JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 32
Capítulo 32




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José Osvaldo, o borracheiro aposentado que tinha sido cliente assíduo de Janice na época de ouro da Maison, era casado. Relatava na cama do bordel suas frustrações com a esposa que não podia lhe dar um filho, tendo a cocota como sua confidente. Anos depois, quando Agda finalmente teve coragem de confessar o abandono do filho à sua melhor amiga, ouviu dela a curiosa história da mulher do borracheiro que tinha encontrado um bebê naquele lugar, mais ou menos na mesma época. Com a certeza de que era a mesma criança, e entre o medo da rejeição e a alegria de poder abraçar o seu filho, ela fez a segunda opção, convocando Janice para irem juntas ao endereço para onde o casal havia se mudado depois daquela ocorrência.

 

— Só pode ser ele, Jana.

— Se eu fosse você não alimentaria muita expectativa. Passaram-se muitos anos e hoje ele já deve ser um homenzarrão. Pode nem estar morando mais com os pais - Comentou a amiga, se segurando na porta do ônibus para subir os degraus e embarcar.

— Você tem razão, mas é o coração de mãe que está gritando aqui dentro. Eu não tenho alternativa a não ser ir atrás dessa pista. Queria apenas ver e abraçar uma vez só que fosse, e pedir desculpas pelo desatino de uma mãe jovem e fora de si.

— Vamos torcer para que tudo isso se concretize - Disse a amiga num tom desesperançado, se animando em seguida ao encontrar dois lugares para sentarem. O lugar era distante.

 

Assim como a ex-cocota tinha saído de rapariga para costureira, o Sr. Zé Borracheiro tinha parado de recauchutar pneus furados para se tornar um pedreiro de mão cheia. A casa em que morava com a esposa era um primor de construção, aparentando ter sido feita com materiais caros e de bom gosto. Janice torcia para que o seu ex-cliente não estivesse em casa, assim evitaria constrangimentos indesejados, e Amália não as enxotasse dali quando soubesse o propósito da visita. E ainda teria que usar o seu velho jogo de cintura para convencê-la de alguma maneira de como ficou sabendo do menino, sem contar a verdade. Mas para espanto geral, a recepção tinha sido bem diferente do imaginado.

 

— Foi Deus que enviou vocês aqui! - Entrem, por favor - Disse a dona da casa aos dois rostos confusos, sem entender o que estava se passando ou mesmo achando que Amália as havia confundido por um segundo com outras pessoas.

— O que houve Amália, você está…chorando? Aconteceu alguma coisa? Quer que chame alguém?

— Quem eu queria que Deus chamasse pra perto de mim já está aqui comigo. Sentem-se por favor que eu explico - Pediu, acomodando as mulheres, e ela mesma sentando em uma poltrona para que ficasse de frente para ambas.

— Eu estou sem forças para carregar essa cruz sozinha. Mas antes de dizer o que preciso, vou adiantar o que já sabia. Janice, eu já sabia que meu marido se deitava com você, ele mesmo me contou num momento de bebedeira. Eu não tenho nenhuma raiva da sua pessoa. Era o que você fazia para ganhar a vida. A minha irmã mais nova seguiu por esse caminho e foi morta por um caminhoneiro em um posto de gasolina onde ela fazia ponto. Eu também me sentia inútil por não poder dar um filho ao meu marido, e o perdoei. Ele é um bom homem, e todos erram. Assim como você errou Agda, ao descartar o seu bebê naquele pé de cacau - Afirmou, observando a velha mandingueira engolir seco, notando um leve tremor nas suas mãos.

— Naquela manhã, com o dia ainda escuro, eu pegava aquele caminho todos os dias para chegar no ponto de ônibus e ir trabalhar. Me escondi para não ser vista por você, e fiquei com medo daquilo que você tinha pendurado numa sacola, fosse um despacho para alguma entidade, um trabalho para algum cliente seu. Estava prestes a mudar de caminho, com medo de alguma coisa ruim pegar em mim se eu passasse perto do ebó. Vi você voltar correndo para casa, e quando eu estava prestes a dar as costas, eu tive a impressão de ter visto a sacola se mexer. Só tive certeza que tinha algo vivo lá dentro quando ouvi uns resmungos. Cheguei perto e fiquei na ponta dos pés para retirar a sacola daquele galho. Quando olhei para dentro não acreditei. Parecia milagre de Deus! Era como se você tivesse feito o papel de uma cegonha para mim! Foi difícil convencer o meu marido de que aquela história era real. Ele achava que eu tinha surrupiado a criança de alguma maternidade. Com o passar do tempo e nenhuma queixa do desaparecimento daquela criaturinha, ele começou a amar o menino.

 

Àquela altura, Agda se debulhava em prantos ao ver as suas feridas sendo abertas a fórceps, enquanto Janice, quase constrangida com a sinceridade de Amália, apenas absorvia cada palavra como se estivesse assistindo um filme cheio de reviravoltas.

 

— E..onde ele está? O menino? - Perguntou a feiticeira, virando a cabeça para o corredor como se o filho pudesse se materializar na sua frente a qualquer momento.

— Essa é a parte triste da história Agda. Não tenho outra maneira de te dar essa notícia. Nosso filho está morto. E o seu corpo está desaparecido. É aí que entra a ajuda que tanto preciso para seguir nessa luta de encontrá-lo - Revelou a mulher de pele negra, dona de um corpanzil avantajado, mas frágil como um cristal prestes a cair no chão.

 

Por um momento a Veia Guida paralisou suas feições, sem esboçar qualquer expressão. Janice como antevendo a reação, chegou para perto e lhe abraçou, vendo as duas mulheres caírem em um choro convulso. Tantos anos ela havia mostrado o seu arrependimento pelo gesto impensado, uma longa busca que acabava ali, era o que a ex-cocota achava. Mas ao que parecia, o caminho ainda seria tortuoso para que o rapaz fosse encontrado. Ainda que morto.

 

— Me explique o que precisamos fazer para achar o…corpo - Questionou para a mãe adotiva, já recomposta pela emoção, que limpava os óculos encharcado de lágrimas. Depois de um suspiro profundo, prosseguiu.

— Aurélio, esse é o nome de batismo que dei a ele em homenagem ao meu falecido pai. Aurélio começou a trabalhar na borracharia do meu marido ainda cedo. Era um rapaz bonito, forte e saudável, mas sempre me questionava porque ele era branco se os seus pais eram negros. Achei que poderia deixar ele sem aquela resposta até que tivesse mais idade e pudesse compreender com mais maturidade a verdade. Mas antes do previsto eu tive que revelar, porque aquela agonia já estava afetando a sua vida e a nossa também. Foi quando eu soube que ele estava se viciando em cola de sapateiro e começou a andar em más companhias na escola. Eu e o pai nos sentamos várias vezes com ele. Tivemos longas conversas, mas volta e meia ele falava da cor dele. Então resolvemos lhe contar a verdade, que ele não aceitou muito bem. Revelei onde o tinha encontrado e em que circunstâncias. Me disse gritando que preferia que eu tivesse traído o meu marido com um homem branco do que saber que não tinha sido gerado por mim. Uma semana depois ele fugiu de casa, e nunca mais o vimos. Temos um amigo policial que de vez em quando achava uma pista dele e corríamos atrás, mas o menino sumia outra vez. Até que recebemos a pior notícia que poderia chegar aos ouvidos de uma mãe. Ele tinha uma mancha de nascença embaixo do braço direito, e pelas características, nosso amigo da polícia nos disse que havia um corpo não reclamado no IML que parecia ser de Aurélio - Relatou, se emocionando mais uma vez, enquanto assoava o nariz em um lenço, vendo Agda levantar o braço direito para revelar o mesmo sinal que existia no corpo do rapaz.

— Eu corri para o IML, mas me informaram que o corpo tinha sido enterrado como indigente. Fiquei de voltar hoje naquele lugar horrível para ter notícias do corpo. Por isso acho que foi Deus que mandou vocês aqui.

 

Embarcadas em um táxi, seguiam quietas e perdidas em pensamentos. Janice rememorando as confissões de Osvaldo, trazendo à baila a proposta louca que ele tinha feito para que engravidasse dele e lhe entregasse a criança depois que nascesse. O tempo que ela ficasse sem poder trabalhar, inclusive no resguardo, ele estava disposto a pagar o dobro que ela auferia. Depois que disse não, ele nunca mais apareceu. Tinha perdido a ótima proposta e também o cliente. Agda estava fazendo conexões de informações na sua cabeça combalida por saber que não poderia mais abraçar o filho. Lembrou da informação curiosa que Justino lhe deu sobre o habitante daquele túmulo que chorou e rezou por uma noite inteira na madrugada do dia de Finados. Era um rapaz que tinha se suicidado injetando chocolate nas veias. Amália tinha dito a Aurélio que ele tinha sido encontrado pendurado num pé de cacau. Seria coincidência ela ter escolhido aquele morto para chorar a sua morte? Aguardaria ansiosa pelas próximas informações. Amália preferiu mentir para Janice e não constrangê-la, mas no dia em que seu marido bêbado revelou que frequentava um bordel por ter mais amor a uma quenga do que a ela própria, foi parar no hospital. Amália, uma mulher forte de um metro e oitenta e dois centímetros de altura, o tinha derrubado com um soco certeiro que o fez dormir por três dias em um leito de emergência.

 

A mesa dele ficava exposta no corredor, quase ao lado da porta que dava acesso às geladeiras. Jonas não gostou nada quando viu aquele trio caminhando com determinação na sua direção. Enxergava a cena em câmera lenta como se fossem enviadas do diabo com a missão de levar a sua alma. Ou algo mais real, como por exemplo terem vindo cumprir um mandado de prisão e arrastarem o seu rabo para uma cela. O que não fazia a menor diferença naquele momento. Quase perdeu o instante correto em que precisava se levantar para cumprimentar a mulher enorme que vinha capitaneando o grupo. Já tinha decidido contar tudo o que sabia.

 

— Espero que o senhor tenha boas notícias sobre o meu filho, Sr Jonas.

— Tenho notícias, mas não sei se são boas.

— Não estou entendendo.

— Aqui não é o lugar mais adequado para o que tenho que revelar. Podemos tomar um café na lanchonete da esquina? As senhoras são minhas convidadas - Disse, esperando que a mulher não fizesse uma confusão ali mesmo e chamasse a atenção dos seus colegas, que eram como piranhas à espera de uma gota de sangue para atacar.

 

Mediante a anuência do trio, levou-as para um local onde poderia se despir da pele de guardião dos mortos para tentar se manter vivo, já que o esquema envolvia gente graúda. Depois de pedirem uma rodada de café com leite e todos estarem servidos, sentiu-se confortável para começar o seu relato.

 

— Eu não sei quem são as outras duas senhoras, mas imagino que elas possam participar das coisas graves que tenho para revelar - Disse, enquanto recheava a sua bebida com mais açúcar que o normal.

— O interesse delas é o mesmo que o meu - Devolveu, com certa impaciência.

— Dona Amália, o cadáver do seu filho passou trinta e cinco dias naquelas geladeiras. Sei que era o seu filho pela marca de nascença do retrato que me mostrou. Estava em perfeito estado, sem qualquer escoriação ou desmembramento, como se estivesse apenas dormindo. Apenas as veias dos dois braços estavam mais alteradas e escurecidas do que o normal. A necropsia revelou ingestão de uma substância escura análoga a chocolate passeando pelas artérias. Vários pontos de entrada foram identificados, como se ele quisesse realmente se preencher daquele líquido. Houve um choque anafilático pela quantidade exagerada do agente na corrente sanguínea, o que o levou ao óbito - Explicou, notando que a senhora com mais idade estava às lágrimas e ainda não tinha tocado no seu café.

— Querem que eu dê uma pausa?

— Não, por favor continue - Pediu Agda, que buscava o lenço ainda úmido na sua bolsa.

— Via de regra, quando um corpo ocupa por mais de um mês uma daquelas geladeiras sem que a família o reclame, ele pode ser enterrado como indigente. Mas temo dizer, que não foi isso o que ocorreu. O cadáver do qual falamos foi, digamos assim, vendido - Revelou, sem deixar de ver o espanto nos rostos. Jonas esperava que nenhuma daquelas idosas desmaiasse ali.

— Vendido? Como assim, vendido? Como uma mercadoria? E quem seriam os compradores? E quem lucrou com a venda? Isso é loucura!

— Se as senhoras se acalmarem, posso dar nomes e detalhes. Só não quero ter o meu nome envolvido nesse escândalo e perder o meu emprego.

 

Depois de retirar um caderninho da bolsa que usava para anotar as compras da feira, Amália ouviu atentamente o que aquele jovem tinha a lhe dizer. Os detalhes eram estarrecedores a respeito daquele comércio macabro, mas ainda tinha esperanças de chegar perto de algum osso que fosse de Aurélio para providenciar um enterro simbólico. Com Jonas dispensado após um longo depoimento, tomaram outro táxi e foram direto para a delegacia de polícia onde Amália disse que o seu amigo trabalhava.

 

O guardião das geladeiras do necrotério sabia que a sua pele estava em risco, pois em qualquer direção que a polícia fosse esbarraria no nome dele. Estava mais ou menos preparado para sumir sem deixar vestígios. Já não tinha mais namorada, e seus parentes viviam em outro estado, onde provavelmente tentariam encontrá-lo. Não fez nenhum amigo no trabalho, não havia nada nem ninguém digno de uma despedida solene. Limpou as gavetas, passou um pano embebido em álcool por toda a mesa, ajeitou os papéis nos escaninhos e entrou na morgue pela última vez. Trancou a porta e lembrou de Patrícia, logo percebendo uma ereção. Abriu uma das gavetas mais próximas do chão para ver pela sexta vez naquele dia, o corpo nu daquela menina órfã de dezesseis anos, morta por asfixia pelo namorado. Abriu as pernas da garota com dificuldade devido a rigidez cadavérica, e teve a visão arroxeada da virilha imberbe e recém desonrada, conforme laudo do legista. Seria natural sentir ódio mortal do desgraçado que tinha tirado a vida daquela moça inocente de maneira tão cruel, se o assassino não estivesse se masturbando sobre o seu corpo gelado naquele exato momento.


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