazê-lo sangrar, enquanto suas unhas afiadas como estilete marcavam trilhas paralelas de arranhões pelos braços, costas e pescoço. Se houvesse algum bicho selvagem nas redondezas, talvez não ousasse chegar perto daqueles animais de violência superior. Em poucos minutos estavam sujos dos próprios fluidos, da terra por onde rolaram, e de sangue que arrancaram um do outro, e resíduos de pele embaixo das unhas.

 

Jamais haveria tempo para se recompor quando a viatura de apoio encostou e dois policiais entraram de arma em punho, acreditando que o chefe poderia estar metido em algum tipo de encrenca. Não imaginavam encontrar aqueles dois no estado parecido em que alguém deveria ficar depois que um homem bomba explodisse próximo.

 

— Para onde ela correu? - Gritou o delegado, olhando com firmeza para os seus subalternos, enquanto subia as calças, barrando a visão da moça miúda que tentava se recompor, e já sacando a arma.

— Ela quem, Doutor?

— A onça!

 

—-

 

Pediu ao motorista que desviasse do caminho para rever o local onde nasceu e cresceu. Nada indicava que teria sucesso na vida, já que as oportunidades para uma família pobre com tantos filhos eram próximas a zero. Enquanto o seu pai gastava o pouco que ganhava com amantes, sua mãe fazia marmitas para vender aos peões de obras de construção, e guardava o que podia para pagar as aulas de reforço para os filhos, que estudavam nas únicas escolas que podia frequentar. As públicas. Em mais de uma ocasião, pegou-a contando moedas e chorando por ainda faltar dinheiro para a educação das crianças, há poucos dias de ter que pagar a professora. Quando isso ocorria, ela pegava um ônibus até o centro da cidade e pedia esmolas às escondidas. Se hoje era um juiz respeitado pelos seus pares, se devia apenas à resiliência de sua mãe, cujo prêmio maior era ver cada um dos seus filhos lhe entregar seus diplomas depois de anos de esforço.

 

A certa altura ficou confuso com o endereço que não visitava há tanto tempo, mas o seu motorista confirmou que estavam na frente do número correto. Ele saiu do veículo preto com placa da mesma cor e olhou desolado os escombros da casa destruída pelo fogo. Não conseguia entender como ocorrera, mas sabia quem era o culpado. Se toda família tinha a sua ovelha negra, aquele infeliz valia por um rebanho inteiro. Por onde andava deixava um rastro de destruição. Pensou seriamente em mandá-lo para uma instituição psiquiátrica. Quem sabe lá, depois de uns choques elétricos ele pudesse se acalmar, apesar de achar no seu íntimo que Rogério só conseguiria esse feito depois de lobotomizado.

 

Entrou no veículo e deu ordem para seguir em frente, com destino ao inferno que o seu irmão tinha armado. Daria um basta naquele furdunço e colocaria freios naquela sanha ambulante de confusão. Pediu à sua secretária, que estava sentada ao seu lado no banco traseiro, que o maquiasse. Sabia que apareceria na televisão, solicitado para alguma entrevista. O palco do inferno estava armado, e se Rogério pudesse lhe servir para algo útil, precisava apenas se deixar amordaçar por ele sem ferir ninguém, e abocanhar a vaga para desembargador como um paladino da paz. Deixaria para começar a sua luta contra a escravidão nas carvoarias mais para frente. O Nobel podia esperar. Recostou-se no banco de olhos fechados com aquele pensamento a lhe servir de anestésico. O Nobel.


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