JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 37
Capítulo 37




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Por padrão ele já teria dado voz de prisão ao seu alvo, mas ao perceber a proporção que aquela tocaia estava ganhando, decidiu comprar uma passagem no mesmo ônibus. O delegado tinha lhe pedido que fosse rápido e preciso como de costume, mas pela primeira vez estava na cola de dois homens procurados. Sem tempo para pedir ajuda, sob pena de perdê-los de vista, escondeu a arma dentro da calça e procurou sentar-se na última fileira de poltronas. De uma coisa ele já tinha certeza, Zé Osvaldo estava caçando o rapaz do necrotério pelo destino que dera ao corpo do seu filho, e ele não costumava falhar nos seus contratos, ainda mais se tratando de uma vendeta pessoal. Havia anos que a polícia caçava o matador travestido de borracheiro, que já havia feito duas dezenas de vítimas, com as suas perversas balas dum dum que estraçalhava o corpo da vítima ao se expandir após o impacto. Era sabido que todos os assassinados eram o restolho da sociedade, mas a lei qualificava como homicídio doloso, da mesma maneira. Se ele não impedisse, o tal Jonas seria transformado em uma amálgama de vísceras na beira da estrada em poucas horas.

 

Podia se dar ao luxo de não reportar seus passos a cada meia hora à sua base, já que o Delegado era um parceiro da velha guarda. Além do mais, era o único que sabia dos segredos do xerifão que jogava atrás das grades ladrões de sabonete, enquanto ele próprio subtraia os pertences dos detidos, lacrados como provas materiais, e que nunca chegavam ao departamento de perícia criminal. A vida de um investigador podia ser dura, mas a dele incluía poder passar dias ausentes, e voltar sem dar explicações e sem descontos no salário. Se aqueles dois fossem descer apenas na cidade a qual o ônibus se destinava, talvez precisasse cobrar algumas diárias à polícia. Colocou a mão no bolso para se certificar que o dinheiro que arrancou de um dos seus informantes estava ali. Só faltava ver os seus dividendos, frutos de extorsão, serem roubados. Aquilo devia dar para comer e se hospedar em alguma espelunca, caso fosse necessário.

 

Quando teve a ideia de se levantar para ir ao banheiro, o matador o fez antes, fazendo com que ele baixasse a aba do boné no rosto e fingisse que estava dormindo para evitar ser encarado e reconhecido posteriormente. O porte do ex-borracheiro era de um boxeador peso pesado, e a sua mão que mais parecia uma bigorna, fechou a porta do cubículo com uma força exagerada demais para um movimento tão simples. Se questionou como aquele membro descomunal manejava tão bem um revólver, já que o orifício onde se localizava o gatilho lhe parecia exíguo demais para caber dedos tão avantajados. Como um bom investigador, identificou alguns sons lá dentro. A braguilha da calça sendo aberta, o jato de urina encontrando o fundo do vaso sanitário, um suspiro de alívio, a braguilha sendo fechada e um tambor de revólver sendo girado. Ele estava checando as balas. Podia até estar lambendo a ponta delas, de uma por uma. Podia estar fazendo uma oração ao santo protetor dos matadores de aluguel. Podia até estar planejando o atentado ali mesmo. Mas aquilo contrariava o seu modus operandi, estudado à exaustão por Donizete. Zé Osvaldo só atirava depois de olhar nos olhos da vítima, e nunca pelas costas, nem antes de decifrar o que se passava na cabeça dos seus alvos quando o encaravam. Só aí ele encostava o cano na testa e andava cinco passos de ré, confundindo a vítima que ficava paralisada pensando que talvez ele tivesse desistido de matá-la. Tudo aquilo para que o sangue não espirrasse nele. Já bastava a sujeira impregnada na sua pele por ser borracheiro.

 

A análise das câmeras do IML também traçavam um perfil de psicopata no guardião das geladeiras da morte. Jonas já vinha sendo investigado por manter relações sexuais dentro do necrotério com mulheres vivas e mortas. Uma delas, vivinha da silva, chamou a atenção de Donizete, por se tratar de um elo importante que culminou por desvendar o esquema de venda dos corpos. Uma coisa era certa, o rapaz trepava melhor com as defuntas. Não se podia ver satisfação no rosto arroxeado das mortas, mas se a sua alma pairasse no ambiente no exato momento da curra, rumaria satisfeita para o paraíso.

 

A porta do banheiro se abriu com tamanha violência, que os dois caipiras que viajavam nas poltronas vizinhas, acordaram de sobressalto segurando os chapéus, achando que o ônibus tinha caído numa ribanceira. Depois que Zé Osvaldo usou o mictório, todos que lhe sucederam tinham que segurar a porta com o pé, porque o trinco tinha voado para dentro do vaso e a porta empenado. O seu vizinho de poltrona era um ser de porte mirrado que não tinha para onde ir porque todos os assentos estavam ocupados. Havia uma senhora ao lado dele com um terço na mão, cujos lábios se mexiam numa reza. Talvez fosse para que a cidade de desembarque do magrelo fosse a próxima e um flagelo maior fosse evitado.

 

A primeira parada se deu em um ponto ermo de qualquer civilização, com o sol do meio dia a castigar-lhes os crânios. Era apenas um bar na beira da estrada que servia uns bifes duros que pareciam ter sido passados no ferro de engomar. Enquanto o arroz vinha em blocos, se contava os caroços de feijão para cada meio litro de caldo ralo. A comida dali fazia tão pouco sucesso que a fila do banheiro era maior que a do bandejão. Donizete ficou de olho na dupla. Passou a mão na barriga enquanto via um casal desembrulhar uma panela cheia de farofa de carne seca ao seu lado. Comprou dois pães sem nada dentro, abriu-os ao meio e recheou com molho de pimenta, sob os olhares curiosos da atendente de seios inexistentes que lhe lançou um olhar de quem queria saber o porquê daquilo. Ele queria explicar que agredir o estômago e o palato era apenas uma tática de guerrilha para perder a fome no campo de batalha, mas a moça era tão magra que talvez nem tivesse o tal órgão. Ou ciscasse apenas um pouco de alpiste de vez em quando.

 

Em dado momento percebeu o olhar fixo de Zé Osvaldo no seu alvo, enquanto pousava o garfo em um prato de macarrão mergulhado em um molho oleoso, que levava à boca em grandes bocados. Aquele homem mantinha até mesmo as bactérias do estômago em cativeiro. Jonas, por sua vez, mordia um quibe que deixou pendurado na boca como se fosse um charuto, enquanto buscava moedas no bolso para pagá-lo. Tudo indicava que estava sem grana para uma fuga mais elaborada, o que significava que buscaria ajuda com pessoas próximas ou parentes na sua cidade natal. Era uma diferença significativa entre os dois procurados. Um matava por dinheiro sem prazer algum, e o outro sentia prazer gratuito ao se relacionar com a morte, mas ambos eram seres doentes.

 

Após buzinadas insistentes, o motorista conseguiu arrebanhar seus passageiros de volta para o ônibus e Donizete fez questão de entrar antes de todos para não topar de frente com um dos dois já sentados. Ficou atento e relaxou apenas quando se certificou que ambos estavam acomodados em suas poltronas. A próxima parada seria ao cair da noite, quando esperava que algo acontecesse por parte do matador, já que o outro parecia apenas querer chegar ao seu destino. Quanto a ele, manteria uma distância segura e abriria fogo se necessário para manter os dois vivos e entregá-los à justiça. Esperava que não fosse necessário liquidar qualquer um deles por resistência à prisão. 

 

Precisava usar aquelas algemas que estavam incomodando no bolso traseiro da calça antes que lhe ferissem de morte. Cobria-as com uma blusa dois tamanhos maior que o normal para sua estatura, como era prática na sua profissão, e assim conseguia uma boa camuflagem, inclusive para a arma que portava. Mas o fato de transportar aquelas quatro argolas de aço se devia tão somente à sorte. Ou a Ivete, sua amante, que gostava de levar umas chicotadas enquanto estava presa à cabeceira da cama, com quem tinha copulado por toda a noite. Agradeceu em silêncio a sua manteúda, enquanto cheirava os dedos, que nunca lavava quando  lhe explorava os orifícios encharcados. Tudo naquela relação era fora da curva, principalmente porque a conheceu durante o caso do pai dela, um vereador que tinha se enforcado em um poste. O ladrão de dinheiro público tinha fraudado uma licitação para a troca dos postes de iluminação da sua cidade e morreu alegando inocência, pendurado em um deles. Deixou duas filhas gêmeas, uma ele comia, e a outra era cega, que de vez em quando tocava piano na sua sala enquanto ele mandava ver com a outra no sofá. Adorava música clássica, e era como sentir prazer com a mesma mulher de duas maneiras diferentes, ao mesmo tempo. O piano tinha se mostrado um ótimo investimento.

 

Dobrou a atenção quando a noite caiu e entraram em uma estrada de terra, onde haveria uma parada para jantar. Seu trabalho era metade atenção, metade paciência. Só daria o bote quando as presas estivessem vulneráveis. Não tinha nenhum plano, apenas ficaria atento para quando a oportunidade surgisse. Seus métodos eram questionáveis, mas eram eficazes e traziam retorno à sociedade. Suas capturas sempre traziam lesões aos capturados, que nunca sabiam explicar ao delegado como conseguiram tantas escoriações. Aquela amnésia tinha um nome. Donizete. E assim era a política de boa convivência entre mocinhos e bandidos.

 

Enquanto uns mordiam hambúrgueres, outros fumavam cigarros. Aquela parada era mais demorada para permitir que alguns passageiros pudessem fazer uma higiene mais minuciosa. Foi pego desprevenido quando Jonas entrou no banheiro com uma toalha no ombro, seguido discretamente pelo matador. Sem opção, seguiu a dupla e se certificou que ambos estavam em suas cabines com os chuveiros ligados. Estava certo que o rapaz estava debaixo da água, mas Zé Osvaldo que tinha escolhido uma cabine vizinha de caso pensado, apenas deixava a água escorrer. Precisava fazer alguma coisa. Era provável que ali se transformasse na cena de um crime em alguns minutos. Por instinto, puxou a toalha de Jonas que estava pendurada na porta, o que resultou em reclamações do rapaz e fez o matador descer do vaso sanitário, onde tinha subido para ter acesso ao seu alvo no banheiro vizinho, por cima da parede divisória.

 

— Mas que merda! Devolva a minha toalha!

 

Aconteceu tudo muito rápido. Jonas saiu nu do cubículo e se deparou com Donizete girando a toalha no ar. Logo atrás, Zé Osvaldo saiu com o revólver em punho. O investigador jogou a toalha no rosto do matador, que sem visão deu um tiro a esmo, acertando um espelho. Donizete sacou a sua arma e disparou, acertando a mão direita do homem que ainda se desvencilhava da toalha, fazendo com que o seu trinta e oito escorregasse para dentro do banheiro, para debaixo do chuveiro ligado. Com os tiros, Jonas se agachou e juntou as mãos sobre a cabeça, que o policial aproveitou para algemar, fazendo o mesmo com o homem ferido, que tinha perdido os dedos polegar e indicador, os quais olhava fixamente de joelhos sem emitir qualquer ruído. Com a algazarra, juntou-se uma multidão do lado de fora. Donizete apresentou seu distintivo ao motorista do ônibus e lhe deu um número para ligar. Em pouco mais de uma hora, duas viaturas surgiram trazendo reforço. 

 

Soltava a fumaça do cigarro pelo nariz, enquanto olhava o matador sentado no banco traseiro da viatura, que o encarava com a boca crispada de ódio. Jonas era o seu alvo principal, mas com o bônus que tinha lhe caído no colo, era como ter ganhado sozinho na loteria. Além de capturar um dos homens mais procurados do estado, faturaria o prêmio que a família de uma das vítimas tinha estipulado para quem o entregasse vivo ou morto. O Delegado cleptomaníaco podia ter lhe roubado o posto que era destinado a ser seu, mas não poderia lhe tomar a fama que ganharia depois daquelas prisões. Antes de entrar em uma das viaturas para apresentar os criminosos à justiça, inseriu duas fichas em um orelhão e pediu a um conhecido seu que fosse até a sua casa para afinar o piano. Precisaria das gêmeas para comemorar.


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